
« Il s'appelait Loulou. Son corps était vert, le bout de ses ailes rose, son front bleu, et sa gorge dorée. » Un cœur simple
« "Maudit ! maudit ! maudit ! Un jour, cœur féroce, tu assassineras ton père et ta mère !" » La légende Saint Julien l'Hospitalier
« "Je veux que tu me donnes dans un plat... la tête... " Elle avait oublié le non, mais reprit en sourriant : " La tête de Iaokanann !" » Hérodias
Gustave Flaubert, Trois contes (1877)
Quando um papagaio serve de ponto de partida para compor um romance-ensaio sobre um dos autores-charneira mais significativos do romantismo/realismo europeu, as expetativas criadas serão no mínimo singulares. Julian Barnes deveria saber que a leitura do Flaubert's' Parrot (1984), publicado em inglês na reta final do século passado, nos remeteria para a obra maior do ficcionista-ficcionado dada à luz em francês pelo biografado na segunda metade da centúria anterior. Falo por mim, que dei uma vista de olhos por toda e já comentei aqui uma delas. Preparo-me agora para fazer o mesmo com uma outra, repartida por Trois contes (1877) e lançada por vezes como uma nouvelle de Gustave Flaubert: «Un cœur simple», «La légende de Saint Julien l'Hospitalier» e «Hérodias».
O painel inicial do tríptico novelesco abre com a história de Félice, obrigada a trabalhar como assalariada nas quintas do país natal, por ter perdido os pais muito cedo e as irmãs não terem meios para a sustentar. Depois de algumas experiências pouco felizes em duas quintas da região, acaba por se instalar como criada para todo o serviço em casa de Mme Aubain, uma viúva da pequena burguesia rural normanda de Pont l'Évêque, onde permanece meio século até à morte. A banalidade deste longo percurso existencial subalterno tem poucos episódios particularmente extraordinários para serem trazidos aqui. A sua leitura nas páginas originais deste Coração Simples fá-lo-ão naturalmente dum modo muito melhor. Excetuo a referência a Loulou, o tal papagaio que trouxe até à descoberta feliz desta coleção.
A tela central troca a época contemporânea do autor pela medieval geradora da Lenda de São Julião Hospitaleiro, um santo de origem duvidosa, nado em data incerta e local impreciso. O realismo ubíquo no conto anterior é trocado pela liberdade fantasiosa do maravilhoso puro, próprio do imaginário católico com raízes fundas no cristianismo primitivo. Os oráculos/previsões saídos dos sonhos, alucinações e visões referidos na tessitura narrativa, experenciados pelos pais do biografado e protagonista do relato, contribuem para desenhar essa conexão genérica. O cenário propício à presença do milagre com direito a canonização popular materializa-se na conversão penosa dum grande senhor criado num castelo, no meio dos bosques, na encosta duma colina, a um pobre mendigo sem poiso certo onde ficar ou pernoitar num qualquer casebre encontrado no meio da natureza, sempre preparado para dar prestar os seus préstimos hospitaleiros sempre que alguém o necessitasse.
A cabeira tábua pintada com palavras recua até aos tempos bíblicos em que Herodes Antipas exercia o poder na Palestina como tetrarca da Galileia e da Pereia. O episódio ficcionado está ancorado na esfera histórica que levou à decapitação de Iaokanann, o nosso São João Batista, a pedido de Salomé, a filha de Herodes Agripa I, rei da Judeia, e de Herodíade, a instigadora da execução e doadora do nome ao conto. As críticas cerradas do primo martirizado de Jesus de Nazaré, a complexidade do quadro geopolítico judaico-romano que então se vivia e as intrigas palacianas de partilha do poder nutrida na citadela de Macareus conferem os ingredientes necessários para urdir uma trama suficientemente densa para dar corpo à exposição diegética e rematar a novela tripartida de contos.

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