«Dos de los tres han muerto desde que me fui de Oxford, y eso me hace pensar, supersticiosamente, que quizá esperaron a que yo llegara y consumiera mi tiempo allí para darme ocasión de conocerlos y para que ahora pueda hablar de ellos. Puede, por tanto, que —siempre supersticiosamente— esté obligado a hablar de ellos. No murieron hasta que yo dejé de tratarlos. De haber seguido en sus vidas y en Oxford (de haber seguido en sus vidas cotidianamente), tal vez aún estuvieran vivos.»Javier Marías, Todas las almas (1989)
Javier Marías abre abruptamente a crónica memorialista da voz enunciadora do Todas as almas (1989) com a notícia de dois dos seus três companheiros de Oxford terem partido para a tal viagem sem regresso, aquela que nos espera a todos no final do nosso ciclo vital. Ficamos sem saber a sua identidade imediata, nem sequer nos são revelados os laços de maior/menor intimidade que os ligaria no seu convívio de dois anos que estabelecera enquanto conferencista, tradutor e professor de literatura espanhola do pós-guerra na mais antiga universidade do mundo anglófono. Terá sabido da ocorrência já em Madrid, após ter deixado a cidade, comprometendo-se, então, a falar um pouco nas três centenas de páginas do relato, distribuídas pelas dezassete secções/capítulos não numerados do testemunho retrospetivo composto em modo de romance.
A revelação da trindade de amigos anunciada logo na primeira frase da exposição só será efetivada nos seus derradeiros parágrafos. Até à divulgação final dos seus nomes ‒ do sobrevivente e dos falecidos ‒, vão sendo fornecidas pistas para a resolução satisfatória do enigma, assentes nos muitos fragmentos de vida com que o relator teve ensejo de se cruzar durante a sua passagem efémera por terras insulares de além-Mancha. A história do viajante do tempo, os avistamentos fortuitos com a mulher que fumava na estação de Didcot, o encontro com o homem coxo e o cão deficiente. No seu intento de esmiuçar com precisão clínica as idiossincrasias britânicas, não faltou também ao académico recenseador assunto para caricaturar de modo mordaz as perturbações por si sentidas naquele mundo fora do mundo doado pela instituição oxoniense. Colegas, colégios, costumes, cerimónias, tradições, rivalidades, maledicências. A ironia campeia, o sarcasmo impõe-se, a farsa triunfa.
O contacto casual com mendigos, pedintes e vagabundos, antigos espiões e segredos familiares mal guardados, antiquários, livreiros, alfarrabistas, conhecidos e desconhecidos, alterna com um convívio mais estreito com a amante ocasional, o marido traído e o confidente e amigo desses tempos de missão universitária dum estrangeiro anódino na cidade do mundo onde menos se trabalha. Palavras suas proferidas na primeira pessoa, como aliás em toda a resenha de factos acontecidos num passado relativamente recente. Ensejo para entrar em conexão com a obra de dois obscuros cultores de novelas de terror e fantasia, o já esquecido Arthur Machen, tradutor, crítico literário, jornalista e ator de teatro galês, e o obscuro John Gawsworth, escritor britânico, pretenso rei de Redonda, ilha remota do Caribe. Episódios soltos, registados um pouco ao acaso, sem a preocupação de lhes dar uma sequência cronológica precisa no cômputo geral do informe deste caderno de notas especial.
A contracapa da Alfaguara faz eco da equívoca identificação do narrador e autor do livro desde a sua publicação, hipótese de tal guisa insistente que levou o ficcionista a refutá-la posteriormente, no arranque da Negra espalda del tiempo (1998), título que registei na minha memória de leitor curioso de enveredar pelas sendas das falsas novelas, as tais que se situam na fronteira imprecisa entre os factos acontecidos e os inventados. Mais tarde ou mais cedo, ainda o vou encontrar por aí, para uma visita curiosa e esclarecedora da polémica. Convergências/divergências que não cabem aqui esmiuçar, digamos que o hipotético cunho biográfico do novelista se restringe a um período de tempo muito breve. Depois de regressar ao país natal, muitas outras histórias passíveis de serem efabuladas terá vivido, representadas pelo ator que as encarnou, até partir de vez como as almas aludidas no seu mister docente em terras inglesas. Mais uma vítima do Covid, mais uma que nos deixou precocemente com muitas memórias para lembrar e contar. Ironias trágicas da condição humana que a criatividade artística não pode evitar.
Sem comentários:
Enviar um comentário