2 de setembro de 2025

Gustave Flaubert, três histórias noveladas em forma de conto

« Il s'appelait Loulou. Son corps était vert, le bout de ses ailes rose, son front bleu, et sa gorge dorée. » Un cœur simple
« "Maudit ! maudit ! maudit ! Un jour, cœur féroce, tu assassineras ton père et ta mère !" » La légende Saint Julien l'Hospitalier
« "Je veux que tu me donnes dans un plat... la tête... " Elle avait oublié le non, mais reprit en sourriant : " La tête de Iaokanann !" » Hérodias
Gustave Flaubert, Trois contes (1877)

Quando um papagaio serve de ponto de partida para compor um romance-ensaio sobre um dos autores-charneira mais significativos do romantismo/realismo europeu, as expetativas criadas serão no mínimo singulares. Julian Barnes deveria saber que a leitura do Flaubert's' Parrot (1984), publicado em inglês na reta final do século passado, nos remeteria para a obra maior do ficcionista-ficcionado dada à luz em francês pelo biografado na segunda metade da centúria anterior. Falo por mim, que dei uma vista de olhos por toda e já comentei aqui uma delas. Preparo-me agora para fazer o mesmo com uma outra, repartida por Trois contes (1877) e lançada por vezes como uma nouvelle de Gustave Flaubert: «Un cœur simple», «La légende de Saint Julien l'Hospitalier» e «Hérodias».

O painel inicial do tríptico novelesco abre com a história de Félice, obrigada a trabalhar como assalariada nas quintas do país natal, por ter perdido os pais muito cedo e as irmãs não terem meios para a sustentar. Depois de algumas experiências pouco felizes em duas quintas da região, acaba por se instalar como criada para todo o serviço em casa de Mme Aubain, uma viúva da pequena burguesia rural normanda de Pont l'Évêque, onde permanece meio século até à morte. A banalidade deste longo percurso existencial subalterno tem poucos episódios particularmente extraordinários para serem trazidos aqui. A sua leitura nas páginas originais deste Coração Simples fá-lo-ão naturalmente dum modo muito melhor. Excetuo a referência a Loulou, o tal papagaio que trouxe até à descoberta feliz desta coleção.

A tela central troca a época contemporânea do autor pela medieval geradora da Lenda de São Julião Hospitaleiro, um santo de origem duvidosa, nado em data incerta e local impreciso. O realismo ubíquo no conto anterior é trocado pela liberdade fantasiosa do maravilhoso puro, próprio do imaginário católico com raízes fundas no cristianismo primitivo. Os oráculos/previsões saídos dos sonhos, alucinações e visões referidos na tessitura narrativa, experenciados pelos pais do biografado e protagonista do relato, contribuem para desenhar essa conexão genérica. O cenário propício à presença do milagre com direito a canonização popular materializa-se na conversão penosa dum grande senhor criado num castelo, no meio dos bosques, na encosta duma colina, a um pobre mendigo sem poiso certo onde ficar ou pernoitar num qualquer casebre encontrado no meio da natureza, sempre preparado para dar prestar os seus préstimos hospitaleiros sempre que alguém o necessitasse.

A cabeira tábua pintada com palavras recua até aos tempos bíblicos em que Herodes Antipas exercia o poder na Palestina como tetrarca da Galileia e da Pereia. O episódio ficcionado está ancorado na esfera histórica que levou à decapitação de Iaokanann, o nosso São João Batista, a pedido de Salomé, a filha de Herodes Agripa I, rei da Judeia, e de Herodíade, a instigadora da execução e doadora do nome ao conto. As críticas cerradas do primo martirizado de Jesus de Nazaré, a complexidade do quadro geopolítico judaico-romano que então se vivia e as intrigas palacianas de partilha do poder nutrida na citadela de Macareus conferem os ingredientes necessários para urdir uma trama suficientemente densa para dar corpo à exposição diegética e rematar a novela tripartida de contos.

Lidos os romances, contos/novelas e ensaios, fica-se com a vontade de visitar os locais de peregrinação literária focados nos livros. Voltar a atravessar a Normandia para olhar com olhos de ver todo o pays pontépiscopien, por onde Flaubert passou grande parte da vida e transferiu para as páginas do coração simples parcelas relevantes da sua própria existência. Nesse percurso, passaria forçosamente pela igreja de Caudebec-en-Caux e pela catedral de Rouen, para admirar os vitrais do lendário São Julião Hospitaleiro, inspiradoras do relato intermédio da coletânea. Nessa vontade de viajar pelos cenários revelados pela literatura, dar um pulo às ruínas da fortaleza de Macareus, erigida nas costa oriental do Mar Morto, se o clima de paz por ora inexistente o permitisse. Projetos viáveis à espera dum plano eficaz para os realizar. Que fiquem entretanto os itinerários reais sugeridos pelos heróis da imaginação.

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