18 de fevereiro de 2025

Rato de biblioteca

Carl Spitzweg, Der Bücherwurm, 1850
[Berlim, Museum Georg Schäfer]
«Os livros escrevem-se para se fazerem ouvir, não para estarem calados [...] não se escreve só por escrever, escreve-se para fazer mal a quem quer fazer mal. Um mal de palavras contra um mar de murros e pontapés e instrumentos de morte.»
Elena Ferrante, História da menina perdida (2014)

Nos dias em que havia um canal de televisão entre nós, sobrava muito mais tempo livre dedicado à leitura. A realidade é que nessa época cinzenta de brandos costumes, os livros não eram um bem essencial. Nem de longe. Os preços proibitivos para os rendimentos não permitiam o luxo de os adquirir. A ida às bibliotecas impunha-se. Assim estas estivessem à nossa disposição e nos oferecessem os títulos a que ansiávamos aceder.

O prazer pela leitura revelou-se-me muito cedo. Primeiro limitei-me à decifração periclitante das histórias aos quadradinhos que me chegavam às mãos. Lembro-me das tiras coloridas publicadas por alguns jornais de tiragem nacional. Depois restava-me o prazer de entrar nas livrarias do meu burgo, para olhar as capas dos livros e tocar num ou outro se me fosse possível. Ficaram-me os nomes sonantes da Parnaso, Tália e Tertúlia.

O gosto pelos livros impressos a cheirar a tinta atingiu o seu pleno quando a carrinha da Gulbenkian começou a visitar a minha cidade, carregada de tomos na biblioteca itinerante sobre rodas. Por essa altura, também, passei a usufruir dos exemplares acabadinhos de chegar à biblioteca de turma que a minha turma do Ciclo Preparatório começara a organizar de Língua, História Pátria, como então julgo se chamava a disciplina de Português.

Não sou nem nunca fui um rato de biblioteca. Sempre que recorri aos seus (em)préstimos fi-lo pela ausência de livros em casa. Foi esta necessidade absoluta que me levou a frequentar com algum afinco a biblioteca municipal do parque da cidade da rainha. Nesse in illo tempore distante, explorei estante atrás de estante, autor atrás de autor, livro atrás de livro. Depois, comecei a compor a minha própria biblioteca pessoal com a qual coabito.

Junto a mim, tenho agora comigo a Tetralogia Napolitana de Elena Ferrante, ancorada na história das duas amigas geniais que tinham uma paixão muito especial pela leitura e alguma aptidão pela escrita. Tanto uma como outra eram leitoras assíduas à biblioteca do bairro onde viviam. Uma delas requeria em seu nome e da família o número máximo permitido, que os livros se escrevem para serem ouvidos e não para estarem calados. Nem mais.

12 de fevereiro de 2025

Computadores: a mão luminosa de Deus na escrita do Decálogo no Monte Sinai

                 Left right human brain concept                 
«Nos dias que se seguiram ela quis que nos encontrássemos na Basic Sight. Fechámo-nos na sua sala e ela sentou-se ao computador, uma espécie de televisor com um teclado, muito diferente daquele que havia algum tempo mostrara a mim e às meninas. Carregou no botão de abertura, meteu retângulos escuros dentro de blocos cinzentos. Aguardei, perplexa. No ecrã apareceram soluços luminosos. Lila começou a bater no teclado, fiquei de boca aberta. Nada que se pudesse comparar a uma máquina de escrever, mesmo que fosse elétrica. Ela acariciava as teclas cinzentas, com as pontas dos dedos e o texto nascia no ecrã em silêncio, verde como erva acabadas de despontar. Aquilo que ela tinha na cabeça, agarrado a qualquer córtex do cérebro, parecia derramar-se para o exterior por milagre e fixar-se no nada do ecrã. Era potência  que apesar de passar pelo ato, continuava a ser potência, um estímulo eletroquímico que se transformava imediatamente em luz. Pareceu-me a escrita de Deus como ela devia ter sido no Sinai, no tempo dos mandamentos, impalpável e tremenda, mas com um efeito concreto de pureza.»
Elena Ferrante, História da menina perdida (2014) [Vol IV, cap. 101, pp.273-274]
No tempo em que os computadores se chamavam pomposamente cérebros eletrónicos e tinham o tamanho colossal duma casa, entrei pela primeira vez em contacto com o universo obscuro da cibernética. O meu batismo nesse universo inexplorado deu-se numa disciplina de informática que o antigo Instituto Comercial de Lisboa começara a ministrar nesses dias conturbados de vastas mudanças e eu ainda frequentava a contragosto. Viviam-se então os anos revolucionários dos cravos de abril, numa altura em que eu me preparava para trocar os números das contabilidades, economias e finanças pelas letras das línguas, literaturas e culturas clássicas e modernas.

Tudo nasceu numa mera sala de aulas do antigo edifício bizantino de traçado ortodoxo ali às Chagas, onde em tempos funcionara a embaixada russa dos czares. Era-nos proposto solver um problema de lana-caprina e esquematizar todas as fases da sua resolução através da representação gráfica num ordinograma devidamente submetido a um conjunto de símbolos normalizados, fornecidos pela linguagem Cobol. O diagrama esquemático explicativo da sequência de operações em curso era depois traduzida passo a passo em fórmulas matemáticas precisas, com recurso à numeração binária, em cartões perfurados confiados de seguida ao computador.

Quando me mudei de armas e bagagem para a Faculdade de Letras da Clássica, os personal computers ainda não estavam na moda. Bati todos os meus trabalhos académicos com o teclado HCESAR novinha em folha que nem sequer era elétrica. Outra realidade que a vindoura tornaria obsoleta. Só troquei o matraquear estrepitoso da máquina de escrever pelo processador silencioso de texto do meu primeiro comutador pessoal muito mais tarde, quando passei a frequentar a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Nova. Uma mutação épica indescritível, que me catapultou definitivamente da noite para o dia para o domínio eletrónico cósmico do luminoso digital.

O computador parecido com um televisor antigo, munido dum teclado como o das máquinas de escrever e dum apêndice de navegação chamado rato já desapareceram do meu horizonte de operações. Levaram consigo a enorme torre de armazenamento de dados e as disquetes de armazenamento de dados. me rendi à mobilidade dum portátil. Abençoadas ficções memorialistas mais ou menos autobiográficas postas ao dispor dos leitores, a ajudá-los a recordar as mudanças constantes do quotidiano que a anamnese real não regista. Reviver, v.gr., o esforço mental sentido em tempos para plasmar num fluxograma como fazer uma torrada ou fritar um ovo.

Cartão perfurado IBM não usado

6 de fevereiro de 2025

Elena Ferrante, história de maturidade e velhice napolitana e da menina perdida

«Se una creatura di pochi anni muore, è morta, è finita, presto o tardi ci si rassegna. Ma se scompare, se non se ne sa più niente, non c’è una cosa che resti al poso suo, nella tua vita. Non tornerà più o tornerà? E se ritornerà, ritornerà viva o morta? Ogni momento ti domandi dov'è. Fa la zingarella per strada? Sta a casa di gente ricca senza figli? Le fanno fare cose brutte e poi vendono le fotografie e i film? L'hanno squartata e hanno ceduto a caro prezzo il suo cuore per metterlo dentro il petto di un altro bambino? Gli altri suoi pezzi stanno sotto terra, li hanno bruciati? O sotto terra ci sta intera, perchè è morta incidental-mente dopo che l'hanno rapita? E se la terra e il fuoco non se la sono presa, e lei sta diventando grande chissà dove,che aspetto ha adesso? Come diventerà in seguito? Se la incontreremo per strada la riconosceremo? E se la riconosceremo chi ci ridarà tutto quello che abbiamo perso di lei? Tutto quello che è successo quando non c'eravamo e lei, che era piccola, si è sentita abbandonata?»
Elena Ferrante, Storia della bambina perduta (2014)

Cheguei ao final do percurso de vida de duas meninas napolitanas que sonhavam escrever um livro para serem famosas e ricas. Uma redigiu «A fada azul», um conto infantil de meia dúzia de páginas, a outra um romance de sucesso com um título desconhecido. A primeira era ainda uma criança, a segunda era já uma adolescente e tornou-se numa autora bem-sucedida com o passar dos anos, senhora duma vasta obra traduzida para diversos idiomas. Sabemo-lo em pormenor nesta quarta etapa da saga das amigas geniais, aquela a que Elena Ferrante chamou História da menina perdida (2014), centrada num episódio de feição trágica, que, de certo modo, poria termo decisivo à convivência de décadas de Elena Greco e Raffaela Cerrullo e por arrastamento do próprio relato em si.

Ao invés das tetralogias temáticas gregas do período ático antigo, não encontramos nesta versão fictícia moderna composta em italiano um conjunto sequencial de três tragédias de cariz marcadamente soturno seguido dum drama satírico ligeiro que amenizaria o clima sinistro da peça na sua totalidade. É que no quotidiano real tratado no quarteto romanesco, as alegrias e tristezas, o amor e o ódio, a vida e a morte andam sempre a par e passo, de mãos dadas, não se fixando hermeticamente num único género poético pré-definido. Há lugar para todos eles e miudamente em simultâneo, máxime quando se está perante um fluxo enunciativo de sete décadas, iniciado logo após a Segunda Guerra Mundial e concluído já entrados num novo século e milénio. O devir histórico do país transalpino com forma de bota está integralmente espelhado nas 1375 páginas repartidas por quatro grossos volumes, a que não faltarão alusões q.b. ao restante destino europeu e universal.

Nesta história duma menina perdida anunciada logo na capa do livro, há também essa outra história da coprotagonista desaparecida. Aliás, o ponto de partida que motivou a escrita dos percursos de vida de toda uma geração plena de indivíduos oriundos dum bairro não identificado da capital da Campânia, distribuídos por uma dezena de famílias devidamente arroladas no índice de personagens que antecede o tecido narrativo propriamente dito. se sintetiza, de igual modo, os sucessivos tratos feitos/desfeitos por que cada uma dessas figuras imaginárias de papel e tinta com direito a nome, apelido, profissão, estado civil e demais traços pessoais que os distinguem entre si. Referidos ainda meses e anos de nascimento, relações matrimoniais e extraconjugais, namoros, uniões de facto e separações, filiação política e convicções religiosas, notícia da sua morte e causas que a provocou. Não faltam as saídas de cena por assassinato, suicídio, doença ou velhice. Nada que não pudesse ocorrer em qualquer outra parte do mundo, que, segundo a entidade efabulativa, apresentava um claro movimento de desmoronamento da ordem até então vigente, revelando novas realidades a esconder males antigos.

Concluída a longa caminhada feita com palavras sobre o historial das duas amigas geniais, as que mudaram de nome ao casarem-se para de seguida o largarem ao separarem-se, da que ficou em Nápoles quanto a outra foi para Florença-Génova-Milão-Pisa para depois regressar às origens e voltar a partir, da que ao perder uma filha se perdeu completamente e desapareceu de cena para destino incerto e nunca revelado, após todo este corre-corre pelas quatro etapas da corrida, fica-se com a sensação de se estar na presença dum longo processo investigativo que cabe na tipologia genérica dum romance policial com desfecho imprevisível. Desconhece-se o paradeiro final da perita em informática, filha do sapateiro do bairro e ex-mulher dum bem-sucedido comerciante alegadamente ligado à Camorra local, mas percebe-se as razões pelas quais resolveu desaparecer da vista de todos aos 66 anos de idade. O ter podido concretizar essa sua recorrente paranoia de perder os contornos como se tratasse numa suave brisa desfeita inevitavelmente no ar. A única obra da emissora interna com direito a um título revelado, o conto «Uma amizade», funciona em toda a explanação como uma verdadeira síntese da obra monumental composta pela emissora externa. Um retrato muito fiel dum recanto muito particular da realidade italiana nascida no pós-guerra mundial a fazer a ligação com o nosso dia a dia globalizado.

 

EPÍGRAFE
«Se uma criatura de poucos anos morre, está morta, está morta, acabou, mais cedo ou mais tarde resignamo-nos. Mas se desaparece, se não se sabe mais nada dela, não há nada que fique no seu lugar, na sua vida. Nunca mais voltará, ou voltará? E quando voltar, volta viva ou morta? A cada momento te perguntas onde ela está. Anda pelas ruas feita cigana? Está em casa de gente rica sem filhos? Obrigam-na a fazer coisas terríveis e depois vendem as fotografias e os filmes? Esquartejaram-na e venderam por bom dinheiro o seu coração, para meter no peito de outra criança? os seus outros bocados estão debaixo de terra, queimaram-nos?  Ou está debaixo de terra inteira, porque morreu acidentalmente depois de a raptarem? E se nem a terra nem o fogo a receberam e ela está a crescer sabe-se lá onde, que aspeto tem agora, que aspeto terá depois, se a encontrarmos na rua reconhecemo-la? E se a reconhecermos, quem é que nos devolve tudo aquilo que perdemos dela, tudo aquilo que aconteceu quando não estávamos e ela, que era pequena, se sentiu abandonada?»
Elena Ferrante, História da menina perdida.

4 de fevereiro de 2025

Sinto a dor da tua falta...

Maria Teresa Horta
(20.05.1937 - 4.02.2025)

FALTA

Sinto a dor da tua falta
Agora que terminou
Esta aventura e tumulto

De travessia e viagem
Que a literatura entrançou

E se não sei demorar-te
Manter-te na pressa ávida
Nem pela fresta da faca
Espreitar-te nua ou vestida

Como vou continuar
A perseguir-te, a contar-te
A dar-te luz e fulgor
O resto da minha vida?

 Maria Teresa Horta, Poemas para Leonor (2012)

31 de janeiro de 2025

Aventura na Escola Agrícola

«Beatus ille qui procul negotiis, | ut prisca gens mortalium | paterna rura bobus exercet suis, | solutus omni fæenore, | neque excitatur classico miles truci | neque horret iratum mare, | forumque vitat et superba civium | potentiorum limina.»
Horatius, Epodos, 2, 1 (30 aec)
«Carpe diem quam minimum credula postero.»
Horatius, Carmina, 1, 11.8 (23 aec)
«Sed fugit interea fugit irreparabile tempus.»
Vergilius, Georgicon, 3, 284 (30-37 aec)
Beatus ille...
Feliz aquele que desfruta a tranquilidade do campo sem se afastar demasiado do bulício da cidade. Horácio não diria melhor nos versos líricos cantados nos seus épodos juvenis. O bucolismo idealizado pela verve amena do poeta latino não permitia a associação então inconciliável do locus amœnus rural com o locus horrendus urbano. Contrariando as percetivas clássicas seguidas na passagem agitada da República Romana para a Imperial, posso-me gabar de ter tido o privilégio de ter o campo na cidade durante a totalidade dos meus tempos de menino e moço. Aproveitei ao máximo a estação agrária onde o meu pai trabalhava e eu brincava horas a fio com o meu irmão nos tempos livres depois das aulas.

Naquele espaço imenso de lazer da minha meninice, situado a meia dúzia de passos de casa, mesmo ali ao lado ao virar da esquina, não havia bois como no campo idílico horaciano. Nem cavalos, nem porcos, nem gado ovino e caprino de porte semelhante. A escola agrícola, como era conhecida, limitava-se a ter umas coelheiras bem fornecidas, uns galinheiros espalhados na paisagem e uma dúzia de peixes coloridos repartidos pelo lago do jardim e nos tanques de rega da quinta. Depois, havia também umas quantas parcelas de terreno cultivadas com uma vasta variedade de legumes, ladeadas com árvores de fruto da região e completado com uma pequena vinha com uvas de diversas castas.

Não guardo na memória nenhuma brincadeira especial tida nesse in illo tempore remoto. Lembro-me todavia de me terem contado uma aventura protagonizada por mim em meados dos anos 50. Deixei de ser visto em todo o recinto fechado do meu paraíso infantil. Procuraram-me por toda a parte, sobretudo nos reservatórios de água de rega extraída dum poço por um moinho de armação metálica. Nada. Lá deram comigo adormecido debaixo dum dos tomateiros ali plantados. Comera um desses frutos vermelhos e já tinha alguns mais de reserva ao meu lado. Não recordo se me terão dito qual o castigo que uma criança com três/quatro anos de idade terá tido. Quero crer que nenhuma.

O edénico El Dorado dos meus verdes anos já não existe. As antigas instalações da IX Região Agrícola mudaram de poiso. Deixaram os limites periféricos da cidade e instalaram-se de pedra e cal no campo. Terão criado um novo beatus ille erigido a uma distância considerável da sua anterior sede onde nunca pus os pés. Para trás ficaram os prazeres menineiros de quem nunca deixou de aproveitar o dia à maneira do carpe diem horaciano. Na altura não pensava muito no amanhã nem sentia real motivo para o fazer. O tempus fugit virgiliano tomou conta dos eventos sem pena nem remissão. Restam-nos as memórias. Sobretudo as boas, como a aventura pré-escolar dos tomateiros da extinta escola agrícola.

EPÍGRAFES
«Feliz é aquele que, longe dos negócios, | Como a antiga raça dos homens, | Ele passa o tempo trabalhando nos campos de seu pai com seus próprios bois, | livre de todas as dívidas, | e não acorda, como o soldado, ao ouvir a trombeta sangrenta da guerra, nem ele tem medo da ira do mar, | ficando longe do fórum e dos limiares arrogantes | de cidadãos poderosos.» [HorácioÉpodos, 2.2 (30 aec)]
«Aproveita o dia e confia o menos possível no amanhã.» [Horácio. Odes, 1, 11.8 (23 aec)]
«Mas o tempo foge e nunca mais regressará.» [Vergílio, Geórgicas, 3, 284 (30-37 aec)]

27 de janeiro de 2025

Dioniso, o deus que nasceu duas vezes

         DIONISO - ΔΙΌΝΥΣΟΣ         
[Vaso grego de cerâmica com figuras vermelhas, séc. vi aec]
«Salve, descendente de Cronos, deus de tudo quanto é líquido e luminoso | Dá-nos ânforas repletas, rebanhos gordos, campos de fruta e colmeias de abastança | Vela pelas cidades e pelos navios que se fizeram ao mar e protege os jovens e a bondosa Témis.»
Hino Dionisíaco, apud Daniel J. Boorstin, Os Criadores (1992)

Chamam os mitos helénicos antigos heróis aos filhos dos deuses e dos homens. Podiam muito bem designá-los a todos por semideuses ou super-homens, porque simultaneamente divinos e humanos. A imortalidade herdada da sua origem olímpica permitia-lhes perdurar na memória coletiva dos mortais que os viram nascer, viver e morrer cobertos de glória, fama e honra eternas. O seu nome manter-se-á presente para todo o sempre nas gerações de seres perecíveis que testemunharam os seus feitos temporais e lhes deram um enfoque intemporal. Assim ocorreu com Héracles, Aquiles, Odisseu, Orfeu ou Jasão, para só referir alguns dos mais conhecidos.

De todos esses seres geneticamente híbridos, um que se destacou por se ter libertado da costela humana recebida da mãe e apropriado da dimensão divina do pai. Nas suas aventuras espúrias useiras e vezeiras, Zeus enamora-se de Sémele e engravida-a. Hera, movida pelos proverbiais ciúmes de mulher traída, resolve vingar-se da rival e propõe-lhe que solicite ao amado deixar-se ver sem disfarces, em todo o seu esplendor. Esta assim faz, sendo de imediato fulminada pelo resplendor do rei dos deuses e dos homens, que retirou o feto do ventre materno e coseu dentro da sua própria coxa. Finda a gestação, dava à luz Dioniso, o deus que nasceu duas vezes.

As façanhas, prodígios e loucuras terrestres abriram-lhe as portas das esferas celestiais, não sem que antes tivesse dado uma saltada às profundezas infernais, para resgatar do Hades a sombra da mãe e a levar consigo para o Olimpo, demonstrando assim o seu poder à data reconhecido por todos. Aquele a quem também chamaram Baco foi convertido no atípico deus dos ciclos vitais, da fertilidade, da insânia, das festividades, dos ritos religiosos, do teatro, do vinho e do caos, provavelmente por ter vencido como nenhum antes a lei da morte e conquistado o direito divino à eternidade, como décimo segundo e último habitante maior do panteão grego.

Numa data não registada da idade dos mitos, os deuses deixaram de procriar com os humanos e os heróis saíram de cena, ou foram coagidos a mudar de paradigma. porém um corte neste quadro de aparente entrega dos mortais ao seu próprio destino. Uma virgem judia deu à luz uma criança gerada pelo espírito dum deus sem nome revelado. A sua estada entre os homens foi efémera, mas a sua ressurreição após a morte repôs-lhe a vida eterna própria da sua natureza divina, aquela que lhe permitiu recuperar a mãe da terra e coroá-la rainha do céu. Acaso este de gregos e hebreus deterem as mesmas chaves de acesso à imortalidade.

21 de janeiro de 2025

Umberto Eco, o segredo do ponto fixo, a ilha do dia antes e a arte do romance

«D’altra parte che, malgrado le loro virtù, i Romanzi abbiano i loro difetti, Ro-berto avrebbe dovuto saperlo. Come la medicina insegna anche i veleni, la me-tafisica turba con inopportune sottigliezze i dogmi della religione, l’etica racco-manda la magnificenza (che non giova a tutti), l’astrologia patrocina la supers-tizione, l’ottica inganna, la musica fomenta gli amori, la geometria incoraggia l’ingiusto dominio, la matematica l’avarizia – così’ l’Arte del Romanzo, pur avvertendoci che ci provvede finzioni, apre una porta nel Palazzo dell’Assur-dità, oltrepassata per leggerezza la quale, essa si richiude alle nostre spalle.»
Umberto Eco, L’isola del giorno prima (1994)

Ao reler de quando em vez os escritos de Umberto Eco, chego sempre à conclusão de ter circulado no mundo das letras muito mais à vontade como um ensaísta de prestígio do que como um autêntico romancista. A sua veia criativa está muito mais vocacionada para a vertente multifacetada de filósofo, semiólogo, linguista ou bibliófilo do que no espelhado nas páginas de pura ficção publicadas ao longo duma trintena e meia de anos. O próprio ato de contar uma história está invariavelmente associado a um qualquer evento de traçado científico que, em certos momentos do devir histórico, ocuparam a mente curiosa dos homens constantemente insaciáveis de novas descobertas e alargamento de conhecimentos. É o que se passa, v.gr., com A ilha do dia antes (1994), em que o grande objetivo a atingir assenta na resolução do mistério do fluxo do mar, do enigma da pluralidade dos mundos, do puzzle da doença de amor ou melancolia erótica, do segredo do ponto fixo e do cálculo das longitudes, entre muitos outros quesitos que lhe estão intimamente associados.     

O académico bolonhês, depois de ter andado em busca do livro desaparecido da Poética de Aristóteles, de ter encontrado/perdido esse tão desejado tratado sobre a «Comédia» n'O nome da rosa, voltou-se para o problema da rotação da terra, explanado n'O pêndulo de Foucault, entrando, assim, definitivamente nos labirintos literários do faz-de-conta ancorados nas meadas por desenlear da verdades por revelar do dia a dia. Não contente com os desafios colocados com a localização exata da Terra Incógnita Austral, dos meridianos e antimeridianos ou antípodas, bem como com a precisa identificação das Ilhas de Salomão, aquelas que separariam o dia anterior do dia seguinte avançados nest'A ilha do dia antes ‒, o ensaísta-ficcionista italiano ainda se envolveu a trilhar os percursos de Baudolino em demanda do Reino do Prestes João, em recuperar as memórias perdidas através dos livros aos quadradinhos referidos n'A misteriosa chama da rainha Loana, em penetrar nos meandros secretos dos Protocolos dos Sião à sombra d'O cemitério de Praga ou no poder incontornável da informação jornalística no Número zero, com que a lei da vida/morte o obrigou a encerrar a longa digressão pelos universos romanescos da escrita.

Assentando amarras no terceiro romance da série, sintetizemos que se trata duma obra aberta, com princípio, meio e ausência dum final decisivo, anomalia devidamente comentada pelo narrador exterior à história contada, num clarificador colophon autoral, convertido no derradeiro capítulo do relato. É esta entidade enunciadora externa que nos revela parte do destino do protagonista do drama por si vivido no já distante verão de 1643, trazendo à luz do dia os papéis de cariz autobiográfico então redigidos. O jovem fidalgo piemontês Roberto de la Grive, embarcado na nau Amarilli, naufragara nos mares do sul, tendo a jangada que o salvara embatido contra a proa do Daphne, encalhado numa baía entre duas ilhas, supostamente situadas na linha imaginária de mudança de data. É neste navio aparentemente abandonado, mas repleto dos mais extraordinários despojos, que se abriga e passará os restantes dias da sua existência conhecida, na fronteira fascinante que separava o hoje do ontem ou o ontem do seu amanhã. Nos tempos livres, que todos o eram um pouco, decide contar a sua história possível com roupagem de romance, não aquela que vivera, mas sobretudo a que poderia ter vivido, caso os fados nefastos assim o tivessem permitido. Recorre à práxis barroca então vigente da novela histórica, exemplar, cortesã, sentimental de amores e aventuras peregrinas, com alguns traços picarescos à mistura e até um ou outro de extração bizantina. A fantasia é contagiante sem nunca abandonar, todavia, as linhas estritas do verosímil.

A interrupção brusca dos escritos do náufrago solitário num galeão largado à sua sorte nos antípodas, deixados registados em cartas, reflexões, esboços fictícios e digressões discursivas de natureza científica, metafísica e cosmológica, levou o seu editor/divulgador moderno a tecer um par de hipóteses especulativas sobre o sua saída de cena daquele teatro de memórias. Fá-lo como remate da reconstituição por si encetada em quatro centenas e meia de páginas. Contenta-se com a solução simplista de considerar a história do Senhor de La Grive como a dum apaixonado infeliz, lembrando que na vida real as coisas acontecem porque acontecem e que só na Terra dos Romances é que parecem acontecer por uma qualquer finalidade ou providência. Que tudo fique em aberto e que os papéis deixados a bordo daquela embarcação fantasma seiscentista mais não sejam do que meros exercícios maneiristas, redigidos à maneira daquele século tão pródigo em gente sem alma. Eccolo!

1980      -      1988      -      1994      -      2000     -      2004      -      2011      -      2015
EPÍGRAFE
«Por outro lado que, apesar das suas virtudes, os Romances têm os seus defeitos, Roberto já devia sabê-lo. Tal como a medicina ensina também os venenos, a metafísica perturba com importunas subtilezas os dogmas da religião, a ética recomenda a magnificência (que não convém a todos), a astrologia patrocina a superstição, a ótica engana, a música fomenta os amores, a geometria encoraja o injusto domínio, e a matemática avareza ‒ assim a Arte do Romance, embora advertindo-nos de que nos fornece ficções, arte uma porta no Palácio do Absurdo, que ao ser ultrapassada por ligeireza, se fecha atrás das nossas costas.»
Umberto Eco, A ilha do dia antes