« Tard dans la nuit, à une date lointaine où j'étais sur le point d'atteindre l'âge de la majorité, je traversais la place des Pyramides vers la Concorde quand une voiture a surgi de l'ombre. J'ai d'abord cru qu'elle m'avait frôlé, puis j'ai éprouvé une douleur vive de la cheville au genou. J'étais tombé sur le trottoir. Mais j'ai réussi à me relever. La voiture avait fait une embardée et elle avait buté contre l'une des arcades de la place dans un bruit de verre brisé. La portière s'est ouverte et une femme est sortie en titubant. »Patrick Modiano, Accident nocturne (2003)
De quando em vez, apetece-me a companhia dum livro com poucas páginas e muitas ideias. Virei-me para a estante que fica em frente do meu sofá pessoal e peguei na compilação de dez romances de Patrick Modiano, organizada pela Quarto Gallimard e que estava ali mesmo a olhar para mim com ar irresistível. Movido por um impulso indeclinável ou difícil de contrariar, a minha visita recaiu sobre um Accident nocturne (2003), protagonizado pelo sujeito de enunciação interna (quiçá externa), numa noite de inverno, na parisina praça das Pirâmides, junto à Concórdia, nas vésperas de atingir a maioridade, ou seja, os 21 anos de idade, limite estabelecido em França até julho de 1974. Estabelecido o espaço central da ação e um tempo aproximado da mesma, os pormenores da efabulação podem começar a ser revelados passo a passo.
O mestre do conto longo com a densidade aparente dum romance curto, centra-se neste caso num episódio banal que ocupará, como é hábito, menos duma centena de páginas. Do embate, resultou o internamento do jovem acidentado no Hôtel-Dieu, logo transferido para a sofisticada Clinique Mirabeau. Ao acordar, apercebeu-se dos ferimentos ligeiros e de ter perdido um dos moccasins usados que então levava, pretexto ideal para levar o leitor a associá-lo à velha história da Gata Borralheira, exercício a breve trecho abandonado, quando o sapato extraviado acaba por ser recuperado e reutilizado, sem a aparição de nenhuma princesa no horizonte. Não obstante, esse desvio dos trilhos traçados pelo maravilhoso tradicional, povoado de fadas madrinhas e varinhas de condão, não impediu o paciente, já de posse da alta hospitalar, de partir em busca da causadora do acidente, entretanto desaparecida de cena.
Por efeito do embate sofrido ou do odor do éter então administrado e anestesia sequente, o relator sem nome próprio e apelido revelado, residência fixa, profissão certa ou meio de subsistência definido, sente esse atropelamento com um Fiat verde-água como um dos mais significativos eventos da sua vida, definidor dum antes/depois cronológico que o leva a virar-se pela primeira vez para o passado e a vê-lo como se duma radiografia se tratasse. Enceta então uma lídima viagem pelas memórias difusas, trazidas ou transformadas em sonhos/miragens de épocas antigas há muito adormecidas ou semiesquecidas. A sensação do já visto, sentido ou experimentado instala-se a cada momento, ao ritmo dum incessante e repetido eterno retorno. A situação algo similar dum antigo atropelamento sofrido na tenra idade desencadeia uma labiríntica cadeia de reminiscências mais ou menos fragmentárias e anacrónicas, próprias dum relato memorialista entregue à pena mais ou menos fantasista de quem o acolheu entre si.
Uma trintena de anos após o acidente noturno por si sofrido, o relator sem nome resolve atualizá-lo sem nos dizer exatamente o porquê de tal pulsão. É bem verdade que também não tinha de o fazer. Um dos principais objetivos da ficção é contar histórias imaginadas como se fossem reais. Nesta perspetiva, parece que a tarefa foi cumprida, ainda que duma forma lacunar. A misteriosa condutora causadora do atropelamento é encontrada, enceta um diálogo esclarecedor de alguns pormenores mínimos e tudo fica por aí. A pesquisa chegara ao fim e é tudo. Goste-se ou não do resultado obtido. Tanto um como outro desaparecem das páginas do romance curto ou conto longo sem dizer até à próxima. Para além de ter falado q.b. do pai ausente e referido de passagem a mãe incógnita, Modiano deixa de parte as alusões ao contexto bélico novecentista omnipresente nos textos compostos em datas anteriores. Omissão tanto mais sentida, se cometida num tempo como o nosso, em que recordar os conflitos já travados possa ser encarado como um alerta a ter em linha de conta. Quando mais não seja para evitar erros já cometidos e constantemente repetidos, a dar jus ao tal eterno retorno já apontado. Ideias quiméricas que a práxis quotidiana se encarrega de refutar ou reduzir ao mais completo absurdo.
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