«– Que queres tu? Ele tem para as mulheres, como homem, paixões e órgãos; como confessor, a importância de um deus. É evidente que há de utilizar essa importância para satisfazer essas paixões; e que há de cobrir essa satisfação natural com as aparências e com os pretextos do serviço divino... É natural.»Eça de Queiroz, O crime do Padre Amaro (1875)
Entre 16 de janeiro e 20 de fevereiro do corrente ano de 2023, a RTP1 brindou-nos com uma adaptação televisiva d'O crime do Padre Amaro (1875) de Eça de Queiroz em seis episódios de 50 minutos cada, ainda disponíveis na página oficial do canal público. Nas antevésperas da estreia da série, larguei o terceiro volume da Recherche do Proust, adiei a leitura da Misericórdia da Lídia Jorge e terminei de fugida a minha visita aos Vientos do Vargas Llosa ‒ que me perdoem os três ‒ e pus-me a reler pela enésima vez a obra inaugural do Realismo português. Fi-lo num velho exemplar que guardo desde meados dos anos 70, dado à estampa pelos Livros do Brasil com fixação de texto e notas de Helena Cidade Moura, tendo ultrapassado a patine do tempo com uma máscara cirúrgica remanescente do Covid-19. O cheiro a tinta dos livros impressos é muito motivador mas está, também ele, sujeito a um inexorável prazo de validade.
Li algures que Leonel Vieira teria seguido a primeira versão em livro do romance, efetuada logo após o autor ter refundido linha a linha o texto publicado à sua revelia pela Revista Ocidental um ano antes. Muito embora desconheça as variantes de 1875 e 1876, é pouco plausível que assim seja, dado que as lacunas/ampliações detetadas à edição definitiva totalmente refeita de 1880 devem ser tidas como meras liberdades criativas dos guionistas que as prepararam e do realizador que lhes deu a forma fílmica oferecida aos telespetadores. A carga erótica emprestada a algumas cenas mais ousadas estará nesse número de desvios referidos, opção tomada a pensar sobretudo na conquista de audiências confortáveis que, segundo julgo saber, terão sido medianamente alcançadas. Como nota final, anuncia-se ainda a próxima chegada à cidade dum tal Eça de Queirós, referido como um recém-licenciado de Coimbra nomeado administrador do concelho de Leiria. O real e o imaginário de mãos dadas para dar um cunho documental ao relato.
Sobre O crime do Padre Amaro já se disse tudo ou quase tudo e não é suposto que se diga muito mais. O olhar crítico lançado à sociedade portuguesa oitocentista da Regeneração, pautada pela hipocrisia, corrupção e dogmatismo, domina toda a tessitura narrativa. Centra-se para tal nos costumes eclesiásticos praticados numa pacata cidade provinciana pelo clero e beatério locais, acolitados pela corte curial a si associados, numa junção dramática já patente no subtítulo eleito pelo autor para lhe dar corpo, as sugestivas Cenas da vida devota. O quadro experimental da peça representada inicia-se quando um jovem sacerdote diocesano se envolve emocionalmente com a filha casadoura da sua hospedeira. Nos atos imediatos à sedução, entra em vias de facto, engravida-a e sai airosamente do palco como se nada tivesse acontecido. Deixa atrás de si um rasto de morte que pouco o terá afetado. Limita-se a mudar de paróquia e ponto final.
A leitura do romance foi mais rápida do que o visionamento da série. Era de esperar que assim fosse. A magia da escrita de Eça continua a cativar-nos sempre que voltamos à sua companhia. O século e meio que nos separa apaga-se instantaneamente. As palavras saltam das páginas do exemplar que temos entre mãos num fluxo imparável como se estivessem a ser ditas pela primeira vez. A atualidade das temáticas tratadas é gritante, muito embora a natureza dos crimes cometidos pelo clero nos nossos dias esteja a anos-luz de distância dos praticados no tempo do Padre Amaro. A realidade que nos rodeia é bem pior do que a retratada na ficção. As notícias que nos vão sendo revelados pelos mass media do III.º milénio são muito pouco animadores. O problema do celibato e da sexualidade é tão antigo como o Primeiro Concílio de Latrão que o impôs no já distante séc. XII. Há quem aponte outras causas mas a repressão dos pulsões naturais da condição humana em nome duma qualquer religião estará sempre na origem ainda que remota de tais condutas desviantes. Que a questão fique no ar e que não nos cansemos de encontrar formas de o entender e superar. Neste campo, os livros e os filmes têm um papel precioso a desempenhar. Apelemos à máxima queirosiana e esperemos que sobre a nudez crua da verdade, o manto diáfano da fantasia se vá cumprindo.