21 de janeiro de 2025

Umberto Eco, o segredo do ponto fixo, a ilha do dia antes e a arte do romance

«D’altra parte che, malgrado le loro virtù, i Romanzi abbiano i loro difetti, Ro-berto avrebbe dovuto saperlo. Come la medicina insegna anche i veleni, la me-tafisica turba con inopportune sottigliezze i dogmi della religione, l’etica racco-manda la magnificenza (che non giova a tutti), l’astrologia patrocina la supers-tizione, l’ottica inganna, la musica fomenta gli amori, la geometria incoraggia l’ingiusto dominio, la matematica l’avarizia – così’ l’Arte del Romanzo, pur avvertendoci che ci provvede finzioni, apre una porta nel Palazzo dell’Assur-dità, oltrepassata per leggerezza la quale, essa si richiude alle nostre spalle.»
Umberto Eco, L’isola del giorno prima (1994)

Ao reler de quando em vez os escritos de Umberto Eco, chego sempre à conclusão de ter circulado no mundo das letras muito mais à vontade como um ensaísta de prestígio do que como um autêntico romancista. A sua veia criativa está muito mais vocacionada para a vertente multifacetada de filósofo, semiólogo, linguista ou bibliófilo do que no espelhado nas páginas de pura ficção publicadas ao longo duma trintena e meia de anos. O próprio ato de contar uma história está invariavelmente associado a um qualquer evento de traçado científico que, em certos momentos do devir histórico, ocuparam a mente curiosa dos homens constantemente insaciáveis de novas descobertas e alargamento de conhecimentos. É o que se passa, v.gr., com A ilha do dia antes (1994), em que o grande objetivo a atingir assenta na resolução do mistério do fluxo do mar, do enigma da pluralidade dos mundos, do puzzle da doença de amor ou melancolia erótica, do segredo do ponto fixo e do cálculo das longitudes, entre muitos outros quesitos que lhe estão intimamente associados.     

O académico bolonhês, depois de ter andado em busca do livro desaparecido da Poética de Aristóteles, de ter encontrado/perdido esse tão desejado tratado sobre a «Comédia» n'O nome da rosa, voltou-se para o problema da rotação da terra, explanado n'O pêndulo de Foucault, entrando, assim, definitivamente nos labirintos literários do faz-de-conta ancorados nas meadas por desenlear da verdades por revelar do dia a dia. Não contente com os desafios colocados com a localização exata da Terra Incógnita Austral, dos meridianos e antimeridianos ou antípodas, bem como com a precisa identificação das Ilhas de Salomão, aquelas que separariam o dia anterior do dia seguinte avançados nest'A ilha do dia antes ‒, o ensaísta-ficcionista italiano ainda se envolveu a trilhar os percursos de Baudolino em demanda do Reino do Prestes João, em recuperar as memórias perdidas através dos livros aos quadradinhos referidos n'A misteriosa chama da rainha Loana, em penetrar nos meandros secretos dos Protocolos dos Sião à sombra d'O cemitério de Praga ou no poder incontornável da informação jornalística no Número zero, com que a lei da vida/morte o obrigou a encerrar a longa digressão pelos universos romanescos da escrita.

Assentando amarras no terceiro romance da série, sintetizemos que se trata duma obra aberta, com princípio, meio e ausência dum final decisivo, anomalia devidamente comentada pelo narrador exterior à história contada, num clarificador colophon autoral, convertido no derradeiro capítulo do relato. É esta entidade enunciadora externa que nos revela parte do destino do protagonista do drama por si vivido no já distante verão de 1643, trazendo à luz do dia os papéis de cariz autobiográfico então redigidos. O jovem fidalgo piemontês Roberto de la Grive, embarcado na nau Amarilli, naufragara nos mares do sul, tendo a jangada que o salvara embatido contra a proa do Daphne, encalhado numa baía entre duas ilhas, supostamente situadas na linha imaginária de mudança de data. É neste navio aparentemente abandonado, mas repleto dos mais extraordinários despojos, que se abriga e passará os restantes dias da sua existência conhecida, na fronteira fascinante que separava o hoje do ontem ou o ontem do seu amanhã. Nos tempos livres, que todos o eram um pouco, decide contar a sua história possível com roupagem de romance, não aquela que vivera, mas sobretudo a que poderia ter vivido, caso os fados nefastos assim o tivessem permitido. Recorre à práxis barroca então vigente da novela histórica, exemplar, cortesã, sentimental de amores e aventuras peregrinas, com alguns traços picarescos à mistura e até um ou outro de extração bizantina. A fantasia é contagiante sem nunca abandonar, todavia, as linhas estritas do verosímil.

A interrupção brusca dos escritos do náufrago solitário num galeão largado à sua sorte nos antípodas, deixados registados em cartas, reflexões, esboços fictícios e digressões discursivas de natureza científica, metafísica e cosmológica, levou o seu editor/divulgador moderno a tecer um par de hipóteses especulativas sobre o sua saída de cena daquele teatro de memórias. Fá-lo como remate da reconstituição por si encetada em quatro centenas e meia de páginas. Contenta-se com a solução simplista de considerar a história do Senhor de La Grive como a dum apaixonado infeliz, lembrando que na vida real as coisas acontecem porque acontecem e que só na Terra dos Romances é que parecem acontecer por uma qualquer finalidade ou providência. Que tudo fique em aberto e que os papéis deixados a bordo daquela embarcação fantasma seiscentista mais não sejam do que meros exercícios maneiristas, redigidos à maneira daquele século tão pródigo em gente sem alma. Eccolo!

1980      -      1988      -      1994      -      2000     -      2004      -      2011      -      2015
EPÍGRAFE
«Por outro lado que, apesar das suas virtudes, os Romances têm os seus defeitos, Roberto já devia sabê-lo. Tal como a medicina ensina também os venenos, a metafísica perturba com importunas subtilezas os dogmas da religião, a ética recomenda a magnificência (que não convém a todos), a astrologia patrocina a superstição, a ótica engana, a música fomenta os amores, a geometria encoraja o injusto domínio, e a matemática avareza ‒ assim a Arte do Romance, embora advertindo-nos de que nos fornece ficções, arte uma porta no Palácio do Absurdo, que ao ser ultrapassada por ligeireza, se fecha atrás das nossas costas.»
Umberto Eco, A ilha do dia antes

15 de janeiro de 2025

Chavela Vargas, la voz áspera de ternura de la dama del poncho rojo

    Chavela Vargas    

Vengo de donde viene | Mi amigo el viento, | Traigo aromas de luz | Que provaron los cerros, | Y armonias calladas| De la noche mas bella. ||  No pregunten quien soy, | Porque no se los digo, | Solo sé que a dónde voy, | El amor va conmigo, | Y a puro valor, | He cambiado mi suerte, | Hoy voy hacia la vida, | Hoy voy hacia la vida, | Antes iba a la muerte | | Cuando pedi justicia, | No me la dieron, | Cuando quise querer, | A mi no me quisieron, | Cuando un nido forme, | Con traición lo quemaron, | Cuando a cristo recé, | Ni me rezos llegaron. || No pregunten quien soy, | Porque no se los digo | Solo sé que a dónde voy, | El amor va conmigo | Y a puro valor, | He cambiado mi suerte, | Hoy voy hacia la vida, | Hoy voy hacia la vida, |  Antes iba... Antes iba... ||| A la muerte! 

Por eso no me he muerto porque no me voy a morir nunca...

Quando me mudei aqui para Faro, ainda havia na cidade uma boa dúzia de livrarias. Algumas até vendiam discos ainda em vinil e em formatos distintos. Aos maiores chamava-se álbuns, abreviado em LP. Aos menores com duas ou quatro faixas dava-se o nome de single e não me recordo se algo mais. Foi na versão mais completa ou longa duração que descobri pela primeira vez a voz e o rosto de Chavela Vargas. Não mantive na memória as rancheras, corridos, cumbias, boleros e tangos ali registados, nem sequer o ano em que tal ocorreu. Por certo, na viragem da década de 70 para a de 80.

Nos dias, meses e anos que se seguiram, os discos grandes e pequenos registados em vinil ou compactados, as cassetes áudio em fita magnética que fui colecionando foram-me dado a conhecer e apreciar as particularidades daquela voz áspera de ternura tão diferente de todas aquelas que até então tinha ouvido. Depois, os vídeos disponibilizados na Net revelaram-me o modo sui generis que a dama do poncho vermelho tinha de interpretar as muitas histórias cantadas como se estivesse a contar a sua própria vida numa longa e sentida confidência a quem as quisesse atentamente escutar.

Muito se tem efabulado sobre a arte dum dos símbolos maiores da alma latino-americana. Há até quem a descreva através dos versos de Jorge Luis Borges, ao compará-la ao cristal da solidão e sol de agonias gritadas, sussurradas, rezadas e choradas do olvido ao som duma guitarra. Não juntarei mais palavras às já ditas e reditas, porque as sinto como minhas e não diria melhor. Carpir a sua morte também seria inútil, pois como afirmou num recital na Sala Caracol de Madrid em 1993: yo cuento una historia de amor cada noche que canto, por eso no me he muerto porque no me voy a morir nunca...

9 de janeiro de 2025

Umberto Eco à maneira de Arcimboldo

ARCIMBOLDO
Pormenores da Primavera e de Rodolfo II de Habsburgo
[Paris, Musée du Louvre]

Este cálice pareceu-lhe a certa altura como que uma urna, e pensou que no meio daquelas rochas estaria inumado o cadáver do padre Gaspar. Já não visível, se a ação da água o havia primeiro revestido de macio coralino, mas os corais, absorvendo os humores terrestres daquele corpo, haviam tomado a forma de flores e frutos de jardim. Talvez dentro em pouco ele reconhecesse o pobre velho transformado numa criatura até então estrangeira ali em baixo, o globo da testa fabricado com um coco peluginoso, dois pomos passados a compor as bochechas, olhos e pálpebras tornados duas tâmaras amargas, o nariz de serralha verrugosa como o esterco dum animal; por baixo, no lugar de lábios, figos secos, uma beterraba com o seu ramo apical para o queixo, e um cardo rugoso em ofício de garganta; em ambas as têmperas duas casta-nhas com ouriço a fazer de farripas, e por orelhas as duas cascas duma noz aberta; com dedos, cenouras; de melancia o ventre; de marmelo os joelhos.

Umberto Eco, A ilha do dia antes (1994)

3 de janeiro de 2025

Proveito & Deleite

TEATRO LETHES ‒ FARO
(Antigo Colégio de Santiago Maior)
Omne tulit punctum qui miscuit utile dulci, | lectorem delectando pariterque monendo...
[Recebe sempre os votos, o que soube misturar o útil ao agradável, pois deleita e ao mesmo tempo ensina o leitor]
Horati, De Arte Poetica Liber (343-344) || Horácio, Arte Poética (343-344) 

COLÉGIO ‒ TEATRO ‒ ACADEMIA

« Monet Oblectando »

Bem ao fundo da rua que leva o seu nome, ergue-se o Teatro Lethes, um edifício majestoso, feito ao gosto maneirista chão, que todos os locais reconhecem sem problemas, muito embora a sua identificação não esteja inscrita na fachada central ou em qualquer outro local imediatamente visível por quem ali passa. Em contrapartida, poderá ler na cartela do frontão duas palavras enigmáticas para muitos, numa língua apontada à boa como sendo o latim: Monet Oblectando. A curiosidade de alguns levá-los-á a consultar um dicionário, que as traduzirá, tout court, por «instruir divertindo». Um conhecimento histórico mais pormenorizado do imóvel inspirar-nos-á a adaptar a sentença para: «ensina divertindo-te» ou «diverte-te aprendendo».

Fundado em 1605 pelo então Bispo do Algarve, D. Fernando Martins Mascarenhas, como Colégio de Santiago Maior, a nova instituição tinha como principal função a educação. A instrução ministrada pela Companhia de Jesus estaria obrigatoriamente presente, o que, à data, não garantiria uma diversão por aí além, pelo menos à luz dos parâmetros atualmente vigentes. Como diria Camões, «mudam-se os tempos mudam-se as vontades». Cumpriu a sua missão formativa em Faro até 1759, ano em que os bens da ordem religiosa criada por Santo Inácio de Loyola foi banida do país e domínios ultramarinos e o estabelecimento de ensino não superior foi obrigado a fechar portas para nunca mais as voltar a abrir nos mesmos termos.

O antigo Colégio dos Jesuítas entra numa segunda fase da sua vida, quando o médico italiano Lázaro Doglioni o compra em hasta pública e converte numa teatro digno da capital do Reino dos Algarves. A inauguração dá-se no dia do aniversário da rainha D. Maria II, 4 de abril de 1845, batizando-o de Teatro Lethes, em memória do mítico rio do esquecimento sito no Hades helénico, cujas águas prodigiosas tinham o poder de obnubilar as agruras da vida. Neste caso, as vicissitudes infligidas pelas Invasões Francesas e Lutas Liberais, que haviam deixado o país em ruínas. A  inscrição latina significaria então que quem cruzasse as suas portas gozaria o duplo tópico horaciano do «Proveito & Deleite», i.e., da diversão e aprendizagem conjuntas.

Atualmente o teatro partilha as suas instalações de antigo colégio com outras instituições de interesse local, como será o caso da Academia Sénior Monet Oblectando. dias recebi o convite de me associar às suas atividades letivas na área que mais me agradasse. Aceitei com prazer a dinamização dum seminário inserido na esfera da Cultura Literária, aquela que ocupou grande parte da minha carreira docente. Iniciarei o meu regresso especial às lides académicas neste início de ano novo logo após os Reis. A ver vamos se o tal proveito e deleite do ensino e da diversão se volta a repetir, sete anos depois ter dado a minha última aula de bifurcações do tudo e do nada em final de linha. Vontade não falta se para tal houver engenho e arte.

30 de dezembro de 2024

Elena Ferrante, histórias do tempo intermédio de quem vai e de quem fica

«Andarsene. Filar via definitivamente, lontano dalla vita che avevamo speri-mentato fin dalla nascita. Insediarsi in territori ben organizzati dove davvero tutto era possibile. Me l'ero battuta infatti. Ma solo per scoprire, nel decenno a venire, che mi ero sbagliata, che si trattava di una catena con anelli sempre più grandi: il rione rimandava alla città, la città all'italia, l'Italia all'europa, l'europa a tutto il pianeta. E oggi la vedo cosi: non è il rione a essere malato, non è Napoli, è il globo terrestre, è l'universo, o gli universi. E l'abilità consiste nel nascondere e nascondersi lo stato vero delle cose.»
Elena Ferrante, Storia di chi fugge e di chi resta (2013)

Na natureza, um rio inicia sempre o seu curso numa nascente e corre depois a maior ou menor velocidade para a foz. Tudo começa, regra geral, no alto duma montanha e termina invariavelmente numa zona baixa junto ao mar. Entre o partir e o chegar, vai ganhando caudal com os eventuais afluentes encontrados no caminho. Na literatura, os chamados romans fleuve também traçam percursos semelhantes, sobretudo naqueles em que se traça com todo o vagar disponível do mundo o nascimento-vida-morte duma personagem ou dum conjunto delas, ligadas entre si por um qualquer tipo de amizade, rivalidade ou camaradagem, em que os laços de sangue por vezes presentes desempenham um papel muito variado.

É o que se passa, de certo modo, com as duas amigas retratadas por Elena Ferrante na Tetralogia Napolitana. O grande rio narrativo formado pelos itinerários de Lila Cerrullo e de Lena Greco encontra no seu trajeto uma ou várias ilhas de permeio que o subdivide em dois braços discursivos autónomos, repartidos alternadamente por diversos capítulos. Tanto o caudal central como os laterais recebem outros riachos menores, constituídos pelas vidas individuais/coletivas dos vários núcleos familiares presentes na saga. Rios e afluentes surgem devagar na «infância» e «adolescência» das heroínas [vol. i], ampliam-se na «juventude» [vol. ii], particularizam-se no «tempo intermédio» [vol. iii] e caminham a passos largos para a «maturidade» e «velhice» [vol. iv]. Esse destino final, porém, só o conheceremos quando abrirmos a etapa final da saga, aquela em que a morte talvez visite uma das figuras nucleares, que só pode a da narrada, já que a narratária se terá de manter viva para manter a coerência realista até então seguida sem a atraiçoar.

Fiquemos, entretanto, na História de quem vai e de quem fica (2013), i.e., na história paralela da narradora-protagonista, que se mudou para Florença depois de casada, e na história da deuteragonista-narrada, que ficou em Nápoles nesta terceira fase da série. As suspeitas de se tratar duma espécie de autobiografia da autora avolumam-se a cada passo, ínvias de aferir, por se ignorar a sua identidade. Esta não ousa revelar as suas coordenadas pessoais, talvez por temer um confronto com os nomes/apelidos dados às personagens maiores/menores da ficção por si urdida, aquelas que, por definição, tanto lhes faria serem chamados dum modo ou doutro. Tão pouco se fica a saber de ciência segura em que bairro da periferia napolitano situou o núcleo central da ação. Dizem tratar-se de Rione Luzzatti, um subúrbio pouco turístico que não me recordo de ver referido no livro. Lapso meu, por certo, ou fantasia de alguns visitantes da cidade, prováveis exploradores do tal túnel-fronteira que o isolará decisivamente da restante teia urbana.

Intencionalmente ou não, Elena-Ferrante/Greco omite o título dos dois romances que a criadora interna da crónica napolitana compôs. Em contrapartida, não se coíbe de registar os ecos das críticas então tecidas a seu respeito, as elogiosas e as hostis, idênticas às que atualmente se veem registadas nos meios de comunicação com expressão global a propósito da obra que temos entre mãos. Uma autorreferência disfarçada volta a ser uma conjetura muito forte a ter em atenção. Pouco importa. O sucesso editorial dos dois corpos literários resulta uma realidade inquestionável, com caminho aberto à tradução e à divulgação fora das lindes italianas. Em literatura, tudo é simultaneamente um ser/não-ser indissociáveis em todas as linhas. Os resultados plasmados na receção duma obra depende de muitas subjetividades, entre as quais sobressaem as expressas pelos leitores, as únicas entidades capazes de transformar um bestseller numa obra-prima. Contemos com essa realidade.  
EPÍGRAFE
«Ir embora, isso sim. Pirarmo-nos dali para sempre, para longe da vida que havíamos vivido desde que nascêramos. Fixar-nos em  sítios bem organizados onde tudo fosse realmente possível. Eu conseguira pôr-me a andar. Mas viera a descobrir, nas décadas que se seguiram, que me enganara, que se tratava duma  corrente cujos elos eram cada vez maiores: o bairro remetia para a cidade, a cidade para a Itália, a Itália para a Europa, a Europa parta todo o planeta. E hoje vejo as coisas assim: não é o bairro que está doente, não é Nápoles, é o globo terrestre, é o universo, ou os universos.» 
Elena Ferrante, História de quem vai e de quem fica,. Lisboa, Relógio d'Água (19)

24 de dezembro de 2024

500 anos do nascimento de Luís Vaz de Camões e da morte de Vasco da Gama

Vasco da Gama & Luís de Camões
Medalha do quarto centenário da descoberta o caminho marítimo da Índia

Vasco da Gama morreu na véspera de Natal de 1524, o ano que se convencio-nou aceitar para o nascimento de Camões. As duas vidas tocaram-se (quase).
Frederico Lourenço, Camões. Uma antologia (2024)

Alfa & Ómega

Num dia como hoje, há precisamente 500 anos, morria em Cochim Vasco da Gama (1469-1524), o navegador lusíada que fez a ligação marítima entre Portugal e a Índia (1498), locais onde vira a luz do dia pela primeira e última vez. Jaz no subcoro da igreja do Mosteiro dos Jerónimos em Lisboa, a par de Luís de Camões (1524-1580), em dois monumentais túmulos neomanuelinos criados pelo escultor Costa Mota ali colocados em 1880, o Almirante-Mor dos Mares da Índia no lado norte e o Príncipe dos Poetas Portugueses no lado sul.

Na véspera do Natal, celebra-se uma das festividades litúrgicas mais significativas do catolicismo de raiz ocidental, o nascimento dum pregador religioso judeu que estaria na origem do Cristianismo. Não se sabe de ciência certa o local e data da efeméride, havendo alguns mesmo que duvidam ter tido uma existência real, mas isso são contas doutro rosário. Festeja-se e pronto. Presépios alusivos, pinheiros natalícios, sapatinhos na chaminé, prendas a granel, iluminações citadinas e o diabo a sete às custa do Menino Jesus.

Diz-se por aí que Cervantes e Shakespeare terão morrido a 23 de abril de 1616. Diz-se mas erradamente, dado que, à época, Madrid já se regia pelo novo calendário gregoriano, enquanto Londres se mantinha no velho calendário juliano, separados entre si por 10 dias. Acasos à parte, o alfa de Camões e o ómega de Gama têm uma margem de veracidade maior, dado que se prescinde da indicação dum dia exato e se refere apenas ao ano de 1524, aquele em que o vate terá sido dado à luz do dia e o nauta a viu pela derradeira vez.

Ignoro se existe um plano comemorativo do trespasse do descobridor de rotas oceânicas. Provavelmente será tão envergonhado e insípido como o dedicado ao advento do trovador de cantos épicos. É que tanto um como outro continuam a ser tão ostracizados pelos órgãos da cultura, como se fossem personae non gratae nesta res publica de casos e casinhos efetivos e efabulados pelos artífices de polémicas feitas à medida da clientela política da altura. É pena, porque datas similares só se voltarão a repetir daqui a meio milénio e nenhum de nós estará cá para as testemunhar pessoalmente. É certo e sabido.

18 de dezembro de 2024

Olhares d'el-Rei Dom Sebastião olhados por Cristóvão de Morais

Dom Sebastião (c. 1571-1574)
Cristóvão de Morais
[Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga]

Olhem para mim! ‒ parece dizer-nos Dom Sebastião (1554-1578) ‒, sou rei desde os 3 anos de idade e, mais dia menos dia, vou ser imperador do mundo. Portugal e Algarves d'Aquém e d'Além-Mar em África não me chegam como reinos há muito herdados pela Graça de Deus. Os Senhorios da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia são só o início dum Quinto Império que a dimensão dos territórios antanho dominados por Assírios, Persas, Gregos e Romanos nunca alcançaram.

Olhem-no, como eu o estou a olhar agora! diz-nos o galgo de caça d'O Desejado, muito compenetrado do seu papel ‒, o derradeiro Cavaleiro-Cruzado da Cristandade a terras da Moirama já está de espada em punho e de armadura engalanado. Levar-me-á com ele ou estou aqui só como figura de decoração num quadro de aparato maneirista. Olho-o e quase lhe beijo a mão, mas o olhar majestático do meu soberano já está virado para outros horizontes distantes, onde o olhar dum canis lupus familiaris não seria muito bem olhada.

Olhem-no, pronto para partir para Marrocos! ‒ sugere-nos o olhar artístico de Cristóvão Morais, ao retratar a meio corpo O Encoberto na flor da idade, que nunca chegou a abandonar, teria então 17 anos (ou talvez 20) e finar-se-ia ingloriamente no campo de batalha de Alcácer-Quibir aos 24 anos. O bisneto por partida dupla, a materna e a paterna, de Dom Manuel Primeiro, não regressaria vivo de Marrocos, à procura duma grandeza sonhada, logo convertida em pesadelo para todos aqueles que seguiram e lhe sobreviveram.    

O olhar enigmático e distante do único monarca lusitano morto a terçar armas continua a olhar-nos como uma das joias maiores expostas destacadamente no Museu de Arte Antiga de Lisboa, ali mesmo às Janelas Verdes. Diz-se também que o seu corpo remido se encontra sepultado no Convento de Santa Maria de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos, num túmulo monumental, mas, aí, o seu olhar real não se deixa olhar por ninguém. Só o podemos imaginar com algum esforço, com o poder dos mitos e contramitos nos concedem.