31 de outubro de 2025

Gustave Flaubert, anatomia realista das ilusões românticas de Madame Bovary

« Par la diversité de son humeur, tour à tour mystique ou joyeuse, babillarde, taciturne, emportée, nonchalante, elle allait rappelant en lui mille désirs, évoquant des instincts ou des réminiscences. Elle était l’amoureuse de tous les romans, l’héroïne de tous les drames, le vague elle de tous les volumes de vers. Il retrouvait sur ses épaules la couleur ambrée de l’odalisque au bain ; elle avait le corsage long des châtelaines féodales ; elle ressemblait aussi à la femme pâle de Barcelone, mais elle était par-dessus tout Ange ! »

Junto a mim tenho o romance dos romances de Gustave Flaubert, o Madame Bovary (1857), aquele que marcaria a entrada em cena das estéticas realistas da ficção francesa e europeia. Para grande espanto meu, o exemplar resgatado da estante de casa, adquirido numas férias de verão passadas em Dinard, no início de setembro de 79, surgiu-me imaculadamente livre de qualquer tipo de anotação comentada ou sublinhada, a revelar-me o facto algo insólito de nunca o ter lido neste quase meio século de silêncio discreto. O razoável conhecimento que tenho da obra ter-me-á sido transmitida por uma qualquer versão filmada com difusão televisiva. Refeito da surpresa, lancei-me à tarefa de o fazer pela primeira vez. Substituir as imagens em movimento do pequeno ecrã pelas palavras registadas nas cinco centenas de páginas que muito tempo deixaram de cheirar a tinta acabada de imprimir.

São conhecidos os traços autobiográficos do romancista, novelista e contista normando oitocentista mesclados na ficção. Comprovei-o na leitura recente de duas delas, publicadas em data posterior à destas crónicas de costumes provincianos, com uma especial incidência na Educação sentimental ou n' Um coração simples. Tal não ocorre na sua obra magna, ausente da tessitura narrativa com tanta clareza. Ao invés, tudo leva a crer terem as suas fontes sido bebidas num conjunto de faits divers dispersos, divulgados aquando da escrita e devidamente identificados e comentados pelos seus estudiosos mais chegados. O conhecimento dos espaços cénicos onde decorre a ação e passou grande parte da vida, adstritos do seu país natal, terá ajudado a criar a atmosfera ideal para relatar com verosimilhança os eventos ali ocorridos no mundo real e no ficcionado.

Emma Bovary segue de muito perto o percurso desviante de Delphine Coutourier, Louise Pradieu ou Marie Lafarge, possíveis modelos reais do drama burguês imaginado no fictício vilarejo de Yonville-l'Abbaye e na factual cidade de Rouen. Porém, a passagem daquelas histórias acontecidas para as imaginadas não é feita dum modo linear. Trai como todas elas o marido em pensamentos e em atos, mas o seu destino é depois adaptado pela instância enunciadora a uma variante pessoal mais adequada às exigências dum romance. Permanecem as aventuras amorosas extraconjugais, a aversão crescente pela vida matrimonial, o acumular de dívidas consideráveis impossíveis de saldar, a aquisição a crédito de numerosos objetos de luxo, a espiral infindável de mentiras para encobrir o adultério, a atração inexorável para a queda iminente num abismo impossível de evitar. E, como seria fácil de prever, culmina com o suicídio da protagonista. O remate final das restantes pontas soltas no relato seguem os trâmites expectáveis nas estéticas do novo género literário acabado de nascer, empenhado em retratar fielmente a vida, tal qual ela acontece no dia a dia e com toda a veracidade ao seu dispor.

No final da escrita da saga passional de Charles e Emma Bovary, o seu relator acusou o cansaço extremo sentido de trazer à luz do dia uma tal profusão de infortúnios doentios de contorno folhetinesco. Rapidamente resolveu trocar o cenário contemporâneo gaulês pela esfera da antiguidade cartaginesa espelhada na Salammbô. Lidas as três partes e trinta e cinco capítulos do livro, experimentei uma certa solidariedade com o autor. Longe da vista longe do coração, diríamos nós, apesar de nos esquecermos uma ou outra vez que a verdade dos heróis/anti-heróis dos romances só existir, de facto, nas páginas impressas do faz-de-conta que as alojam. É que o uso e abuso dum ultrarrealismo desmesurado arrisca-se a cair nas malhas dum pseudorrealismo irreal. A reação às alegadas ofensas à moral pública e religiosa, detetadas nos seis números publicados pela Révue de Paris (1856), não logrou mesmo assim impedir que essa tal Histoire des adultères d'une femme de province ‒ como lhe chamou o advogado de acusação no processo judicial que lhe foi movido  circulasse em livro e esgotasse sucessivas edições até à presente data. O poder criativo e libertador da literatura tem destas coisas, para proveito e deleite dos leitores de todos os tempos.

EPÍGRAFE
«Pela diversidade do seu humor, ora mística ora alegre, ora tagarela, ora taciturna, ora extasiada, ora indiferente, ela despertava nele mil desejos, evocando instintos ou reminiscências. Era a amante de todos os romances, a heroína de todos os dramas, o vago ela de todos os volumes de versos. Ele encontrava nos seus ombros a cor âmbar d’a odalisca no banho; ela tinha o longo corpete das castelãs feudais; assemelhava-se também à mulher pálida de Barcelona, mas era acima de tudo um Anjo!»
G. Flaubert, Madame Bovary (1857)

27 de outubro de 2025

Paraísos Perdidos

Henri Rousseau - Foret vierge au soleil couchant (1910)
[Kunstmuseum Basel - Schweiz]
“The mind is its own place, and in it self | can make a heaven of hell, a hell of heaven.”
John Milton, Paradise Lost, (1667: I, 254-255)

 LOCUS AMŒNUS                                     

Os anos dourados da minha infância foram passados alternadamente entre três paraísos irremediavelmente perdidos logo à entrada da pré-adolescência. Situavam-se esses locus amœnus distantes na Estremadura natal, como então se designava toda a região que servia de linde natural entre o Setrentrião duriense e o meridião alentejano, e se mantém, para todos os efeitos, uma das mais antigas províncias históricas portuguesas. Estou-me a referir à Praia da Areia Branca, na costa atlântica ocidental; o povoado da Abrigada, nas faldas da Serra de Montejunto; a herdade de Rio Frio, na Península de Setúbal. Por ora, vou-me ficar por este último recanto habitado pelas minhas memórias remotas.

A lembrança mais nítida que guardo deste paraíso perdido provém do perfume intenso a eucalipto, emanado duma pequena mancha florestal plantada a meio da vasta propriedade rural. Formava como que um enclave arborizado, a rodear uma pequena capela caiada de branco, ladeado pela imponente casa senhorial com ar palaciano e pelo aglomerados de habitações modestas do pessoal assalariado, dispostas à volta dum recinto descoberto comum. Era neste pátio que ocorria grande parte das minhas brincadeiras e da garotada localNunca entrei na casa dos patrões, onde a minha tia servia como cozinheira, nem na casa do santo desconhecido, que uma das minhas primas cuidava.

Fora deste recinto descoberto contíguo ao casario dos assalariados residentes, o paraíso perdido abria-se para os amplos espaços a perder de vista. Havia as valas com água corrente de rega dos arrozais, boas para pescar se se fizesse o silêncio exigido pelo meu pai e observar os touros bravos que pastavam no outro lado da lezíria. Noutros espaços mais abrigados do sol, havia a possibilidade de apanhar um ou outro sapo e uma ou outra enguia, no meio dos tanques naturais rodeados de agriões, enquanto as vizinhas faziam a lavagem da roupa e a punham a corar na relva. Momento também de merendar em plena natureza, numa altura em que ainda se não falava em piqueniques.

O final das diversões ao ar livre era marcado pela corrida veloz do Joly rumo à oficina de carpintaria onde o dono trabalhava. Ignoro se havia alguma sineta ou se era só ele que a ouvia soar. Com a chegada dos dois a casa, ceávamos todos com o cachorro a dar ao rabo à volta da mesa. Seguia-se uma conversa animada à beira da lareira, sentados nuns banquinhos de madeira feitos pelo meu tio. Por vezes, dávamos uma saltada à coletividade, para brincar com a criançada, ver televisão ou assistir à projeção dum filmeLembro-me das autoridades presentes nessas ocasiões me terem impedido de ver O Terceiro Homem, que só visionei muito mais tarde depois de atingida a maioridade.

Tempus fugit, diziam os latinos e nós repetimos por tudo e por nada. A Areia Branca e a Abrigada dos meus avós  muito se apagaram no meu horizonte de eventos, embora possam ser revisitados num espaço geográfico necessariamente transformado. O Rio Frio dos meus tios desapareceu mesmo do mapa e nem sequer permite uma visita fugaz para matar saudades. Esteve para ser o novo aeroporto de Lisboa. Projeto abandonado como muitos outros nascido em mais de meio século de devir histórico. Com o olhar de decano que o tempo cavou, recupero os paraísos perdidos da infância através dos exercício de memória que o meu mirar atento fixado no remoto consegue enxergar.

22 de outubro de 2025

Pelo toque das castanholas...

                                    CHAROLEIRAS DE ESTOI                                    

Más contento que unas castañuelas...

Se se quiser dar um toque andaluz a um canto espanhol, junte-se-lhe um par de castanholas. Para lhe imprimir ainda um pouco de salero, que seja cantada/dançada por uma bailaora/cantante com uma bata de cola flamenca, uma peineta y mantilla e um clavel rojo en la oreja. O look ideal estará criado, o ambiente de feria de abril está criada. Depois a originalidade do todo obtido pouca importância tem, quando acompanhada pelo repique de palillos de las castañuelas.

Regista a memória dos povos que as castanholas eram conhecidas dos fenícios 3000 anos. Depois ter-se-ão espalhado um pouco por toda a parte no mundo antigo e moderno, continuando populares nas culturas ibéricas, magrebinas, sefarditas, otomanas e ciganas. Em termos meramente portugueses, as iluminuras do Cancioneiro da Ajuda documentam a sua forte presença nas mãos das cantadeiras e bailadeiras das cantigas trovadorescas galaico-lusitanos.

Pelo toque das castanholas, também se chega à tradição popular algarvia de cantar as charolas em grupo e de casa em casa, no dia de Ano Novo e nos seguintes até aos Reis, a celebrar o nascimento do Deus-Menino. As castanholas são obrigatórias nestas ocasiões festivas e comunitárias, para acentuar o ritmo das canções e versos alusivos interpretados. Ouvem-se sobretudo nos meios rurais mas também em festivais urbanos em toda a época natalícia. Viva! 

Estou a poucos dias de participar em Jerez de la Frontera num encontro internacional de coros. O Ossónoba leva na bagagem  o «El vito», um baile, canto e música popular andaluza que aguenta muito bem o toque das castanholas. Fá-lo-emos à moda portuguesa, com as conchas de madeira ornadas com fitas coloridas e seguras pelos quatro dedos maiores das mãos, que também as farão vibrar e levar o público a gritar no final os olés e vivas merecidos. ¡Vale!

Cancioneiro da Ajuda
Trovadores nobres - Bailadeiras com castanholas - Jograis com saltérios

16 de outubro de 2025

João Aguiar, Díptico dos Lusitanos I: a voz dos deuses nas memórias de um companheiro de armas de Viriato

 
«Os deuses falam aos homens com vozes diferentes, conforme eles são capazes de entender. Os jovens ouvem essas vozes no estrépito das batalhas ou no ato do amor, os velhos aprendem a escutar de outra maneira. Outrora, também eu ouvi a voz dos deuses no amor, na guerra, nos sonhos e na tempestade até mesmo na fala de outros mortais. Agora, que já passaram oitenta invernos na minha vida ‒ se é que não deixei escapar alguns sem dar por tal ‒ resta-me o silêncio.»
João Aguiar, A voz dos deuses (1984)

Podemos dizer com alguma propriedade ser o romance histórico tão antigo como o próprio romance, modo narrativo autónomo nascido mais de dois milénios no mundo helenístico, pese embora a forma de retratar os eventos em determinado momento do passado tenha vindo a adaptar-se ao jeito de efabular específico dos tempos em que foram traçados. João Aguiar iniciou o seu percurso pela escrita criativa com A voz dos deuses (1984), uma crónica ficcionada centrada em factos ocorridos no decurso da guerra empreendida pela República Romana para se apoderar da totalidade da Península Ibérica, recorrendo para tal às memórias imaginárias dum companheiro de armas de Viriato. O início duma carreira dum quarto de século de sucessos repartidos por vários géneros e que só uma partida inesperada do jornalista, romancista e ensaísta interromperia abruptamente.

O despertar, consagração e imortalização do maior herói lusitano, que os tempos pré-romanos conheceram, é trazida até nós pela pena de Tongétamo, sacerdote do grande deus Endovélico e guardião do seu santuário. Assim reza a nota de apresentação sucinta da entidade enunciadora participante na relação. A ação salta da Hispânia Ulterior e Citerior romanas já conquistadas para a Mesopotâmia de entre Tagus e Anas resistente às forças invasoras. O palco dos eventos atestados desloca-se ainda a algumas localidades do antigo reino de Cineticum a sul e da Calécia a norte, para além de privilegiar a intermédia Lusitânia celta. A linha temporal abre com o nascimento do narrador em 164 AEC, em Balsa, e fecha com a notícia da sua morte em 79 AEC, no santuário do deus a quem prestava culto. Os dados mais relevantes situam-se, porém, entre 147-139 AEC, os sete anos correspondentes de comando do grande caudilho local, aquele que a História registou e a Lenda divinizou até à dimensão do Mito.

Na advertência prévia aos leitores do livro, o seu autor real tem o cuidado de destacar o facto de se tratar duma obra de ficção e não dum ensaio histórico rigoroso. Esta chamada de atenção não obstou a ter trazido para as suas páginas um retrato mais próximo do insigne guerrilheiro bárbaro do que a tradicional imagem fantasiosa pintada pela posteridade. Tendo em vista os traços peculiares do paradigma novelesco seguido, a tessitura do relato joga com a alternância ajustada entre os eventos imaginados e os acontecidos, resultando daí uma autobiografia precisa de Tongétamo alegado neto dum Rei dos Brácaros, e vislumbres dos momentos por si testemunhados do percurso existencial de Viriato, aquele que fora investido com as vírias de comandante supremo das forças lusitanas.

Obedecendo um romance histórico de primeira pessoa a um princípio de verosimilhança extremo, a notícia da morte do cronista cónio, com sangue lusitano, fenício e turdetano, é feito por uma entidade exterior ao relato central, mais precisamente por M. Hirtuleio, numa carta de Arcóbriga a Quinto Sertório. Nessa epístola, informa ter encontrado, nos escombros do antigo santuário de Endovélico, os escritos do seu falecido guardião. A fonte fictícia do documento fica assim revelado, remetendo-nos simultaneamente para a segunda parte dum díptico literário sobre a resistência lusitana à ocupação romana, publicado na década seguinte com a designação de A hora de Sertório (1994), que me apressei a resgatar da estante onde tem estado depositado desde então. A leitura está a decorrer com muito prazer e algumas surpresas de permeio. Um dia destes darei conta do seu teor, assim a voz dos deuses ostracizados do passado mo não impeçam de fazer.

10 de outubro de 2025

Le jambonneau du Mont Saint-Michel

 Le Mont Saint-Michel dans la Fête de l'Archange
« Les très riches heures du duc de Berry »

DICTON
Le Couesnon dans sa folie a mis le Mont en Normandie

 Un piquenique dans les rives du Couesnon                

A história do Mont-Saint-Michel é antiga e cheia de peripécias. Há séculos que funciona como fronteira disputada entre dois ducados franceses há muito extintos como entidades independentes, a Bretanha dos arminhos negros em fundo branco e a Normandia dos leões dourados em campo vermelho. Aquele que já foi bretão e deixou de ser e voltou a ser normando tal como ao nascer. Dizem que terá sido do Couesnon, que na sua corrida furiosa para o mar, colocou o monte na orla direita do seu leito.

Nas diversas vezes que passei por ali, tive sempre o ensejo de testemunhar a impetuosidade extrema da corrente daquele riacho fronteiriço e a magnitude desmedida da maré que cobre todo o seu largo estuário em menos dum nada. Nessas ocasiões de preia-mar total, a formação rochosa converte-se numa ilhota perdida na vasta baía do Mont-Sant-Michel no Canal da Mancha, o grande braço de mar pertencente ao Oceano Atlântico que separa a Pequena Bretanha francesa da Grã-Bretanha inglesa.

Deixando de parte as conflitos ancestrais transfronteiriças gaulesas, carregados de mitos e contramitos ancestrais, vem-me à memória uma dessas visitas estivais ao site touristique du pays montois, associada a um piquenique memorável na margem oriental do rio, realizado numa zona verdejante aprazível junto ao parque de estacionamento. Fi-lo na companhia dum grupo animado de copains et copines, ávidos de ver/rever a abadia dedicada a Saint-Michel, o anjo mensageiro divino que deu nome ao monte.

Estendida a toalha usada nestas alturas e postos os pâtées, rillettes, andouilles, fromages, fruits et boissons habituais, a nossa anfitriã Gigi avisou que ia comprar la spécialité d'un traiteur du coin qu'il fallait forcément goûter. Voltou ao fim duma hora bem contada. A demora devera-se mais à turba que entupia as ruelas exíguas do burgo do que à distância percorrida. Trouxe-nos um jambonneau de porc plus bon marché qu'une omelette de la Mère PoulardDe facto, há surpresas que superam as nossas melhores expectativas.

 Jambonneau de porc & Omelette de la Mère Poulard

5 de outubro de 2025

Majestades fidelíssimas desconstruídas

Altezas reais & majestades fidelíssimas caídas

O cardeal Dom Henrique recusou o tratamento de Sua Majestade, quando imprevistamente subiu ao trono, por morte do sobrinho-neto em Alcácer-Quibir. A seu ver, o título era demasiado imponente para ser usado por um mero mortal. Manteve, assim, a designação de Sua Alteza Real no curto período de tempo em que pela Graça de Deus foi Rei de Portugal e dos Algarves (1578-1580).

Dom Sebastião foi o único membro da Casa de Avis a usufruir dessa honraria, que lhe foi outorgada por Filipe II de Castela. Fê-lo na entrevista de Guadalupe (1577), dado o sobrinho ter acalentado o desejo de juntar aos reinos, senhorios e domínios lusitanos a conquista de África. O resultado dessa aventura está bem à vista, com a perda da vida na Batalha dos Três Reis (1578).

Os Braganças seguiram o exemplo dos Áustrias e mantiveram a titularia, estilos e honras como fórmulas de endereçamento real já usuais por todo o lado. Não descansaram, porém, até terem um estatuto similar à Sa Majesté Très Chrétienne gaulesa e Su Majestad Católica hispânicaDom João V conseguiu-o finalmente da Santa Sé, ao obter o epíteto de Sua Majestade Fidelíssima (1748).

A grandiosidade, imponência e excelência majestática e fidelíssima há muito ruíram sem deixar saudade ou rasto visível.. Cavaram à sua volta uma realeza destituída, exilada, caída. Os ventos republicanos varreram-na de vez do nosso horizonte de eventos. A ostentação parasitária monárquica persiste na memória anquilosada de alguns à espera duma bastilha redentora que há muito tarda.

30 de setembro de 2025

Gustave Flaubert: Salammbô, uma história cartaginesa de amor e morte

« Salammbô était envahie par une mollesse où elle perdait toute conscience d’elle-même. Quelque chose à la fois d’intime et de supérieur, un ordre des Dieux la forçait à s’y abandonner ; des nuages la soulevaient, et, en défaillant, elle se renversa sur le lit dans les poils du lion. Mâtho lui saisit les talons, la chaînette d’or éclata, et les deux bouts, en s’envolant, frappèrent la toile comme deux vipères rebondissantes. Le zaïmph tomba, l’enveloppait ; elle aperçut la figure de Mâtho se courbant sur sa poitrine. — « Moloch, tu me brûles ! » Et les baisers du soldat, plus dévorateurs que des flammes, la parcouraient ; elle était comme enlevée dans un ouragan, prise dans la force du soleil. »
Gustave Flaubert, Salammbô (1862)

Quando duas dezenas de anos estive em Cartago, limitei-me a ver as ruínas grandiosas da antiga colónia latina e muito pouco ou nada da cidade-estado cartaginesa, arrasada pela República Romana no final das Guerras Púnicas (264-146 AEC)Carthago delenda est, não se cansava de arengar o senador Catão-o-Velho no final dos seus discursos. E assim se fez, não restando depois pedra sobre pedra. Para conhecer minimamente a malha urbana primitiva, desenhada ardilosamente pela lendária rainha Dido e visitada pelo audacioso Eneias, tive de recorrer à reconstituição imaginária de Gustave Flaubert, plasmada nas quatro centenas e meia de páginas de paixões trágicas e destinos violentos do Salammbô (1862), um típico romance histórico de feição romântica enraivecida com efeitos arqueológico-ficcionados de realidade ilusória.

Entusiasmado com a experiência das viagens ao Oriente (1849-1851 e 1858) e saturado com a polémica gerada em torno do processo judicial movido à publicação da Madame Bovary (1856), o grande mestre normando das letras gaulesas resolve abandonar o quadro contemporâneo do romance moderno europeu, que ajudara a criar, e lança-se nos meandros discursivos do mundo clássico antigo, sediado na exótica metrópole fenícia fundada no norte de África, na cercania da atual Túnis. A rebelião das forças mercenárias bárbaras contra a cidade cartaginesa que as contratara (241-238/237 AEC) e falhara o pagamento do soldo que lhes era devido, marca o espaço cénico do relato centrado em Salambô e Matão, protagonistas duma história impensável de amor e morte entre a filha do sufita Amílcar Barca e o chefe líbio dos rebeldes.

Lidos os quinze capítulos do relato ou cantos dum poema épico composto em prosa, depois de ultrapassadas as descrições sem fim de batalhas travadas, de assaltos efetuados, de pilhagens cometidas, eivadas de incêndios, massacres, desolações sem fim, sobejam ainda alguns flashes de romance, paixão e violência dos heróis/anti-heróis trazidos dos eventos históricos acontecidos para os fabulados pela verve criativa do cronista oitocentista. O esquema tradicional do encontro-desencontro-reencontro toma conta de modo peculiar dos sucessos trazidos à boca de cena. O chefe dos rebeldes bárbaros enamora-se da filha do sufeta cartaginês mal a vê pela primeira vez, submetendo-a aos seus desejos lúbricos decorrido algum tempo. O contexto de guerra que os coloca em campos opostos impede que a relação dos dois prospere e conduz ao desenlace do idílio por si vivido. O mercenário líbio é executado pelo poder instituído na cidade púnica vencedora do conflito e a sua apaixonada acaba por sucumbir logo de seguida à morte do seu amor caído. Separados no aquém, unidos no além, ironia trágica duma subjetividade anticlássica ainda avessa à objetividade dum naturalismo ainda longe de vingar.

As contendas sangrentas ininterruptas, pejadas de mil atrocidades e ignomínias sem par, entabuladas vinte e um séculos antes, foram incapazes de afastar o público leitor coetâneo da sua companhia, transformando a obra num êxito de vendas inusitado, a despeito dos pareceres negativos que a crítica literária especializada então lhe teceu sem dó nem piedade. As preferências estéticas vigentes nos nossos dias dificilmente olhariam pare este singular panorama com a mesma benevolência. Felizmente para todos nós, as atuais edições têm o cuidado de nos fornecerem um conjunto de anotações, anexos e documentos variados que facilitam a compreensão cabal do texto. Neste caso preciso, a inclusão dum capítulo explicativo do autor dá-nos uma imagem clara do árduo processo investigativo efetuado, permitindo-nos também entender melhor as hipóteses compositivas por si seguidas. Depreender, v.g., o poder inexorável do devir histórico, associado tanto à representação dos factos reais vividos como recriação dos palcos idealizados das ações narradas.

EPÍGRAFE
«Salammbô foi tomada por uma suavidade que a fez perder todo o sentido de si mesma. Algo íntimo e superior, uma ordem dos deuses, obrigou-a a render-se; nuvens ergueram-na e, desfalecida, caiu de costas na cama, sob a pele do leão. Mâtho agarrou-lhe os calcanhares, a corrente de ouro rebentou e as duas pontas, voando, atingiram o leito como duas víboras saltitantes. A túnica caiu, envolvendo-a; ela viu o rosto de Mâtho curvado sobre o seu peito. — "Moloch, estás a queimar-me!" E os beijos do soldado, mais devoradores do que chamas, percorreram-na; como se tivesse sido levada por um furacão, apanhada pela força do sol.»
G. Flaubert, Salammbô, (1862)