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Portinari, Festa de São João (1958) |
MARCHA POPULAR«Santo António já se acabou | O São Pedro está-se acabar | São João, São João | Dá cá um balão | Para eu brincar...»António Lopes Ribeiro & Frederico de Freitas, São João Bonito (1942)
Os santos da minha infância pré-escolar eram passados na casa dos meus avós maternos, berço desse ramo familiar, da qual, por razões da ananke grega, do fatum latino ou do destino lusitano escapei, nem por bem nem por mal, mas pelas necessidades inevitáveis da vida referidas nos mitos épicos e dramáticos. Que me recorde, os três heróis elevados aos altares dos bem-aventurados celestiais, por vontade popular e reconhecimento clerical, nunca foram festejados com o mesmo brilho no espaço urbano da cidade da rainha onde cresci do que com o cenário quase aldeão da vila nativa dos meus avoengos. Faltava-lhe os balões aquecidos, os festões coloridos, as alcachofras acabadas de colher ou os cravos de papel com quadras em redondilha maior ou menor espetados num vaso de manjerico.
As festas do fogo da minha meninice celebravam-se na noite de São João, um pouco depois do solstício do verão, mas a abranger todo esse período de despedida do inverno e da permuta do reino da sombra para o da luz. Tudo começava nas vésperas desse ponto de viragem, com uma ida ao Pinhal Grande para juntar uns quantos ramos de alecrim e alfazema, apanhar algumas pinhas e troncos secos, mais umas braçadas de caruma para alimentar o lume novo que daria as boas-vindas à nova estação há muito desejada que aí vinha com toda a força renovadora. O arraial de rua far-se-ia, depois, com o contributo de toda a vizinhança reunida à volta das chamas perfumadas duma enorme fogueira, pronta a ser saltada pelos mais afoitos ao som dos cantos alusivos e do ritmo das danças rituais.
O odor a madeira queimada ainda mora na minha memória. O cheiro a cinzas fumegantes no empedrado da rua estreita que então me parecia imensa ainda persiste no meu olhar remoto dessa viragem simbólica da idade pueril para a juvenil. Aromas rurais imolados na fogueira mesclados com os urbanos do café torrado da mercearia do Swing e dos perfumes da barbearia do Fala-Barato. Sinestesias variadas a alimentar as vivências um dia vividas e vivificadas nos ainda por viver. A alcachofra silvestre que queimei na noite de São João floresceu na manhã do dia seguinte. Tive sempre sucesso nesse renascer cíclico da natureza. Os amores idílicos com a minha prima Vera duraram até se diluírem no ar. Rondávamos a meia dúzia de anos e estas memórias já excederam as seis décadas bem contadas.
As memórias de infância são as mais belas e dificilmente se esquecem.
ResponderEliminarE que belíssimas memórias!! Eu fico-me pelo grito ensurdecido da meia noite, quando chegava a casa com as pernas negras de andar na terra batida e a saltar à fogueira: "Ana Isabel nem penses que te deitas assim fedorenta e toda suja!!!" Tinha 7 anos, a praceta era toda uma alegria e a exaustão muscular dos dias a correr pela rua eram algodão doce da alma.
ResponderEliminarMemórias que a infância nos traz com muito mais nitidez do que as memórias das idades mais recentes. Alguma razão haverá para isso. Aproveitemo-lo bem...
EliminarUm relato bonito... Por incrível que pareça, tem muito em comum com as festas em São Paulo nos anos 50, nos bairros com predominância de imigrantes do sul da Europa, onde vivi. E será extraordinário pensar no tipo de convívio, tão idêntico, famílias sentadas junto às fogueiras partilhando conversa e comida, balões no céu, crianças brincando alegremente... Absolutamente impensável, de algumas décadas para cá.
ResponderEliminarA terra é uma grande aldeia repartida por muitos bairros menores, todos eles cientes das suas tradições ancestrais nativas ou trazidas doutras paragens mais exóticas. Assemelham-se em muitos aspetos, só diferindo em alguns aspetos de pormenor. Os cenários., para bem ou para mal, mudaram muito nos últimos tempos. Assim tenhamos nós ânimo para nos habituarmos a eles.
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