6 de março de 2025

Haruki Murakami, a busca do carneiro selvagem com uma estrela no dorso

「言いたくないんなら、言わなくてもいい」と男は言った。「その代わり君が羊を探し出すんだ。これが我々の最後の条件だ。今日から二ヵ月以内に君が羊を探し出せれば、我々は君が欲しいだけの報酬を出す。もし探し出せなければ、君の会社も君もおしまいだ。それでいいか?」
 村上春樹, 『羊をめぐる冒険 (1982)

Ao que consta, Haruki Murakami terá obtido o seu primeiro grande sucesso editorial dentro e fora das fronteiras insulares do Japão com o Em busca do carneiro selvagem (1982). Para quem entrou em contacto com a sua obra publicada em data posterior, as frases e páginas iniciais deste romance remetem-nos de imediato para a arte de contar muito especial deste eterno candidato ao Prémio Nobel da Literatura, galardão este que, com toda a probabilidade, nunca virá a receber. Palpites que, para o autor, pouco ou nada afetarão ou tirarão aos seus fiéis leitores, espalhados pelas várias partes do mundo, a vontade e prazer de viajar pelas histórias por si criadas ao longo dos tempos. Junta-se ao enorme rol de escritores ostracizados por Estocolmo e com mais ledores do que muitos dos distinguidos pela Academia Sueca.

O mais estranho neste texto maiormente Estranho, enquanto género teórico da literatura do insólito, é a omissão clara de sérias fugas da esfera do natural para a do sobrenatural, ao invés do verificado em títulos mais recentes. A presença dum Fantástico de hesitações seguidas no rasto das diversas variantes do Maravilhoso, nitidamente assumido, atestado e aceite, primam pela ausência. Tudo se passa num ambiente nipónico atual ‒ ou daquele em que foi captado pela ficção, centrada na década de 70 ‒, povoado por personagens sem nome próprio e apelido ou reduzido a etiquetas estereotipadas, provenientes do imaginário infantil dos contos da carochinha, nem sempre maiusculizados ou reduzidas a uma mera sigla, tais como maria-vai-com-todos, Líder Supremo, Homem Estranho, Rato, J., Condutor, Professor Carneiro, homem-carneiro, bem como ao «eu» implícito ou explícito do narrador, um jovem publicitário de Tóquio, divorciado e a caminho dos 30 anos de idade.

A badana de abertura da versão portuguesa, dado à estampa pela Casa das Letras, resume em três curtos parágrafos as linhas gerais que estruturam o relato, notas precisas que as casas distribuidoras depois registam ipsis verbis nas suas páginas de divulgação digital. Em poucas palavras, envia-nos para a tarefa detetivesca imposta ao relator-ator de encontrar um carneiro selvagem, invulgar, diferente dos demais, por exibir uma mancha de nascença em forma de estrela gravada no dorso e ser possuidor de propriedades extraordinárias que ultrapassam a compreensão humana. É certo que as oito partes e quarenta e três capítulos, enquadrados por um Prelúdio e um Epílogo, nos fornecem um número desmedido de pormenores pouco práticos de elencar neste espaço, mas que a arte do grande mestre japonês de associar palavras faz muito melhor nas mais de três centenas e meio de páginas que compõem a crónica de factos acontecidos ou tidos como tal. Leiamo-los com proveito e deleite. Não custa nada.

Na reta final do relatório investigativo redigido em forma de romance, ouvimos um dos partícipes afirmar estar morto, confissão singular de âmbito irreal até então afastado e que, à luz dos eventos até então revelados, nos leva a duvidar da sua veracidade. O predomínio dos sonhos descritos pelo fabulador leva-nos a dirigir a natureza de tal testemunho para o domínio restrito/total do imaginário onírico ou até do ilusório, causado pela solidão extrema a que se vira condenado. Coagido pelas exigências persecutórias do mandatário, sujeito às alucinações geradas por um coágulo de sangue no cérebro ou nas drogas tomadas para o debelar, o detetive forçado vê-se obrigado a achar o paradeiro do carneiro estrelado, suposto causador de todos os delírios prodigiosos, como o de invadir o corpo das pessoas, pondo ponto final às suas buscas policiais e relato das mesmas. Fá-lo à sua maneira, sem apelo nem agravo. Refaz o seu estilo de vida e prepara-se para encetar um novo capítulo da sua existência, longe agora do olhar atento dos leitores, que, ao fecharem o livro, já estarão à espera de de encontrar um outro, feito à medida única do grande criador de heróis/anti-heróis da imaginação literária.

EÍGRAFE
«- Não és obrigado a falar, se não queres – referiu o homem. – Em vez disso, vais partir em busca do carneiro. São essas as nossas condições. Se dentro de dois meses, a partir de agora, conseguires dar com o carneiro, estamos dispostos a oferecer-te a recompensa que pedires. Agora, caso não o encontres, tanto tu como a tua empresa estarão acabados. De acordo?»
Haruki Murakami, Em busca do carneiro selvagem 
(Lx: CdL, 2007; P.6, cap.18, p.155)

28 de fevereiro de 2025

Musicália, a arte tecida com sons

Philosophia et septem artes liberales

Herrad de Landsberg, Hortus Deliciarum (séc. xii)

« Dans l'enseignement, comme dans la magie, la répétition est le plus sûr garant de l'efficacité ! »
Jean Bottéro, Babylone et la Bible (1994) 

Letras & Números

Duas noites por semana, quatro horas no total, um pouco mais em vésperas e dias de concerto, assim são os ensaios do coral a que empresto a minha voz há uns bons pares de anos. Repetições incessantes de cada compasso, sistema, acorde presentes na partitura em preparação por sopranos, tenores, contraltos e baixos residentes e um ou outro mais solista em atuações especiais. A este ato repetitivo, o francês utiliza precisamente a palavra répétition, o método mais eficiente para garantir a eficácia performativa desejada. Um verdadeiro ato de magia, quando damos a ouvir a peça aos amantes da musiké téchne, ou arte das musas.

Por alguma razão, a cultura medieval europeia, herdeira direta da antiguidade clássica, a alocava no seio das Sete Artes Liberais, entendidas como uma metodologia multidisciplinar de ensino criada para a formação integral e não profissionalizante de homens livres, opondo-se assim às Artes Mecânicas, destinadas exclusivamente a servos e escravos. Estava disposta por dois conjuntos de matérias ministradas no início do percurso universitário, o Trivium (Gramática, Dialética/Lógica e Retórica) e o Quadrivium (Aritmética, Geometria, Astronomia e Música), i.e., as sete vias ou caminhos conducentes ao conhecimento das letras e dos números.

A posição gradativa crescente de aprendizagens ocupada pela Música no septenário permite-nos considerá-la como a rainha de todas as artes ali reunidas. Ela ensina a traçar as notas e com elas a sucessão das melodias produzidas, faculta os meios para aferir a sua qualidade harmónica e fornece os meios auxiliares para as embelezar. Com a mestria inata de estudar a quantidade compositiva de sonoridades, formas e distâncias necessários para desenhar a musicália pretendida e com elas atingir o topo da arte de associar os sons, de a transformar assim numa linguagem universal que não conhece limites nem fronteiras. Agora e sempre.

 Francesco di Stefano Pesellino, Le sette arti liberali (c. 1450)

24 de fevereiro de 2025

Homero, a Ilíada e a cólera de Aquiles

                  Páris & Menelau                  

Kalliadès, figuras vermelhas de argila (c. 490-480 aec)

Μῆνιν ἄειδε θεὰ Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος
οὐλομένην, ἣ μυρί᾽ Ἀχαιοῖς ἄλγε᾽ ἔθηκε,
πολλὰς δ᾽ ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν
ἡρώων, αὐτοὺς δὲ ἑλώρια τεῦχε κύνεσσιν
οἰωνοῖσί τε πᾶσι, Διὸς δ᾽ ἐτελείετο βουλή,
ἐξ οὗ δὴ τὰ πρῶτα διαστήτην ἐρίσαντε
Ἀτρεΐδης τε ἄναξ ἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς 

Dizem que o fundador da Paideia helénica terá nascido em Esmirna e vivido em Quios, que seria um aedo/rapsodo/compilador cego, que terá criado em data incerta a obra prima/primeira do cânone literário ocidental. A tradição dá-lhe o nome de Homero e assegura ser o autor irrefutável da Ilíada, um longo poema épico de 15 693 versos em hexâmetros dactílicos ou heroicos, distribuídos por 24 livros, um por cada letra do alfabeto grego. A ação remonta à lendária Guerra de Troia travada cerca de 1300-1200 AEC e terá sido gizada oralmente ou por escrito à volta de 800-700 AEC. Entre uma e outra baliza temporal, um hiato de 400 anos de escuridão, a chamada Idade das Trevas, a separar os derradeiros momentos da Cultura Micénica dos inaugurais da Cultura Grega, aqueles em que os mitos/lendas ancestrais deram passo às histórias formatadas na Era Axial, i.e., a sistematização das religiões e da criação dos principais géneros poéticos idealizados em verso e prosa.

Ao invés do que se costuma dizer, a Ilíada não trata na sua totalidade do relato minucioso dos dez anos do assédio, conquista e incêndio de Ílion. Nem sequer referências ao famoso Cavalo de Troia, dado que o seu aparecimento só sucederá no final do conflito sangrento duma década travado entre Gregos e Troianos. O núcleo central da efabulação decorre no final do nono ano do cerco da cidade e não ocupa mais do que cinquenta dias, condensados em pouco mais duma semana. Tudo começa no primeiro verso com a menção à cólera de Aquiles, o Pelida, e culmina no postremo com os funerais de Heitor, o domador de cavalos. Por outras palavras, os heróis épicos por excelência do poema, representantes das duas forças beligerantes pela posse da Pólis situada às portas do Helesponto, a meio caminho do Mar de Mármara, do Estreito do Bósforo e do Ponto Euxino, no limite estratégico entre os continentes europeu e asiático, fronteira natural entre o mundo ocidental e o oriental.

Identificados os actantes fulcrais da refrega homérica, há que apontar os periféricos, os adjuvantes/oponentes de cada uma das forças em presença, bem como do seu contributo na trama. Aquiles dos pés ligeiros recusa-se a combater mais os seus guerreiros ao sentir-se ofendido por Agamemnon, rei de Micenas e líder dos sitiantes, enfraquecendo assim o exército aqueu e levando-os a uma derrota. Este havia-o despojado duma escrava que lhe coubera como butim duma escaramuça recente e só retoma quando o seu amigo Pátroclo é morto num duelo pelo primogénito de Príamo, o rei de Troia. Como vingança, retoma o combate e mata igualmente numa luta de corpo a corpo Heitor, príncipe herdeiro da cidade assaltada. A cólera inicial do filho da deusa Tétis e do mortal Peleu converte-se num apaziguamento final, pondo assim termo ao Poema Épico de Ílion, contado/cantado por Homero para registo pleno dos ouvintes e glória eterna dos heróis.

Quanto ao destino de Helena e Páris, os causadores da conflagração armada de gregos e troianos, bem como da própria cidade-estado que os acolhera, temos de o encontrar na imensidade de textos descritivo-narrativos em verso e prosa, registados em rolos de papiro e pergaminho, sobreviventes à voragem inclemente do tempo com dois mil e oitocentos anos de existência. Procurá-los sobretudo na Odisseia, a epopeia do regresso acidentado de Ulisses a Ítaca, ao encontro de Penélope e Telémaco, a mulher e o filho que já não via há duas décadas, composta também ela por Homero, o grande cosedor de cantos heroicos do ciclo troiano. Feitos inesquecíveis de seres semidivinos a quem deu vida nos seus dias e continuam vivos nos nossos, omnipresentes na memória coletiva de todos aqueles que continuam a ouvir as suas vozes distantes através das palavras registadas nas páginas do livro que temos entre mãos. Assim o prazer pela leitura continue vivo nas nossas práticas quotidianas.

INVOCAÇÃO
Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida | (mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus | e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades, | ficando seus corpos como presa para cães e aves | de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus), | desde o momento em que primeiro se desentenderam | o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.

18 de fevereiro de 2025

Rato de biblioteca

Carl Spitzweg, Der Bücherwurm, 1850
[Berlim, Museum Georg Schäfer]
«Os livros escrevem-se para se fazerem ouvir, não para estarem calados [...] não se escreve só por escrever, escreve-se para fazer mal a quem quer fazer mal. Um mal de palavras contra um mar de murros e pontapés e instrumentos de morte.»
Elena Ferrante, História da menina perdida (2014)

Nos dias em que havia um canal de televisão entre nós, sobrava muito mais tempo livre dedicado à leitura. A realidade é que nessa época cinzenta de brandos costumes, os livros não eram um bem essencial. Nem de longe. Os preços proibitivos para os rendimentos não permitiam o luxo de os adquirir. A ida às bibliotecas impunha-se. Assim estas estivessem à nossa disposição e nos oferecessem os títulos a que ansiávamos aceder.

O prazer pela leitura revelou-se-me muito cedo. Primeiro limitei-me à decifração periclitante das histórias aos quadradinhos que me chegavam às mãos. Lembro-me das tiras coloridas publicadas por alguns jornais de tiragem nacional. Depois restava-me o prazer de entrar nas livrarias do meu burgo, para olhar as capas dos livros e tocar num ou outro se me fosse possível. Ficaram-me os nomes sonantes da Parnaso, Tália e Tertúlia.

O gosto pelos livros impressos a cheirar a tinta atingiu o seu pleno quando a carrinha da Gulbenkian começou a visitar a minha cidade, carregada de tomos na biblioteca itinerante sobre rodas. Por essa altura, também, passei a usufruir dos exemplares acabadinhos de chegar à biblioteca de turma que a minha turma do Ciclo Preparatório começara a organizar de Língua, História Pátria, como então julgo se chamava a disciplina de Português.

Não sou nem nunca fui um rato de biblioteca. Sempre que recorri aos seus (em)préstimos fi-lo pela ausência de livros em casa. Foi esta necessidade absoluta que me levou a frequentar com algum afinco a biblioteca municipal do parque da cidade da rainha. Nesse in illo tempore distante, explorei estante atrás de estante, autor atrás de autor, livro atrás de livro. Depois, comecei a compor a minha própria biblioteca pessoal com a qual coabito.

Junto a mim, tenho agora comigo a Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante, ancorada na história das duas amigas geniais que tinham uma paixão muito especial pela leitura e alguma aptidão pela escrita. Tanto uma como outra eram leitoras assíduas à biblioteca do bairro onde viviam. Uma delas requeria em seu nome e da família o número máximo permitido, que os livros se escrevem para serem ouvidos e não para estarem calados. Nem mais.

12 de fevereiro de 2025

Computadores: a mão luminosa de Deus na escrita do Decálogo no Monte Sinai

                 Left right human brain concept                 
«Nos dias que se seguiram ela quis que nos encontrássemos na Basic Sight. Fechámo-nos na sua sala e ela sentou-se ao computador, uma espécie de televisor com um teclado, muito diferente daquele que havia algum tempo mostrara a mim e às meninas. Carregou no botão de abertura, meteu retângulos escuros dentro de blocos cinzentos. Aguardei, perplexa. No ecrã apareceram soluços luminosos. Lila começou a bater no teclado, fiquei de boca aberta. Nada que se pudesse comparar a uma máquina de escrever, mesmo que fosse elétrica. Ela acariciava as teclas cinzentas, com as pontas dos dedos e o texto nascia no ecrã em silêncio, verde como erva acabadas de despontar. Aquilo que ela tinha na cabeça, agarrado a qualquer córtex do cérebro, parecia derramar-se para o exterior por milagre e fixar-se no nada do ecrã. Era potência  que apesar de passar pelo ato, continuava a ser potência, um estímulo eletroquímico que se transformava imediatamente em luz. Pareceu-me a escrita de Deus como ela devia ter sido no Sinai, no tempo dos mandamentos, impalpável e tremenda, mas com um efeito concreto de pureza.»
Elena Ferrante, História da menina perdida (2014) [Vol IV, cap. 101, pp.273-274]
No tempo em que os computadores se chamavam pomposamente cérebros eletrónicos e tinham o tamanho colossal duma casa, entrei pela primeira vez em contacto com o universo obscuro da cibernética. O meu batismo nesse universo inexplorado deu-se numa disciplina de informática que o antigo Instituto Comercial de Lisboa começara a ministrar nesses dias conturbados de vastas mudanças e eu ainda frequentava a contragosto. Viviam-se então os anos revolucionários dos cravos de abril, numa altura em que eu me preparava para trocar os números das contabilidades, economias e finanças pelas letras das línguas, literaturas e culturas clássicas e modernas.

Tudo nasceu numa mera sala de aulas do antigo edifício bizantino de traçado ortodoxo ali às Chagas, onde em tempos funcionara a embaixada russa dos czares. Era-nos proposto solver um problema de lana-caprina e esquematizar todas as fases da sua resolução através da representação gráfica num ordinograma devidamente submetido a um conjunto de símbolos normalizados, fornecidos pela linguagem Cobol. O diagrama esquemático explicativo da sequência de operações em curso era depois traduzida passo a passo em fórmulas matemáticas precisas, com recurso à numeração binária, em cartões perfurados confiados de seguida ao computador.

Quando me mudei de armas e bagagem para a Faculdade de Letras da Clássica, os personal computers ainda não estavam na moda. Bati todos os meus trabalhos académicos com o teclado HCESAR novinha em folha que nem sequer era elétrica. Outra realidade que a vindoura tornaria obsoleta. Só troquei o matraquear estrepitoso da máquina de escrever pelo processador silencioso de texto do meu primeiro comutador pessoal muito mais tarde, quando passei a frequentar a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Nova. Uma mutação épica indescritível, que me catapultou definitivamente da noite para o dia para o domínio eletrónico cósmico do luminoso digital.

O computador parecido com um televisor antigo, munido dum teclado como o das máquinas de escrever e dum apêndice de navegação chamado rato já desapareceram do meu horizonte de operações. Levaram consigo a enorme torre de armazenamento de dados e as disquetes de armazenamento de dados. me rendi à mobilidade dum portátil. Abençoadas ficções memorialistas mais ou menos autobiográficas postas ao dispor dos leitores, a ajudá-los a recordar as mudanças constantes do quotidiano que a anamnese real não regista. Reviver, v.gr., o esforço mental sentido em tempos para plasmar num fluxograma como fazer uma torrada ou fritar um ovo.

Cartão perfurado IBM não usado

6 de fevereiro de 2025

Elena Ferrante, história de maturidade e velhice napolitana e da menina perdida

«Se una creatura di pochi anni muore, è morta, è finita, presto o tardi ci si rassegna. Ma se scompare, se non se ne sa più niente, non c’è una cosa che resti al poso suo, nella tua vita. Non tornerà più o tornerà? E se ritornerà, ritornerà viva o morta? Ogni momento ti domandi dov'è. Fa la zingarella per strada? Sta a casa di gente ricca senza figli? Le fanno fare cose brutte e poi vendono le fotografie e i film? L'hanno squartata e hanno ceduto a caro prezzo il suo cuore per metterlo dentro il petto di un altro bambino? Gli altri suoi pezzi stanno sotto terra, li hanno bruciati? O sotto terra ci sta intera, perchè è morta incidental-mente dopo che l'hanno rapita? E se la terra e il fuoco non se la sono presa, e lei sta diventando grande chissà dove,che aspetto ha adesso? Come diventerà in seguito? Se la incontreremo per strada la riconosceremo? E se la riconosceremo chi ci ridarà tutto quello che abbiamo perso di lei? Tutto quello che è successo quando non c'eravamo e lei, che era piccola, si è sentita abbandonata?»
Elena Ferrante, Storia della bambina perduta (2014)

Cheguei ao final do percurso de vida de duas meninas napolitanas que sonhavam escrever um livro para serem famosas e ricas. Uma redigiu «A fada azul», um conto infantil de meia dúzia de páginas, a outra um romance de sucesso com um título desconhecido. A primeira era ainda uma criança, a segunda era já uma adolescente e tornou-se numa autora bem-sucedida com o passar dos anos, senhora duma vasta obra traduzida para diversos idiomas. Sabemo-lo em pormenor nesta quarta etapa da saga das amigas geniais, aquela a que Elena Ferrante chamou História da menina perdida (2014), centrada num episódio de feição trágica, que, de certo modo, poria termo decisivo à convivência de décadas de Elena Greco e Raffaela Cerrullo e por arrastamento do próprio relato em si.

Ao invés das tetralogias temáticas gregas do período ático antigo, não encontramos nesta versão fictícia moderna composta em italiano um conjunto sequencial de três tragédias de cariz marcadamente soturno seguido dum drama satírico ligeiro que amenizaria o clima sinistro da peça na sua totalidade. É que no quotidiano real tratado no quarteto romanesco, as alegrias e tristezas, o amor e o ódio, a vida e a morte andam sempre a par e passo, de mãos dadas, não se fixando hermeticamente num único género poético pré-definido. Há lugar para todos eles e miudamente em simultâneo, máxime quando se está perante um fluxo enunciativo de sete décadas, iniciado logo após a Segunda Guerra Mundial e concluído já entrados num novo século e milénio. O devir histórico do país transalpino com forma de bota está integralmente espelhado nas 1375 páginas repartidas por quatro grossos volumes, a que não faltarão alusões q.b. ao restante destino europeu e universal.

Nesta história duma menina perdida anunciada logo na capa do livro, há também essa outra história da coprotagonista desaparecida. Aliás, o ponto de partida que motivou a escrita dos percursos de vida de toda uma geração plena de indivíduos oriundos dum bairro não identificado da capital da Campânia, distribuídos por uma dezena de famílias devidamente arroladas no índice de personagens que antecede o tecido narrativo propriamente dito. se sintetiza, de igual modo, os sucessivos tratos feitos/desfeitos por que cada uma dessas figuras imaginárias de papel e tinta com direito a nome, apelido, profissão, estado civil e demais traços pessoais que os distinguem entre si. Referidos ainda meses e anos de nascimento, relações matrimoniais e extraconjugais, namoros, uniões de facto e separações, filiação política e convicções religiosas, notícia da sua morte e causas que a provocou. Não faltam as saídas de cena por assassinato, suicídio, doença ou velhice. Nada que não pudesse ocorrer em qualquer outra parte do mundo, que, segundo a entidade efabulativa, apresentava um claro movimento de desmoronamento da ordem até então vigente, revelando novas realidades a esconder males antigos.

Concluída a longa caminhada feita com palavras sobre o historial das duas amigas geniais, as que mudaram de nome ao casarem-se para de seguida o largarem ao separarem-se, da que ficou em Nápoles quanto a outra foi para Florença-Génova-Milão-Pisa para depois regressar às origens e voltar a partir, da que ao perder uma filha se perdeu completamente e desapareceu de cena para destino incerto e nunca revelado, após todo este corre-corre pelas quatro etapas da corrida, fica-se com a sensação de se estar na presença dum longo processo investigativo que cabe na tipologia genérica dum romance policial com desfecho imprevisível. Desconhece-se o paradeiro final da perita em informática, filha do sapateiro do bairro e ex-mulher dum bem-sucedido comerciante alegadamente ligado à Camorra local, mas percebe-se as razões pelas quais resolveu desaparecer da vista de todos aos 66 anos de idade. O ter podido concretizar essa sua recorrente paranoia de perder os contornos como se tratasse numa suave brisa desfeita inevitavelmente no ar. A única obra da emissora interna com direito a um título revelado, o conto «Uma amizade», funciona em toda a explanação como uma verdadeira síntese da obra monumental composta pela emissora externa. Um retrato muito fiel dum recanto muito particular da realidade italiana nascida no pós-guerra mundial a fazer a ligação com o nosso dia a dia globalizado.

 

EPÍGRAFE
«Se uma criatura de poucos anos morre, está morta, está morta, acabou, mais cedo ou mais tarde resignamo-nos. Mas se desaparece, se não se sabe mais nada dela, não há nada que fique no seu lugar, na sua vida. Nunca mais voltará, ou voltará? E quando voltar, volta viva ou morta? A cada momento te perguntas onde ela está. Anda pelas ruas feita cigana? Está em casa de gente rica sem filhos? Obrigam-na a fazer coisas terríveis e depois vendem as fotografias e os filmes? Esquartejaram-na e venderam por bom dinheiro o seu coração, para meter no peito de outra criança? os seus outros bocados estão debaixo de terra, queimaram-nos?  Ou está debaixo de terra inteira, porque morreu acidentalmente depois de a raptarem? E se nem a terra nem o fogo a receberam e ela está a crescer sabe-se lá onde, que aspeto tem agora, que aspeto terá depois, se a encontrarmos na rua reconhecemo-la? E se a reconhecermos, quem é que nos devolve tudo aquilo que perdemos dela, tudo aquilo que aconteceu quando não estávamos e ela, que era pequena, se sentiu abandonada?»
Elena Ferrante, História da menina perdida.

4 de fevereiro de 2025

Sinto a dor da tua falta...

Maria Teresa Horta
(20.05.1937 - 4.02.2025)

FALTA

Sinto a dor da tua falta
Agora que terminou
Esta aventura e tumulto

De travessia e viagem
Que a literatura entrançou

E se não sei demorar-te
Manter-te na pressa ávida
Nem pela fresta da faca
Espreitar-te nua ou vestida

Como vou continuar
A perseguir-te, a contar-te
A dar-te luz e fulgor
O resto da minha vida?

 Maria Teresa Horta, Poemas para Leonor (2012)