28 de fevereiro de 2023

Eça de Queiroz, as cenas da vida devota e o crime do padre Amaro

«– Que queres tu? Ele tem para as mulheres, como homem, paixões e órgãos; como confessor, a importância de um deus. É evidente que há de utilizar essa importância para satisfazer essas paixões; e que há de cobrir essa satisfação natural com as aparências e com os pretextos do serviço divino... É natural.»
Eça de Queiroz, O crime do Padre Amaro (1875)

Entre 16 de janeiro e 20 de fevereiro do corrente ano de 2023, a RTP1 brindou-nos com uma adaptação televisiva d'O crime do Padre Amaro (1875) de Eça de Queiroz em seis episódios de 50 minutos cada, ainda disponíveis na página oficial do canal público. Nas antevésperas da estreia da série, larguei o terceiro volume da Recherche do Proust, adiei a leitura da Misericórdia da Lídia Jorge e terminei de fugida a minha visita aos Vientos do Vargas Llosa  que me perdoem os três ‒ e pus-me a reler pela enésima vez a obra inaugural do Realismo português. Fi-lo num velho exemplar que guardo desde meados dos anos 70, dado à estampa pelos Livros do Brasil com fixação de texto e notas de Helena Cidade Moura, tendo ultrapassado a patine do tempo com uma máscara cirúrgica remanescente do Covid-19. O cheiro a tinta dos livros impressos é muito motivador mas está, também ele, sujeito a um inexorável prazo de validade.  

Li algures que Leonel Vieira teria seguido a primeira versão em livro do romance, efetuada logo após o autor ter refundido linha a linha o texto publicado à sua revelia pela Revista Ocidental um ano antes. Muito embora desconheça as variantes de 1875 e 1876, é pouco plausível que assim seja, dado que as lacunas/ampliações detetadas à edição definitiva totalmente refeita de 1880 devem ser tidas como meras liberdades criativas dos guionistas que as prepararam e do realizador que lhes deu a forma fílmica oferecida aos telespetadores. A carga erótica emprestada a algumas cenas mais ousadas estará nesse número de desvios referidos, opção tomada a pensar sobretudo na conquista de audiências confortáveis que, segundo julgo saber, terão sido medianamente alcançadas. Como nota final, anuncia-se ainda a próxima chegada à cidade dum tal Eça de Queirós, referido como um recém-licenciado de Coimbra nomeado administrador do concelho de Leiria. O real e o imaginário de mãos dadas para dar um cunho documental ao relato.

Sobre O crime do Padre Amaro se disse tudo ou quase tudo e não é suposto que se diga muito mais. O olhar crítico lançado à sociedade portuguesa oitocentista da Regeneração, pautada pela hipocrisia, corrupção e dogmatismo, domina toda a tessitura narrativa. Centra-se para tal nos costumes eclesiásticos praticados numa pacata cidade provinciana pelo clero e beatério locais, acolitados pela corte curial a si associados, numa junção dramática já patente no subtítulo eleito pelo autor para lhe dar corpo, as sugestivas Cenas da vida devota. O quadro experimental da peça representada inicia-se quando um jovem sacerdote diocesano se envolve emocionalmente com a filha casadoura da sua hospedeira. Nos atos imediatos à sedução, entra em vias de facto, engravida-a e sai airosamente do palco como se nada tivesse acontecido. Deixa atrás de si um rasto de morte que pouco o terá afetado. Limita-se a mudar de paróquia e ponto final.

A leitura do romance foi mais rápida do que o visionamento da série. Era de esperar que assim fosse. A magia da escrita de Eça continua a cativar-nos sempre que voltamos à sua companhia. O século e meio que nos separa apaga-se instantaneamente. As palavras saltam das páginas do exemplar que temos entre mãos num fluxo imparável como se estivessem a ser ditas pela primeira vez. A atualidade das temáticas tratadas é gritante, muito embora a natureza dos crimes cometidos pelo clero nos nossos dias esteja a anos-luz de distância dos praticados no tempo do Padre Amaro. A realidade que nos rodeia é bem pior do que a retratada na ficção. As notícias que nos vão sendo revelados pelos mass media do III.º milénio são muito pouco animadoresO problema do celibato e da sexualidade é tão antigo como o Primeiro Concílio de Latrão que o impôs no distante séc. XII. quem aponte outras causas mas a repressão dos pulsões naturais da condição humana em nome duma qualquer religião estará sempre na origem ainda que remota de tais condutas desviantes. Que a questão fique no ar e que não nos cansemos de encontrar formas de o entender e superar. Neste campo, os livros e os filmes têm um papel precioso a desempenhar. Apelemos à máxima queirosiana e esperemos que sobre a nudez crua da verdade, o manto diáfano da fantasia se vá cumprindo.

21 de fevereiro de 2023

O carnaval português de Ricardo Reis

Leal da Câmara, Pierrot & Xexé
Ilustração Portugueza , N.º 781, 5.02.1921
[Hemeroteca Digital]

Ai como é diferente o carnaval em Portugal. nas terras de além e de Cabral, onde canta o sabiá e brilha o Cruzeiro do Sul, sob aquele céu glorioso, e calor, e se o céu turvou, ao menos o calor não falta, desfilam os blocos dançando avenida abaixo, com vidrilhos que parecem diamantes, lantejoilas que fulgem como pedras preciosas, panos que talvez não sejam sedas e cetins mas cobrem e descobrem os corpos como se o fossem, nas cabeças ondeiam plumas e penas, araras, aves-do-paraíso, galos silvestres, e o samba, o samba terramoto da alma, até Ricardo Reis, sóbrio homem, muitas vezes sentiu moverem-se dentro de si os refreados tumultos dionisíacos, só por medo do seu corpo se não lançava no turbilhão, saber como estas coisas começam, ainda podemos, mas não como irão acabar.

Em Lisboa não corre esses perigos. O céu está como tem estado, chuvoso, mas, vá lá, não tanto que o corso não possa desfilar, vai descer a avenida da Liberdade, entre as conhecidas alas de gente pobre, dos bairros, é certo que também há cadeiras para quem as pode alugar, mas essas irão ter pouca freguesia, estão numa sopa, parece partida carnavalesca, senta-te aqui ao de mim, ai que fiquei toda molhada. Estes carros armados rangem, bamboleiam, pintalgados de figuras, em cima deles há gente que ri e faz caretas, máscaras de feio e de bonito, atiram com parcimónia serpentinas ao público, saquinhos de milho e feijão que acertando aleijam, e o público retribui com um entusiasmo triste. Passam algumas carruagens abertas, levando provisão de guarda-chuvas, acenam lá de dentro meninas e cavalheiros que atiram confetti uns aos outros.

Alegria destas também as há entre o público, por exemplo, está esta rapariga a olhar o desfile e vem por trás dela um rapaz com uma mão cheia de papelinhos, aperta-lhos contra a boca, esfrega freneticamente e vai aproveitando a surpresa para a apalpar onde pode, depois ela fica a cuspinhar, a cuspinhar, enquanto ele afastado ri, são modos de galantear à portuguesa, há casamentos que começaram assim e são felizes. Usam-se bisnagas para atirar ao pescoço ou à cara das pessoas esguichos de água, ainda conservam o nome de lança-perfumes, é o que resta, o nome, do tempo em que foram suave violência nos salões, depois desceram à rua, muita sorte é ser limpa esta água, e não de sarjeta, como também se tem visto.

Ricardo Reis aborreceu-se depressa com a farrapagem do corso, mas assistiu a pé firme, qualquer coisa que tivesse para fazer não era mais importante do que estar aqui, por duas vezes chuviscou, outra vez caiu forte a chuva, e ainda há quem cante louvores ao clima português, não digo que não, mas para carnavais não serve. No fim do dia, já terminado o desfile, o céu limpou, tarde foi, os carros e carruagens seguiram para o seu destino, lá ficarão a enxugar até terça-feira, retocam-lhes as pinturas deslavadas, põem-se os festões a secar, mas os mascarados, mesmo pingando das melenas e cadilhos, vão continuar a festa por essas ruas e praças, becos e travessas, em vãos de escada para o que não se possa confessar ou cometer às claras, assim se praticando por maior rapidez e barateza, a carne é fraca, o vinho ajuda, o dia das cinzas e do esquecimento será só na quarta-feira. Ricardo Reis sente-se um pouco febril, talvez tenha apanhado um resfriamento a ver passar o corso, talvez a tristeza cause febre, a repugnância delírio, até aí ainda não chegou.

Um xexé veio meter-se com ele, armado com o seu facalhão de pau e o bastão, batendo um contra o outro, com grande estrépito, bêbado, a pedir equivocamente. Dá cá uma pançadinha, e arremetia ao poeta, de barriga esticada para a frente, avolumada por um postiço, almofada ou rolos de trapos, uma risota, aquele papo-seco de chapéu e gabardina a esquivar-se ao velho do entrudo, trajado de bicórnio, casaca de seda, calção e meia, Dá cá uma pançadinha, o que ele queria era dinheiro para vinho. Ricardo Reis deu-lhe umas moedas, o outro fez uns passos de dança grotescos, batendo com o faca e o pau, e seguiu, levando atrás de si um cortejo de garotos, mais os acólitos da expedição.

Num carrinho, como de bebé, era levado, com as pernas de fora, um marmanjão de cara pintada, touca na cabeça, babeiro ao pescoço, fingindo chorar, se é que não chorava mesmo, até que o mostrunço que fazia de ama lhe chegava à boca um biberão de vinho tinto em que ele mamava sofregamente, com grande gáudio do público reunido, donde, de repente, saía a correr uma rapazola que, rápido como o raio, ia apalpar o vasto seio fingido da ama e deitava logo a fugir, enquanto o outro berrava com voz rouca, de não duvidoso homem, Anda cá ó filho dum cabrão não fujas, anda cá apalpar-me aqui, e juntava o gesto à palavra com ostensividade suficiente para que as senhoras e mulheres desviassem os olhos depois de terem visto, o quê, ora, nada de importância, a ama tem um vestido que lhe desce até meio da perna, foi só o volume da anatomia, agarrada com as duas mãos, uma inocência. É o carnaval português.

José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis
 Lisboa: Caminho, 1984; ([7], 159-161)

13 de fevereiro de 2023

Uso discreto da coroa real dos oito arcos e da banda presidencial das três ordens

           Batalha de Ourique           
António de Holanda, Genealogia dos Reis de Portugal, 1530-1534

COROAÇÃO ‒ ALÇAMENTO ‒ ACLAMAÇÃO  INVESTIDURA 
O grande circo mediático à escala global prepara-se para levar a todos os cantos da esfera terrestre a cerimónia da coroação de Carlos Filipe Artur Jorge Mountbatten-Windsor. Para tal, teve de aguardar 70 anos pela morte da mãe, passou de Sua Alteza Real, o Príncipe de Gales, a Sua Majestade Britânica, o Rei do Reino Unido e dos Reinos da Comunidade de Nações. Tudo pela Graça de Deus, está bem de ver.

Dom Afonso Henriques não teve de esperar pela morte da mãe para se tornar o primeiro Rei dos Portugueses. Obteve a dignidade régia por mérito próprio. Bastou-lhe vencer os cinco reis mouros na mítica Batalha de Ourique (1139) e ser alçado e aclamado depois pelas tropas ainda no campo da contenda. Só depois, o Arcebispo de Braga o terá coroado com a coroa de bronze dos reis visigodos.

Mitos à parte, a tradição real portuguesa nunca se submeteu a uma coroação formalA entronização dos monarcas fez-se sempre por alevantamento, através dum ato prático, popular e laico celebrado num espaço público, numa aliança simbólica entre o novo soberano e os respetivos súbditos. Um ou outro Borgonha e Avis até terá usado por acaso uma coroa, sempre com peso, conta e medida.

Dom Manuel II encerrou entre nós o ciclo das aclamações reais, quando a 6 de maio de 1908 jurou cumprir solenemente a Carta Constitucional na Assembleia das Cortes em Lisboa. Curiosamente, será a 6 de maio de 2023 que Carlos III será coroado com toda a pompa e circunstância britânicas na Abadia de Westminster de Londres. Acasos que a história de vez em quando gosta de gizar.

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Banda das Três Ordens que os Bragança usaram e abusaram a torto e a direito passou a ser uma insígnia exclusiva do Presidente da República. Tal como a Coroa Real, dispõe dum papel protocolar, sendo envergada em momentos muito especiais excluindo a própria investidura de tomada de posse na Assembleia da República. Aqui, pelo menos, a sobriedade, a moderação e a simplicidade presidem.

COROA REAL & BANDA DAS TRÊS ORDENS
Museu do Tesouro Real - Museu da Presidência da República 

6 de fevereiro de 2023

Mário Vargas Llosa, as ventosidades intempestivas duma ruína humana

«Fui a la manifestación por la clausura de los cines Ideal, en la Plaza de Jacinto Benavente y, apenas acababa de comenzar, me sobrevino uno de esos vientos intempestivos que ahora me asaltan con frecuencia. Pero nadie se dio cuenta a mi alrededor. Lamenté haber ido porque éramos apenas cuatro gatos y casi todos unas ruinas humanas como yo. A ningún joven madrileño le importa que desaparezcan los últimos cines de Madrid; jamás ponían los pies en ellos, se habían acostumbrado desde niños a ver las películas que ordenaban –si se puede llamar películas a esas imágenes que divierten a las nuevas generaciones– en las pantallas de sus ordenadores, sus tabletas electrónicas y móviles.»

Era uma vez um jovem periodista peruano que escrevinhava histórias acontecidas como se fossem imaginadas. O real e o virtual perderam a noção das fronteiras entre o fictício e o factual e começaram a surgir no fluir dos dias contos, dramas e romances que lhe abririam as portas aos mais diversos prémios internacionais, como o Príncipe de Astúrias e das Letras, o Cervantes e o Nobel da Literatura. Agora até vai ser admitido na Academia Francesa dos imortais sem nunca ter escrito uma linha na língua de Molière. É obra. 

Entrei no universo criativo de Mario Vargas Llosa em meados da década de oitenta, vão quase quarenta anos. Descobri-o no expositor duma livraria do centro histórico de Sevilha. O título gravado na capa colorida e o descritivo inscrito na contracapa daquela novela publicada na biblioteca de bolsillo da Seix Barral abriram-me o apetite para lhe pegar e trazê-la para casa. Não me arrependi de o ter feito e até teci algumas notas sobre La tía Julia y el escribidorpelo que me dispenso de as repetir aqui neste espaço.

O Marito dos primeiros escritos cresceu e tornou-se no don Mario conhecido em todo o mundo que gosta de ler histórias bem urdidas. Nas imitações de vida feitos de factos vividos, até o podemos encontrar disfarçado numa ou noutra figura novelesca impressa em letra de forma. Mesmo quando se tenha abstido de dizer o nome, acabamos sempre por suspeitar de quem se trata sem grande margem para dúvidas. É o que se passa com o último texto que até mim chegou, Los vientos (2021), um conto inédito publicado nas páginas da revista Letras Libres e disponibilizado em linha na Net em formato de arquivo para quem o quiser visionar.

A nota de apresentação da entidade editora do texto avança tratar-se do esboço distópico de Madrid facilmente imaginável num tempo não muito distante do atual, crepuscular e escatológico, melancólico e humorístico, traçado por um ser solitário entrado na idade e que não custa muito igualar aos 85 anos que o político falhado e novelista de sucesso tinha quando o compôs e deu à luz. No mundo antecipado plasmado no fluxo de pensamento daquela ruína humana propensa a ventosidades intempestivas, não se entrevê a sombra dum qualquer Big Brother opressivo ou Porco Triunfante formatados nos anos 40 por George Orwell no Nineteen eighty-four e no Animal farm, autor e obras aludidos de fugida no relato. O cenário dum totalitarismo universal não tomou conta ainda do destino das populações, mas presente-se a entrada irreversível numa era digital sem precedentes. A guerra ao papel impresso, a criação duma paper free society, levará o ancião que nos conduz por essa cronotopia antecipada a considerar que a vida sem livrarias, sem bibliotecas e sem cinemas é uma vida sem alma. Somos obrigados em dar-lhe inteira razão.

O conto fica um pouco à deriva com a autópsia que lhe têm sido feita à procura de traços autobiográficos do grande representante vivo do boom literário latino-americano, o ex-marido duma tia por afinidade e duma prima de sangue, que, na reta final da sua já longa existência, resolveu estabelecer uma união de facto com a rainha dos corações, também conhecida por pérola de Manila. O idílio oficial terá durado oito anos (2015-2022) e tem vindo a deliciar a imprensa cor-de-rosa do país vizinho. A dar no protagonista anónimo do relato metatópico e metacrónico q.b., o equívoco entre o amor de pichula e corazón terá estado na origem da falhada relação do primeiro marquês de Vargas Llosa e da ex-marquesa de Griñón e Castel-Moncavo. As supostas marcas de toxidade criadas pela parelha mediática procuram-se agora com grande afã nas 18 pp. duma história fictícia com ares de factual. Nada que a pena do novelista peruano naturalizado espanhol não conheça de ginjeira. Fiquemo-nos por aqui e fruamos a fábula.

Ilustración de Nerea Pérez