20 de novembro de 2024

Pilares marítimos da cultura portuguesa

Laterais: folhas de rosto d'Os Lusíadas (1572 ) e das Flores de Música (1620)
C
entro: gravura alemã dos «Jerónimos» (1650) e «Painel do Infante» (c. 1450)
Inferior: anotação musical dum Tento de Manuel Rodrigues Coelho

TESE MARÍTIMA
«A força atrativa do Atlântico, esse grande mar povoado de tempestades e de mistérios, foi a alma da Nação e foi com ele que se escreveu a história de Portugal.»
Jorge Dias, Os elementos fundamentais da cultura portuguesa (1950)

Espinhosa tarefa essa de estabelecer os elementos fundamentais duma determinada cultura, sobretudo se se referir a uma realidade multissecular como é o caso da nossa. Jorge Dias ousou fazê-lo em 1950, quando apresentou no I Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, realizado em Washington, uma tese subordinada a essa temática na secção de antropologia cultural. Identificou as dificuldades sentidas e centrou o resultado do seu trabalho na força atrativa do grande mar oceano, exercida desde na configuração da personalidade-base do país, que sintetiza em quatro pilares ou formas de pensar do génio criador português e canaliza para a criação literária, arquitetónica, pictórica e musical. Ei-los.

O edifício identitário nacional tem como suporte poético máximo Os Lusíadas (1572) de Luís de Camões. Assente nos dez cantos de oitavas decassilábicas, a grande viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia justifica perfeitamente a linha central de raciocínio seguido pelo etnólogo na sua comunicação. Vasco da Gama é erguido à categoria de herói épico, desenhado à maneira dos seus antecessores gregos e romanos, assume o comando da expedição, encarrega-se de relatar aos seus anfitriões orientais as glórias pretéritas do povo luso por si representado e prepara naquele tempo histórico ali vivido a revelação antecipada das muitas glórias vindouras a efetuar nos quatro cantos da terra e do mar.

A celebração das expedições às terras dos Algarves, Guiné, Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, feitas nos mares oceanos ocidentais e orientais no período áureo das navegações, encontra-se exaltado em pedra no Mosteiro dos Jerónimos (1501-1601), entendido como padrão comemorativo da expansão marítima global efetuada sob a égide da Casa de Avis. Os elementos evocativos dos novos mundos visitados encontra-se copiosamente representada no complexo monumental de Belém, rendido ao manuelino então predominante e replicada em muitos outros edifícios de traça sacra e civil dessa e doutras épocas. É o caso dos túmulos escolhidos pelo revivalismo romântico para os túmulos do poeta e navegador festejados ali sepultados.

A ereção da ilustre casa lusitana prossegue com o Políptico (c. 1470) de Nuno Gonçalves, atualmente exposto nas Janelas Verdes no Museu Nacional de Arte Antiga. A eleição desta obra paradigmática da cultura portuguesa deve-se ao facto de no designado painel do Infante se encontrar a alegada figura de D. Henrique, o grande impulsionador da política das viagens marítimas, por isso mesmo cognominado o Navegador. Tudo seria perfeito se se desse o caso do enigmático homem do chapeirão ser o elemento mais famoso da Ínclita Geração. Polémicas à parte, parece não caber dúvidas que o Senhor de Sagres se encontra representado numa das tábuas quatrocentistas. Soluções alternativas credíveis não faltam.

O mais intrigante pilar indicado pelo conferencista na capital federal dos Estados Unidos da América, em meados do século passado, assenta nas Flores de Música (1620) de Manuel Rodrigues CoelhoA questão que de imediato se coloca é detetar a presença do mar nos Tentos para órgão, cravo e arpa ali coligidos pelo mestre de capela alentejano das catedrais de Badajoz, Elvas e Lisboa. A resposta só se poderá obter através da audição atenta das peças e à visão das respetivas partituras. A sucessão de subidas/descidas presentes nas composições perfeitamente visíveis na ondulação sistemática das notações musicais orientadoras da execução/navegação harmoniosa das melodias instrumentais ali desenhadas com engenho e arte.

À distância de sete décadas e meia de ter sido proferida, a tese marítima de Jorge Dias continua a ser editada, lida e comentada nos nossos dias. Mantém-se atual, apesar de não poder ser entendida dogmaticamente como uma constante perene da cultura portuguesa. A presença do mar foi muito discreta nos períodos limítrofes do Renascimento-Maneirismo-Barroco que moldaram a nossa idade dourada. Desempenhou um papel muito discreto nos tempos medievais e assim permanece nos contemporâneos. Outros pilares teriam de ser evidenciados, na certeza, porém, de se encontrarem forçosamente na sombra dos traçados pelo espírito criador lusitano do nosso devir histórico pretérito a apontar para o vindouro.

Jorge Dias, Os elementos fundamentais da cultura portuguesa. Lx: INCM, 1950

14 de novembro de 2024

A vida parcial de Ginés de Pasamonte

Eleazar, «Ginés de Pasamonte» (2005)

Cadena de galeotes que va a las galeras del rey...

Tras todos éstos venia un hombre de muy buen parecer, de edad de treinta años, sino que al mirar metia el un ojo en el otro un poco. Venía diferentemente atado que los demás, porque traía una cadena al pie, tan grande, que se la liaba por todo el cuerpo, y dos argollas a la garganta, la una en la cadena, y la otra de las que llaman guardamigo o pie-de-amigo, de la qual decendian dos hierros que llegaban a la cintura, en los cuales se asían dos esposas, donde lleuaua las manos, cerradas con un grueso candado, de manera que ni con las manos podía llegar a la boca, ni podía bajar la cabeza a llegar a las manos. Preguntó don Quijote que cómo iba aquel hombre con tantas prisiones más que los otros. Respondióle la guarda: porque tenia aquel solo más delitos que todos los otros juntos, y que era tan atrevido y tan grande bellaco, que, aunque le llevaban de aquella manera, no iban seguros dél, sino que temían que se les había de huir.
‒¿ Qué delitos puede tener ‒dijo don Quijote‒, si no han merecido más pena que echalle a las galeras?
‒Va por diez años ‒replicó la guarda‒, que es como muerte civil. No se quiera saber más sino que este buen hombre es el famoso Ginés de Pasamonte, que por otro nombre llaman Ginesillo de Parapilla.
‒Señor comisario ‒dijo entonces el galeote‒, vayase poco a poco, y no andemos ahora a deslindar nombres y sobrenombres; Ginés me llamo, y no Ginesillo, y Pasamonte es mi alcurnia, y no Parapilla, como voacé dize; y cada uno se dé una vuelta a la redonda, y no hará poco.
‒Hable con menos tono ‒replicó el comisario‒, señor ladrón de más de la marca, si no quiere que le haga callar, mal que le pese.
‒Bien parece ‒respondió el galeote‒ que va el hombre como Dios es servido; pero algún día sabrá alguno si me llamo Ginésillo de Parapilla o no.
‒Pues ¿no te llaman ansí, embustero? ‒dijo la guarda.
‒Sí llaman ‒respondió Ginés‒; “más yo haré que no me lo llamen, o me las pelaría donde yo digo entre mis dientes. Señor caballero, si tiene algo que darnos, dénoslo ya, y vaya con Dios, que ya enfada con tanto querer saber vidas ajenas; y si la mia quiere saber, sepa que yo soy Ginés de Pasamonte, cuya vida está escrita por estos pulgares.
‒Dize verdad ‒dijo el comissario‒; que él mesmo ha escrito su historia, que no ay más, y deja empeñado el libro en la carcel en
docientos reales.”
‒Y le pienso quitar ‒dijo Ginés‒ si quedara en docientos ducados.
‒¿ Tan bueno es? ‒dijo don Quijote.
‒Es tan bueno ‒respondió Ginés‒, que mal año para Lazarillo de Tormes y para todos cuantos de aquel género se han escrito o escribieren. Lo que le sé decir a voacé es que trata verdades, y que son verdades tan lindas y tan donosas, que no puede haber mentiras que se le igualen.
‒Y¿cómo se intitula el libro? ‒preguntó don Quijote.
La vida de Ginés de Pasamonte ‒respondió el mismo.
‒Y ¿está acabado? ‒preguntó don Quijote.
‒¿Cómo puede estar acabado ‒respondió el‒, si aún no está acabada mi vida? Lo que está escrito es desde mi nacimiento hasta el punto que esta última vez me han echado en galeras.
‒Luego ¿otra vez habéis estado en ellas? ‒dijo don Quijote.
‒Para servir a Dios y al rey, otra vez he estado cuatro años, y ya sé a que sabe el biscocho y el corbacho ‒respondió Ginés‒; y no me pesa mucho de ir a ellas, porque alli tendré lugar de acabar mi libro; que me quedan muchas cosas que decir, y en las galeras de España hay más sosiego de aquel que sería menester, aunque no es menester mucho más para lo que yo tengo de escribir, porque me lo sé de coro.
‒Habil pareces ‒dijo don Quijote.
‒Y desdichado ‒respondió Ginés‒; porque siempre las desdichas persiguen al buen ingenio.
Miguel de Cervantes, Don Quijote de la Mancha (Madrid, 1605; I, 22)

8 de novembro de 2024

Laurent Binet, perspetiva(s) pintada(s) e contada(s) dum thriller histórico epistolar

« Il n’y a rien de plus certain que la perspective, rien de plus essentiel, ni rien de plus éternel. C’est elle, et elle seule, plus que toutes les batailles et tous les poèmes et tous les traités de Machiavel ou de Castiglione, qui a rendu notre Toscane immortelle, qui a fait qu’on parlera de nous dans les siècles des siècles, de la Chine aux Amériques.  Oh ! Quelle douce chose que cette perspective ! »
Laurent Binet, Perspective(s) (2023)

Jacopo Carucci, mais conhecido no mundo da arte por Jacopo (da) Pontormo ou apenas Pontormo, nasceu em 1494 na localidade vizinha de Empoli, pela qual passou a ser referido, foi encontrado morto no primeiro de janeiro de 1557, junto ao fresco do «Dilúvio» que estava a pintar na Basílica de São Lourenço em Florença. O óbito ter-se-á verificado nessa data ou na véspera, tendo sido sepultado no dia seguinte na capital toscana. Dados os contornos insólitos do falecimento, a suspeita de ter sido assassinado instalou-se no ar, criando o ponto de partida seguido por Laurent Binet para redigir o Perspective(s) (2023), 466 anos após a verificação do trespasse.

Entusiasmei-me com a sinopse publicada nas páginas da Net e encomendei de imediato a obra online, tendo em vista o regresso ainda que virtual à Cidade das Flores e aos artistas quinhentistas que ali nasceram, singraram e abriram caminhos estéticos a toda a Europa culta da época. A contracapa da edição original do roman, que rapidamente me chegou às mãos voltou a repetir, ipsis verbis, os dados divulgados em suporte digital, máxime o facto da pesquisa policial então encetada assentar integralmente numa estrutura polar histórico-epistolar. Lançados os dados genéricos, só faltaria saber do autor as circunstâncias insólitas que lhe haviam facultado essa coleção extraordinária de 176 missivas, tão reveladoras dos enigmas catapultados para o relato de relatos trazidos aos nossos dias como se tivessem acabado de ocorrer.

Faça-se tábua rasa da autenticidade das cartas e da credibilidade da sua compra a um antiquário de Arezzo, para prestar atenção aos testemunhos registados pelos 21 correspondentes compilados pela instância narrativa. As informações paratextuais são referidos no «Prefácio», assinado por um singelo B facilmente identificado com Binet, que assim atribui ao conjunto documental obtido um tópico simulacro de veracidade discursiva, exigida pelo cânone tradicional das categorias literárias convocadas e passa assim a fazer parte integrante da ficção. O aparato preparatório do processo indagativo operado à distância de quase meio milénio conta, ainda, com um plano de Florença e outro da Itália, contemporâneos dos factos trazidos à colação, bem como uma uma ficha completa de todos os intervenientes nos eventos.

O fascínio sentido por este jovem contador de histórias fingidas decalcadas de histórias acontecidas é antiga. Remonta ao primeiro exercício biográfico por si composto, logo seguido dos intermédios até chegarmos ao mais recente. À eliminação real de Reinhard Heydrich, o carrasco de Praga e braço direito de Himmler; seguido do final trágico imaginado de Roland Barthes, alegado autor duma sétima função da linguagem; e, ainda, do destino alternativo de Atahualpa, o derradeiro Sapa Inca e pretenso conquistador da Europa de Carlos Quinto. Tudo nomes conhecidos, que a memória dos homens registou ao longo dos tempos, conquanto devidos a razões diametralmente opostas. A ucronia é rainha em todos eles, como de certa modo o é também este conjunto de cartas que nos apontam para uma série de hipotéticos assassinos de Pontormo, o mais destacado inventor do Maneirismo, aquele movimento artístico que mediou o apogeu do Renascimento e do Barroco.

Os labirintos artísticos, políticos, religiosos e filosóficos da época pululam em cada escrito atribuído a vultos frequentadores da corte ducal de Cosimo de' Medici e cúria papal de Pietro Carafa, aos meios culturais de pintores, escultores, arquitetos ou meros operários duns e doutros, a vultos mais ou menos familiares nos nossos dias, desempenham um papel decisivo para identificar/afastar hipotéticos homicidas do genial, melancólico, subjetivo e bizarro autor de telas, frescos e esboços de obras que os sucessivos preceitos estéticos fariam impediriam de concluir ou fariam desaparecer para sempre. O jogo de perspetivas plasmadas por cada um deles o tom geral ao relatório final apresentado em forma de romance, a que não faltará a identificação indiscutível do assassino do mestre amado/odiado que alimenta toda a inquirição detetivesca efetuada por Giorgio Vasari, autor da polémica e sempre citada Le vite de' più eccellenti pittori, scultori e architettori (1550). Nessa edição não se referem os pormenores da morte do cultor das poses contorcidas, perspectiva distorcida e cores marcadamente incomuns e peculiares, presentes neste repositório detetiveste de pontos de vista literários inspirados nos pontos de vista pictóricos. Podia revelá-lo aqui, mas seria uma traição que os futuros leitores não perdoariam.

4 de novembro de 2024

Sinestesias escutadas

Rubens & Brueghel
El oído, 1617-1618
[Museu del Prado, Madrid]

Ouvires, Fragores, Rumores, Soares

O tum-tum-tum-tum tum-tum-tum-tum de abertura da Sinfonia do Destino (1804-1808), a popular 5.ª sinfonia em dó menor op. 67 de Beethoven, faz-me lembrar como a sucessão melódica de toques bem dados pode gerar uma das melodias mais conseguidas da música clássica de todos os tempos. Funciona como o início duma vasta conversa travada entre todos os instrumentos que a tornam audível e compreensível. Uma extensa pergunta que só obterá uma resposta cabal no termo do quarto andamento com o tum-tum final. 

O tá-tá-rá-tá ascendente seguido do tá-tá-rá-tá descendente dos primeiros acordes da Grande Sinfonia (1788), a célebre sinfonia n.º 40 em sol menor KV. 550 de Mozart, atacam o imenso jogo de perguntas/respostas presentes ao longo da totalidade da peça. A expressão vienense do rococó em sons então vigente divergia em muito das sonoridades mais intimistas produzidas pelo romantismo alemão predominante na época. Sinestesias claras do toque táctil da orquestra com o tato ligado ao toque sentido com os tímpanos.

O tã-tãrãrã ‒ tã-tãrãrã 'rãrã contínuo de dois compassos repetidos cento e sessenta e nove vezes pela caixa-de-guerra do Bolero (1928) de Ravel, como se se tratasse uma prolongada afirmação proferida num único movimento, a ritmo uniforme e invariável, a rondar um quarto de hora. Os ouvires, fragores, rumores e soares deste tempo di Bolero, moderato assai, foi criado para balett, mas pode ser apreciado com todos os sentidos numa simples interpretação orquestral, num auditório musical, gravado num disco ou trauteado de memória.

Os soídos musicais nunca se deixam traduzir por uma cadeia sonora verbalizada de vocábulos concretos, com ou sem recurso à imitação onomatopaica. É que se uma imagem vale mais do que mil palavras, então atrevo-me a dizer que uma melodia inspirada vale mais do que mil imagens. Veem-se quando se ouvem, saboreiam-se quando se tocam, respiram-se quando se escutam e nos sabem aprisionar. São sentidas com todos os sentidos que o sistema sensorial pôs ao nosso dispor, a única língua universal fruto do engenho e arte humanos.

Edvard Munch, Skrik (1893)

29 de outubro de 2024

Lídia Jorge, o vale da paixão e a manta do soldado desenhador de pássaros

«‒ “Ah, o que não te terão contado! Ele ria, estava quase sempre a rir  Aposto que te falaram dum estroina com a alcunha de soldado e duma manta que usava por colchão para desenhar os pássaros. O que não te terão dito sobre essa manta que usava por colchão para desenhar pássaros. O que não te terão dito sobre essa manta e sobre esses pássaros... Falaram-te de mim como um trafulha, um trotamundos, um atravessa-mares. Aposto que te envenenaram. O que sabes tu sobre isso?” Por momentos, a sua cara perdia a alegria e era tomado por uma espécie de ira que o toldava, fazendo-lhe os olhos brancos “Diz-me, repete o que te disseram eles. Diz-me a verdade...”»
Lídia Jorge, O vale da paixão (1998)

Muito de vez em quando, regresso à companhia dos livros que numa primeira leitura me deixaram uma marca indelével. Esse impulso pouco habitual tem-me acontecido com a escrita de Lídia Jorge. Sempre que o faço, fico com a sensação de se tratar da sua melhor obra e, por via das dúvidas, resgato da estante que lhe é dedicada em casa um outro título seu. Nunca me decidi qual deles ocupa o topo da lista como vencedor absoluto. São todos bons e difíceis de serem suplantados pelos demais frutos colhidos no mesmo pomar. Só fico espantado pelo facto dos diversos jurados do Prémio Camões a ignorarem sistematicamente, ano após ano, das suas escolhas, ao invés de outros areópagos literários situados dentro e fora das nossas fronteiras nacionais e linguísticas. Alguma razão obscura haverá que urge desfazer sem grandes delongas de permeio.

A última releitura que encetei do corpus novelesco de Lídia Jorge foi dada à luz entre nós com a denominação insinuante de O vale da paixão (1998), crismado depois noutras paragens editoriais com as designações alternativas de A manta do soldado ou de O pintor de pássaros, criando uma etiquetagem perfeita e lapidar para sintetizar em poucas palavras o argumento do romance, também consignada na epígrafe acima registada. A listagem poderia ainda ser ampliada se se tivesse seguido o titulamento dado pela filha ilegítima e sobrinha oficial do trafulha, trotamundos e atravessa-mares, às três narrativas fantasiosas, agrestes e abomináveis que compusera e oferecera ao genitor encoberto como vingança, estabelecido então em Buenos Aires como proprietário do Bar Los Pájaros, com todo o simbolismo contido nas fusões lexicais de O pintador de pássaros, A charrete do diabo e O soldadinho fornicador. Mas o leitor terá de saltar porém da capa do livro para a etapa final do relato para os ver inscritos em letra de forma.

Com ação centrada na fictícia aldeia algarvia de São Sebastião de Valmares, os cem fragmentos que compõem a história duma estirpe de pequenos proprietários rurais, formada por seis filhos e três noras, uma filha e um genro, três netos e uma neta do patriarca do clã, ganha o molde genérico duma saga tradicional. Entre os longínquos anos da década de 30 e os recentes de 80, a casa inicialmente plena de gente vai-se esvaziando, à medida que parte das gerações mais jovens se vão deslocando como emigrantes para as duas américas, a do norte e a do sul, e o pai, sogro e avô de todos eles é deixado para sempre à espera nunca efetivada do seu regresso ao torrão natal. Terá a companhia do primogénito deficiente, da mulher e da filha/sobrinha, a tal que narrará o destino coletivo de todos, com um destaque especial naquele que a gerara num ato único, consumado numa manta de soldado da Índia, a servir de colchão numa charrete, desenhador de pássaros, pinga-amor, troca-tintas e trota-mundos dos quatro recantos da terra, o legítimo herói/anti-herói dos eventos convocados pela fábula.

Esclarecida a titulação disjuntiva referida, focada por inteiro no tio/pai da voz enunciadora interna, cumpre juntar os sentidos possíveis da opção original, imersa no universo espacial da residência familiar. Erigida num local de paixões fortuitas, experienciadas nas campinas meridionais do país, entre o mar e a serra, i.e., os val(es) e os mares vizinhos, aglutinados na Casa de Valmares. Rótulos formais à parte, perfilhados por editores e tradutores, este testemunho oscilante de primeira/terceira pessoa, proferido por alguém que estando presente age amiúde como se estivesse ausente e não fizesse parte da história em que desempenha sem pausas nem hesitações o duplo papel de protagonista/narradora dos eventos havidos ou imaginados. Neste sentido, a saga, gesta ou fado da família, materializada na dissolução da vida rural tradicional, impressa em forma de letra nas páginas dum romance, que nos a remete para uma realidade de silêncios e ausências vigentes num período histórico recente, do qual persistem ecos ainda audíveis entre nós. Basta estar atento aos tempos de migrações, conflitos e perigos, locais e globais, a flagelar-nos no nosso dia a dia imediato. Aqui, agora e sempre.

22 de outubro de 2024

Deambulações dançadas, declamadas, cantadas e mimadas do coro dramático

Coro de jovens mascarados em frente a um altar de Dioniso.
Pintura de vaso duma cratera de coluna ática de figuras vermelhas, 480 AEC
[Basileia, Antikenmuseum e Sammlung Ludwig]

COROS, COREUTAS, COREGOS & CORIFEUS 

Nos tempos distantes dos poemas homéricos, havia no interior das cidades gregas espaços reservados aos festejos oficiais designados choros (χορός = dança). Os intérpretes dessas práticas religiosas, simbólicas ou miméticas, formavam um grupo variável de coreutas (χορευτές = dançarinos), regido por um corifeu (κορυφαῖος = cabeça de coro) e organizado por um corego (χορηγός = patrocinador).

Com o advento do drama (δραμα = coisa feita), esses cultores de ritos sagrados trocaram a ágora (ἀγορά = lugar de reunião) pelo teatro (θέατρον = lugar de visão). Surgiam no párodo (πάροδος = cortejo de entrada), instalavam-se na orquestra (ὀρχήστρα = lugar de dança) e partiam depois no êxodo (ἔξοδος = cortejo de saída). Hoje em dia, equivaleria ao usual correr das cortinas no início/final da atuação.

A voz coletiva e uníssona entoada pelos comentadores nas tragédias (τραγωδίες = cantos do bode), dramas satíricos (δράματα σατιρικά = cantos de sátiros) e comédias (κωμωδίες = cantos da aldeia) aprenderam a falar, a cantar e a agir, tornando-se gradualmente nos coralistas áticos, de imediato adotados cenicamente pelo classicismo romano antigo e renascentista moderno, caindo então em desuso.

Depois o coro que se limitava a dançar passou a ser o coral que se dedicou a cantar. Deixou de deambular passo a passo no espaço circular da orquestra e ocupou os proscénios renovados dos atuais auditórios erigidos à escala global. Fazem-se ouvir às diversas vozes dum único corpo, distribuídas pelos quatro naipes que formam a sua tessitura sonora, para proveito e deleite de quem canta e encanta.

16 de outubro de 2024

Patrick Modiano: em busca de Dora Bruder, a rapariga judia desaparecida

« On avait imposé des étoiles jaunes à des enfants aux noms polonais, russes, roumains, et qui étaient si parisiens qu'ils se confondaient avec les façades des immeubles, les trottoirs. Comme Dora Bruder, ils parlaient tous avec l'accent de Paris, en employant des mots d'argot dont Jean Genet avait senti la tendresse attristée. »
Patrick Modiano, Dora Bruder (1997)

Tem razão Patrick Modiano ao afirmar que os dez relatos reunidos no Romans (2013), pela Quarto Gallimard, formam uma única obra e a espinha dorsal a todos os demais editados avulso não incluídos na coleta. Segundo confessa, terão sido escritos de modo descontínuo, a registar fragmentos de vida vividos entre outros tantos esquecimentos sucessivos. Os mesmos rostos, nomes e locais saltam duns textos para outros, ininterruptamente, sem sossego, como os motivos duma tapeçaria tecida em momentos criativos de semissonolência, recolhas dispersas a revelarem ecos distantes duma autobiografia pessoal, simultaneamente sonhada e imaginada. Pelo já observado em mais de metade das parcelas consideradas, tudo leva a crer que nas restantes aconteça precisamente o mesmo. A ver vamos em próximas incursões, separadas por breves pausas para recuperar o fôlego.

O sexto título da série não foge à regra, a despeito de não se tratar dum legítimo romance como seria de supor, dada a designação geral registada na capa da seleta. A estrela amarela de David, a questão judaica, a invasão da França pelo Terceiro Reich, a resistência, a Gestapo, a guerra, as prisões arbitrárias, o império do medo e do mal, o predomínio do ódio, as perseguições, os centros de detenção, trabalho e concentração, o genocídio, são elementos omnipresentes neste testemunho humano de factos reais acontecidos num tempo ainda recente. O Dora Bruder (1997) foge às urdiduras tecidas pela ficção, para entrar na da pesquisa multifacetada do percurso factual duma jovem judia obscura trazida à luz do dia através dum autêntico resgate literário de eventos perdidos nas brumas da história.

Um mero anúncio de jornal a pedir informações sobre o paradeiro duma menina de 15 anos de idade, publicado em 31 de dezembro de 1941 no Paris-Soir, é o ponto de partida da longa busca contida numas escassas dezenas de páginas, sobre o destino dramático dessa figura de carne e osso que dá título a uma narrativa feita de papel e tinta. Os contactos fornecidos aos leitores dão ao detetive-escritor improvisado as primeiras pistas sobre o inquérito, que o conduzirão a uma série de documentos oficiais referentes não só à desaparecida como ao dos seus familiares mais próximos ou já com algum grau de afastamento. A reconstituição vai-se processando com o recurso estratégico a suposições, paralelismos e histórias protagonizadas por outros protagonistas igualmente perdidos nos labirintos do mais profundo olvido coletivo e do vazio existencial. Possuem todos eles um nome, um endereço, uma rua, uma casa, um número, muitas vezes desaparecidas depois da guerra, da ocupação germânica e da barbárie nazi.

As memórias dos bairros, mercadoscinemas, cafés, hotéis, praças e arruamentos de Paris servem de cenário ao plano investigativo. Os mais ligeiros indícios, pistas, rumores vão surgindo a conta-gotas. Ao certificado de nascimento, ao registo num internato religioso e às notas de fuga do pensionato, junta-se a ata de casamento dos progenitores, a nacionalidade húngara da mãe e austríaca do pai. Tem ainda acesso a um conjunto limitado de fotos informais, que lhe permitiram extrair algumas conjeturas mais sobre a sua forma de ser e de estar. Dados exíguos que o aproximam a passos largos do final trágico que os conduziu inexoravelmente aos campos de deportação de Drancy, de confinamento de Tourelles e de extermínio de Auschwitz. Pai e filha entraram no comboio da morte a 18 de setembro de 1942, seguidos pela mãe cinco meses depois, a 11 de fevereiro de 1943. E é tudo. A história de Ernest, Cécíle e Dora Bruder termina aqui. Como diria um croupier de casino, les jeux sont faits, rien ne va plus.