« On avait imposé des étoiles jaunes à des enfants aux noms
polonais, russes, roumains, et qui étaient si parisiens qu'ils se confondaient
avec les façades des immeubles, les trottoirs. Comme Dora Bruder, ils parlaient
tous avec l'accent de Paris, en employant des mots d'argot dont Jean Genet
avait senti la tendresse attristée. »
Patrick Modiano, Dora Bruder (1997)
Tem razão Patrick Modiano ao afirmar que os dez relatos reunidos no Romans (2013), pela Quarto Gallimard, formam uma única obra e a espinha dorsal a todos os demais editados avulso não incluídos na coleta. Segundo confessa, terão sido escritos de modo descontínuo, a registar fragmentos de vida vividos entre outros tantos esquecimentos sucessivos. Os mesmos rostos, nomes e locais saltam duns textos para outros, ininterruptamente, sem sossego, como os motivos duma tapeçaria tecida em momentos criativos de semissonolência, recolhas dispersas a revelarem ecos distantes duma autobiografia pessoal, simultaneamente sonhada e imaginada. Pelo já observado em mais de metade das parcelas consideradas, tudo leva a crer que nas restantes aconteça precisamente o mesmo. A ver vamos em próximas incursões, separadas por breves pausas para recuperar o fôlego.
O sexto título da série não foge à regra, a despeito de não se tratar dum legítimo romance como seria de supor, dada a designação geral registada na capa da seleta. A estrela amarela de David, a questão judaica, a invasão da França pelo Terceiro Reich, a resistência, a Gestapo, a guerra, as prisões arbitrárias, o império do medo e do mal, o predomínio do ódio, as perseguições, os centros de detenção, trabalho e concentração, o genocídio, são elementos omnipresentes neste testemunho humano de factos reais acontecidos num tempo ainda recente. O Dora Bruder (1997) foge às urdiduras tecidas pela ficção, para entrar na da pesquisa multifacetada do percurso factual duma jovem judia obscura trazida à luz do dia através dum autêntico resgate literário de eventos perdidos nas brumas da história.
Um mero anúncio de jornal a pedir informações sobre o paradeiro duma menina de 15 anos de idade, publicado em 31 de dezembro de 1941 no Paris-Soir, é o ponto de partida da longa busca contida numas escassas dezenas de páginas, sobre o destino dramático dessa figura de carne e osso que dá título a uma narrativa feita de papel e tinta. Os contactos fornecidos aos leitores dão ao detetive-escritor improvisado as primeiras pistas sobre o inquérito, que o conduzirão a uma série de documentos oficiais referentes não só à desaparecida como ao dos seus familiares mais próximos ou já com algum grau de afastamento. A reconstituição vai-se processando com o recurso estratégico a suposições, paralelismos e histórias protagonizadas por outros protagonistas igualmente perdidos nos labirintos do mais profundo olvido coletivo e do vazio existencial. Possuem todos eles um nome, um endereço, uma rua, uma casa, um número, muitas vezes desaparecidas depois da guerra, da ocupação germânica e da barbárie nazi.
As memórias dos bairros, mercados, cinemas, cafés, hotéis, praças e arruamentos de Paris servem de cenário ao plano investigativo. Os mais ligeiros indícios, pistas, rumores vão surgindo a conta-gotas. Ao certificado de nascimento, ao registo num internato religioso e às notas de fuga do pensionato, junta-se a ata de casamento dos progenitores, a nacionalidade húngara da mãe e austríaca do pai. Tem ainda acesso a um conjunto limitado de fotos informais, que lhe permitiram extrair algumas conjeturas mais sobre a sua forma de ser e de estar. Dados exíguos que o aproximam a passos largos do final trágico que os conduziu inexoravelmente aos campos de deportação de Drancy, de confinamento de Tourelles e de extermínio de Auschwitz. Pai e filha entraram no comboio da morte a 18 de setembro de 1942, seguidos pela mãe cinco meses depois, a 11 de fevereiro de 1943. E é tudo. A história de Ernest, Cécíle e Dora Bruder termina aqui. Como diria um croupier de casino, les jeux sont faits, rien ne va plus.