24 de março de 2025

Natalia Ginzburg e o léxico familiar dos Levi de Palermo instalados em Turim

«Nella mia casa paterna, quand'ero ragazzina, a tavola, se io o i miei fratelli rovesciavamo il bicchiere sulla tovaglia, o lasciavamo cadere un coltello, la voce di mio padre tuonava: – Non fate malagrazie!
Se inzuppavamo il pane nella salsa, gridava: – Non leccate i piatti! Non fate sbrodeghezzi! non fate potacci! Sbrodeghezzi e potacci erano, per mio padre, anche i quadri moderni, che non poteva soffrire.»
Diceva: – Voialtri non sapete stare a tavola! Non siete gente da portare nei loghi!
E diceva: – Voialtri che fate tanti sbrodeghezzi, se foste a una table d'hôte in Inghilterra, vi manderebbero subito via.»

Natalia Ginzburg informa os leitores, na «Advertência» de abertura ao Léxico familiar (1963), de serem todos os lugares, factos, pessoas, nomes e apelidos citados nesse livro reais, verdadeiros, extraídos da sua memória e revelados ao público em forma de romance. Como também confessa, terá omitido um ou outro aspecto que lhe diziam respeito, apenas por não ter muita vontade de falar de si mesma. Deixo em aberto se assim é ou não. É que quer a autora queira quer não, todos os eventos registados num livro, para ser lido como uma crónica, passam a pertencer à esfera da ficção, do faz-de-conta cuspido e escarrado. Não há volta possível a dar. Sem entrar na história propriamente dita, suspeita-se logo da existência duma série de alusões quase obrigatórias a Palermo na Sicília, onde foi dada à luz em 1916, e de sobressaírem referências vividas desde então até à data de publicação do escrito, a uma distância de quase meio século. Nada mal.  

Seguem-se cerca de duzentas páginas concentradas num capítulo unitário, apesar da presença dum conjunto de segmentos narrativos separados entre si por um espaçamento ligeiramente alargado. Se as minhas contas não falharam, perfarão o número redondo de quarenta e quatro fragmentos de dimensão variada, a marcarem o ritmo lento e imperceptível da passagem do tempo, nunca indicado de modo explícito, mas fáceis de precisar, quando confrontamos os eventos internos do relato com as referências aos externos de caráter histórico chamados de tempos a tempos à colação. As duas guerras mundiais, os períodos que as precederam e sucederam, os episódios mais marcantes da ascensão do fascismo na Itália e as suas repercussões por toda parte, como a ocupação nazi do reino e a campanha racial, associadas a prisões, desterros, exílios, fugas e mortes. A história cruza-se a cada passo com a História, mormente quando se acerca, envolve e persegue a comunidade judaica, com a qual a relatora partilha laços familiares e de sangue muito estreitos.

O aparecimento da figura de Leone Guinzburg, a meio das memórias autobiográficas romanceadas em curso, marca, de certo modo, uma viragem do relato para os aspetos mais pessoais que envolvem a autora. A limitação dessa entrada em cena por um par de asteriscos apresenta, de si, uma atenção especial àquele editor, escritor, jornalista, professor, ativista político, resistente e herói antifascista judeu italiano, de origem russa e ucraniana, primeiro marido da narradora, aquele que lhe oferecerá o apelido literário pelo qual é conhecida na república das letras. E nesta fase do discurso que os nomes altissonantes dos protagonistas da oposição à ditadura totalitária dos camisas negras são catapultados para um plano de destaque numa ficção feita de factos efetivamente acontecidos. A sua enumeração exaustiva seria necessariamente copiosa e demorada. Que se encontrem, então, na leitura do texto redigido de viva voz pelo testemunho exemplar de quem os viveu de corpo presente.

Lido o livro de fio a pavio, ponto a ponto, do inicial ao final, podemos confirmar terem os propósitos inscritos na advertência preliminar sido cumpridos. O elemento mais destacado do clã siciliano dos Levi de Palermo instalados em Turim limita-se a seguir à risca o programa discursivo inscrito no título. Prioriza as idiossincrasias de cada um dos seus familiares próximos e distantes, estendidas aos diferentes círculos de amizades traçados e que os ajudam a definir como um todo. Autorrefere-se muito de raspão, em duas penadas, calando mesmo o seu percurso pessoal pela esfera da escrita, pelos seus sucessos editoriais e prémios recebidos. Porém, é no modo como projeta amplamente nos outros a sua visão especial do mundo que muito paulatinamente acaba por se revelar de corpo inteiro aos olhos do leitor. Excelente exercício de quem sabe tratar por tu a arte de dar vida à escrita com palavras do dia a dia, de transformar a prosa poética de que é feita na poesia integral que a envolve.  

EPÍGRAFE
«Na minha casa paterna, nos meus tempos de menina, à mesa, se eu ou os meus irmãos entornávamos o copo em cima da toalha, ou deixávamos cair uma faca, a voz do meu pai retumbava: — Tenham modos! 
Se molhávamos o pão no molho, gritava: — Não lambam os pratos! Não sejam nojentos! Não sejam repugnantes! 
Nojentos e repugnantes eram também, para o meu pai, os quadros modernos, que ele não podia suportar.
Dizia: — Vocês não sabem estar à mesa! Não se pode levar‑vos a lado nenhum.
E dizia: — Vocês, com esses nojos que fazem, se estivessem numa table d'hôte em Inglaterra, eram imediatamente postos fora. — Porque ele tinha a Inglaterra na máxima conta. Via‑a como o mais alto exemplo de civilização de todo o mundo.»
Natalia Ginzburg, Léxico Familiar (1963)

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