16 de fevereiro de 2021

O entrudo ficou em casa num dia assim

MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA
Ballet ou Les Arlequins
(1946)

Pierrot, Colombina & Arlequim

Segundo se julga saber, a palavra Carnaval provém da expressão latina carne, vale!, pelo italiano carnevale, com o sentido de «adeus, carne!», i.e., representava a última terça-feira do período litúrgico que mediava o Dia de Reis e a Quaresma. A abstinência começava na quarta-feira de Cinzas seguinte, substituindo as grandes festividades pagãs de despedida aos excessos da véspera e prolongar-se-ia por mais quarenta dias (quadragesima dies) até ao domingo de Páscoa. Também é conhecido por Entrudo, designação derivada da palavra latina introitus, a simbolizar a preparação para a mais importante celebração do calendário cristão.

Com raízes na antiga tradição ática dos hinos a Dioniso-Baco e do Canto de Aldeia, os folguedos, farras, festins, folias e pândegas mil andaram sempre ligados aos mais diversos disfarces, na tentativa de se fingir ser aquilo que não se é ou se tem pudor de assumir no resto do ano. Nos cortejos de rua multiplicam-se os mascarados, munidos duma caraça, máscara ou mascarilha de cartão ou com a cara profusamente pintada, caraterizada ou maquillée. As crianças apreciam especialmente transformarem-se por um só dia que seja nas mais diversificadas personagens de fantasia a enriquecer o seu imaginário infantil de faz de conta.

No Renascimento italiano, a camada menos instruída da população, desconhecedora da língua tida na época como universal, substituiu o latim da comédia erudita pelo vulgar italiano da Commedia dell'Arte também chamada Commedia all'Improviso e Commedia a Sogetto. As companhias familiares praticavam a itinerância de cidade em cidade. Deslocavam-se de carroça, tal como o fizera Téspis na Ática do séc.  AEC, representavam em pequenos palcos rudimentares instalados nas ruas e praças públicas, interagiam com o público exercendo a arte do improviso, limitando-se a seguir as linhas gerais dum roteiro simplificado. 

A criançada apropriou-se ao longo dos tempos de algumas das figuras-tipo dessa representação dramática. A riqueza cromática do seu vestuário e dos motivos que lhe dão forma estará na origem dessa preferência multissecular. Entre essas caricaturas da vida humana, foi-se destacando o triângulo amoroso constituído por Colombina, enamorada de Arlequim e amada por Pierrot. A vingança deste último sobre o rival está-se a manifestar sem dó nem piedade esta terça-feira gorda de jejum. Roubou-lhe o Carnaval pelo segundo ano consecutivo, depois de este lhe ter roubado a musa da sua paixão. Cá se fazem cá se pagam.      

1 comentário:

  1. Mais um magnífico enquadramento histórico, Prof! E viva o Carnaval, com ou sem carne, que já não celebro como dantes, mas que muitas alegrias me deixou registadas desde a infância. Ou não fosse eu oriunda de um país do carnaval, irmão mais pequeno do país brasileiro onde o carnaval impera, ainda de forte expressão artística apesar do cariz comercial que se lhe impôs. Pierrot estará feliz, mas milhões chorarão a oportunidade de mais uma vez cantar "Um Pierrot apaixonado / que vivia só cantando / por causa de uma colombina / acabou chorando, acabou chorando"...

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