Leal da Câmara, Pierrot & Xexé Ilustração Portugueza , N.º 781, 5.02.1921 [Hemeroteca Digital] |
Ai como é diferente o carnaval em Portugal. Lá nas terras de além e de Cabral, onde canta o sabiá e brilha o Cruzeiro do Sul, sob aquele céu glorioso, e calor, e se o céu turvou, ao menos o calor não falta, desfilam os blocos dançando avenida abaixo, com vidrilhos que parecem diamantes, lantejoilas que fulgem como pedras preciosas, panos que talvez não sejam sedas e cetins mas cobrem e descobrem os corpos como se o fossem, nas cabeças ondeiam plumas e penas, araras, aves-do-paraíso, galos silvestres, e o samba, o samba terramoto da alma, até Ricardo Reis, sóbrio homem, muitas vezes sentiu moverem-se dentro de si os refreados tumultos dionisíacos, só por medo do seu corpo se não lançava no turbilhão, saber como estas coisas começam, ainda podemos, mas não como irão acabar.
Em Lisboa não corre esses perigos. O céu está como tem estado, chuvoso, mas, vá lá, não tanto que o corso não possa desfilar, vai descer a avenida da Liberdade, entre as conhecidas alas de gente pobre, dos bairros, é certo que também há cadeiras para quem as pode alugar, mas essas irão ter pouca freguesia, estão numa sopa, parece partida carnavalesca, senta-te aqui ao pé de mim, ai que fiquei toda molhada. Estes carros armados rangem, bamboleiam, pintalgados de figuras, em cima deles há gente que ri e faz caretas, máscaras de feio e de bonito, atiram com parcimónia serpentinas ao público, saquinhos de milho e feijão que acertando aleijam, e o público retribui com um entusiasmo triste. Passam algumas carruagens abertas, levando provisão de guarda-chuvas, acenam lá de dentro meninas e cavalheiros que atiram confetti uns aos outros.
Alegria destas também as há entre o público, por exemplo, está esta rapariga a olhar o desfile e vem por trás dela um rapaz com uma mão cheia de papelinhos, aperta-lhos contra a boca, esfrega freneticamente e vai aproveitando a surpresa para a apalpar onde pode, depois ela fica a cuspinhar, a cuspinhar, enquanto ele afastado ri, são modos de galantear à portuguesa, há casamentos que começaram assim e são felizes. Usam-se bisnagas para atirar ao pescoço ou à cara das pessoas esguichos de água, ainda conservam o nome de lança-perfumes, é o que resta, o nome, do tempo em que foram suave violência nos salões, depois desceram à rua, muita sorte é ser limpa esta água, e não de sarjeta, como também se tem visto.
Ricardo Reis aborreceu-se depressa com a farrapagem do corso, mas assistiu a pé firme, qualquer coisa que tivesse para fazer não era mais importante do que estar aqui, por duas vezes chuviscou, outra vez caiu forte a chuva, e ainda há quem cante louvores ao clima português, não digo que não, mas para carnavais não serve. No fim do dia, já terminado o desfile, o céu limpou, tarde foi, os carros e carruagens seguiram para o seu destino, lá ficarão a enxugar até terça-feira, retocam-lhes as pinturas deslavadas, põem-se os festões a secar, mas os mascarados, mesmo pingando das melenas e cadilhos, vão continuar a festa por essas ruas e praças, becos e travessas, em vãos de escada para o que não se possa confessar ou cometer às claras, assim se praticando por maior rapidez e barateza, a carne é fraca, o vinho ajuda, o dia das cinzas e do esquecimento será só na quarta-feira. Ricardo Reis sente-se um pouco febril, talvez tenha apanhado um resfriamento a ver passar o corso, talvez a tristeza cause febre, a repugnância delírio, até aí ainda não chegou.
Um xexé veio meter-se com ele, armado com o seu facalhão de pau e o bastão, batendo um contra o outro, com grande estrépito, bêbado, a pedir equivocamente. Dá cá uma pançadinha, e arremetia ao poeta, de barriga esticada para a frente, avolumada por um postiço, almofada ou rolos de trapos, uma risota, aquele papo-seco de chapéu e gabardina a esquivar-se ao velho do entrudo, trajado de bicórnio, casaca de seda, calção e meia, Dá cá uma pançadinha, o que ele queria era dinheiro para vinho. Ricardo Reis deu-lhe umas moedas, o outro fez uns passos de dança grotescos, batendo com o faca e o pau, e seguiu, levando atrás de si um cortejo de garotos, mais os acólitos da expedição.
Num carrinho, como de bebé, era levado, com as pernas de fora, um marmanjão de cara pintada, touca na cabeça, babeiro ao pescoço, fingindo chorar, se é que não chorava mesmo, até que o mostrunço que fazia de ama lhe chegava à boca um biberão de vinho tinto em que ele mamava sofregamente, com grande gáudio do público reunido, donde, de repente, saía a correr uma rapazola que, rápido como o raio, ia apalpar o vasto seio fingido da ama e deitava logo a fugir, enquanto o outro berrava com voz rouca, de não duvidoso homem, Anda cá ó filho dum cabrão não fujas, anda cá apalpar-me aqui, e juntava o gesto à palavra com ostensividade suficiente para que as senhoras e mulheres desviassem os olhos depois de terem visto, o quê, ora, nada de importância, a ama tem um vestido que lhe desce até meio da perna, foi só o volume da anatomia, agarrada com as duas mãos, uma inocência. É o carnaval português.
Uma delícia de texto…
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