«Nasceu uma criança do sexo masculino, de pele branca e rosada, de cabelo escuro. A alegria dos pais estendeu-se do alto escarpado do castelo e da Alcáçova, a todo o país. Naquele ninho de águia, para espanto futuro de muitos, nascera o Falcão, como a si se chamaria, o predador da nobreza abusadora e ociosa, o homem do Novo Mundo e da Nova Europa.»Seomara da Veiga Ferreira, Crónica esquecida d’el-Rei D. João II (1995)
Costuma aceitar-se sem grandes reservas ter o romance histórico moderno sido criado por Walter Scott com o Waverley (1814), nas vésperas da queda de Napoleão em Waterloo (1815) e da difusão triunfal do movimento romântico à escala global. A caraterização do novo género literário, estudado à exaustão por György Luckács no Der historische Roman (1955), não refuta o papel desempenhado pelos relatos afins provenientes dos tempos antigos e medievais, entendidos como antecedentes poéticos moldados aos requisitos exigidos pelas matrizes estéticas então vigentes e a abrirem as portas às inúmeras modalidades entretanto ideadas. O contributo de Seomara da Veiga Ferreira, com a Crónica esquecida d'el-Rei D. João II (1995), insere-se precisamente neste cenário.
O trajeto de vida traçado pelo Príncipe Perfeito sempre me mereceu uma atenção muito especial, colocando-o numa posição destacada no seio de quase meia centena de soberanos que o antecederam ou sucederam na ação governativa do país. Essa a razão pela qual adquiri e trouxe para casa um exemplar do livro acima referido, quando o vi exposto no escaparate duma livraria. Cheguei até a perguntar-me se não se trataria mesmo duma verdadeira crónica em tempos perdida e em boa hora encontrada. Ao folheá-la logo ali, in loco, apercebi-me tratar-se duma mera biografia romanceada assente na alternância contínua de sequências históricas verídicas com outras verosímeis reveladas por um longínquo e desconhecido participante-observador fictício do relato. Isso não me impediu de o ler à data com algum prazer e proveito e de o ter voltado a fazer agora, passados quase duas décadas sobre a sua descoberta.
Ambrosius Roiz, o narrador judeu converso, filho e neto de judeus, centra as suas memórias diretas/indiretas na primeira fase da Dinastia Joanina à frente dos destinos da Coroa Portuguesa, desde a eleição em Cortes do Mestre de Avis até à subida ao trono do Duque de Viseu e Beja. Reparte-as por três livros, com um número variável de capítulos, subordinados às principais fases dos reinados dos respetivos monarcas, com uma atenção especial a D. Afonso V n'«O ciclo do Dragão» [L.I] e a D. João II n'«O tempo do Falcão» [L.II] e «Na rota dos mundos mortos» [L.III]. Para facilitar a tarefa dos leitores, o autor anexa ainda nas páginas finais do testemunho apócrifo uma extensa Cronologia enquadrante do período em causa, pautado pelo nascimento do futuro Conde de Barcelos (1377) e Duque de Bragança e pela morte da Rainha D. Leonor de Lencastre (1525), bem como uma Genealogia referente à descendência de D. João I e à da família do presumido biógrafo do monarca nomeado no título atribuído aos anais secretos voluntariamente escondidos e finalmente revelados meio milénio depois.
O conhecimento generalizado dos eventos históricos trazidos para a ficção dispensa resumi-los numa breve resenha de leitura como esta. Basta elencá-los e tecer depois as reflexões adequadas. Dizer, v.g., que entre a crise dinástica que substituiu os Borgonha pelos Avis e a conversão forçada dos Judeus por ordem do Afortunado, estariam as batalhas de Aljubarrota e do Toro, o Tratado de Alcáçovas e a Terçaria de Moura, as conjuras dos grandes do reino contra o poder real do biografado, a divisão das terras descobertas e por descobrir acordado em Tordesilhas pelos representantes de Portugal e Castela. Estaria ainda uma sentida incursão pelos sendeiros calcorreados pelo Infante D. Pedro, o Dragão de São Jorge, Cavaleiro do Cisne, Senhor das Sete Partidas, Regente do Reino e Duque de Coimbra, sogro e tio do Africano, sacrificado em Alfarrobeira. Uma mancheia de episódios labirínticos e jogos poder que dariam uma boa série televisiva, caso a RTP dispusesse de verbas idênticas às da BBC para uma produção desta natureza. Assim, resta-nos fantasiar uma mudança radical do panorama mediático português e entretanto contentarmo-nos com as histórias contadas com história dentro, impressas em letra de forma nas páginas dum romance de época inspirado na figura ímpar do Rei-Falcão, o obreiro perfeito dum império minuciosamente sonhado, que o primo, cunhado e sucessor ergueria depois dele.
Muito interessante! Foi Fernando Campos quem me trouxe um belo romance histórico sobre a figura de D. João II, A Esmeralda Perdida...
ResponderEliminarSão inúmeras as possibilidades que o entorno histórico do Príncipe Perfeito oferece à ficção de lhes dar uma forma romanceada, muitas delas ainda por explorar dum modo verdadeiramente literário. Li em tempos alguns textos do Fernando Campos, mas deixei escapar est’«A Esmeralda Perdida» de feição joanina.
ResponderEliminarOra que interessante resenha e que bem terá sabido a releitura do romance histórico…
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