11 de agosto de 2025

Educação musical

Mozart score written when 8 years old Art Print

Curriculum Musicæ

Na era longínqua em que frequentava a catequese e ia à missa todos domingos, tive uma catequista já entrada na idade, solteirona por opção ou viúva por revés, que me dava umas aulas de piano depois da doutrina e uns conselhos suplementares de catolicismo cristão nos intervalos musicais. Nessa altura, andaria na segunda classe do primário e no primeiro do catecismo, rondaria então os 7/8 anos. Depois vieram as férias de verão e, no início do novo ciclo letivo, a Senhora D. Maria do Rosário foi substituída por uma outra instrutora cujo nome se me varreu por completo da memória. O mesmo posso dizer da minha aprendizagem pro bono então recebida. Exceptuo umas tantas palmadas nas mãos para corrigir posições.

Por essa altura, frequentei um coro de meninos do ensino básico da cidade. Os ensaios eram semanais e efetuavam-se na escola central do burgo, o que nos obrigava a fazer uma longa caminhado desde o Bairro da Ponte até ao Posto da Polícia junto ao Parque da Rainha. Cantava-se mais durante o percurso do que na sala apontada para tal. Destas aventuras corais, resultou sempre uma agitação infantil a tocar a indisciplina, que levou o prof. Dinis a cancelar o projeto. guardei no ouvido o malfadado Papagaio pena verde, repetido à exaustão sem grandes resultados polifónicos a assinalar. Aprendi também à minha custa que uma 1.ª voz como a minha nunca se daria bem ao lado duma 2.ª cantada por um colega de timbre mais espigadote.

De degrau em degrau, o ciclo preparatório abeirou-se, o Canto Coral instalou-se e o P.e Renato impôs-se. Durante dois anos, passei a ter 1/4 de hora por aula de solfejo, notação musical e leitura de partituras, alternados com os 3/4 de hora restantes de anedotas, apartes e historietas contadas a propósito/despropósito de tudo e de nada. Recordo os momentos hilariantes em que relatava a torto e direito as mirabolantes travessuras do Menino Tonecas. Esqueci-me de todas, mas as gargalhadas provocadas ainda hoje me ecoam nos ouvidos. Muito de vez em quando, punha a turma a entoar uma cantiguinha popular que pouco tinha a ver com a teoria musical já aflorada. O uso regular do diapasão gerava uma risada geral logo seguida do justo raspanete. Tempos épicos esses em que a risota coral reinava.

A escassa formação musical até então bebida a conta-gotas secou a valer no secundário. Salvou-se, mesmo assim, com os apontamentos desviantes às aulas de História ou Português do Dr. Bento Monteiro. Por um qualquer motivo dei com ele a falar do sucesso que Janette MacDonald & Nelson Eddy tinham obtido em Hollywood nas décadas de 30-40. Palavra puxa palavra, o confronto passou a fazer-se entre Mario Lanza e Enrico Caruso. Este último tenor tido por si como o vulto maior do canto lírico de todo o sempre, a par de Maria Callas como soprano. Chegou a levar um velho gira-discos para a sala, o que nos permitiu escutar pela primeira vez as vozes de alguns deles. A si se terá devido também a realização de alguns concertos de câmara e orquestra juvenil no ginásio da escola, os primeiros da minha vida.

O meu convívio áureo com a música deu-se fora do ambiente escolar. As salas de aula foram trocadas pelas salas de concerto da capital, quando por ali andei no encalço dum grau académico superior. Não deixei escapar uma Ópera no Coliseu e no Trindade, um Ballet na Gulbenkian e no São Luís, uma Audição no São Carlos, uma Zarzuela no Tivoli ou um Concerto onde quer que o houvesse. Fazia-o com um ou outro colega mais sensibilizado para a arte melómana das notas cantadas, dançadas ou tocadas. Pena ter perdido os programas e folhas de sala mantidas na altura com tanto cuidado. Ficaram-me na memória as imagens sonoras e visuais então bebidas com avidez. Fugiram-me os nomes de muitos dos compositores, intérpretes e diretores que nesses instantes singulares lhes deram corpo e alma.

Na fase laboral seguinte, revezei a música gravada com um ou outro concerto dado aqui nestas bandas austrais onde me fixei. Na etapa quase jubilada, alterei o cenário. Esqueci-me do dedilhar meteórico pelo teclado do piano acústico vertical de sala no final das lições de catecismo e dediquei-me a reviver as poucas luzes ainda cintilantes das aulas do segundo ciclo me tinham a custo acompanhado. Integrei por um ano o grupo coral da UAlg e transitei depois de armas e bagagens para o Ossónoba. No primeiro, relembrei alguns trechos líricos ouvidos em tempos ao vivo e a cores, no segundo  domei a voz a um canto mais mais rigoroso e variado. Estou há um par de meses no Cantate Domino, um grupo de câmara mais restrito de música sacra, numa tentativa de reforço do curriculum musicæ ideal. 

5 de agosto de 2025

Julian Barnes e o papagaio de Flaubert numa viagem pela república das letras

“Life… is a bit like reading. … If all your responses to a book have already been duplicated and expanded upon by a professional critic, then what point is there to your reading? Only that it’s yours. Similarly, why live your life? Because it’s yours. But what if such an answer gradually becomes less and less convincing?”
Julian Barnes, Flaubert’s Parrot (1984)

Quais as fronteiras do Romance, o único grande género poético que não mereceu a atenção teórica de gregos e latinos, na sua ânsia pedagógica de definir os universos da literatura. É que para uns e outros, uma narrativa em prosa estaria a anos-luz de distância duma narrativa em verso ou Epopeia. Mesmo assim, a verdade é que à medida que a popularidade dos relatos versificados se diluiu com a passagem do tempo, os prosificados acabaram por se tornar nos preferidos dos leitores atuais. Julian Barnes demonstra n'O Papagaio de Flaubert (1984) que a miríade de formas usadas à exaustão há mais de dois mil anos podem, muito bem, ser sucedidas/completadas por outras pessoais duma pós-modernidade transversal elaborada na passagem do segundo para o terceiro milénio.

Confidencia-nos o autor n' «O papagaio aos 40» ‒ Prefácio inserido na edição especial comemorativa do quadragésimo aniversário do lançamento da sua magnum opum ‒, ter sido finalista do Brooker Prize desse ano, galardão que acabaria por ver fugir para outras mãos, à partida mais merecedoras de o receber que as suas. Recebera a notícia da nomeação quando se encontrava com a mulher a passar duas semanas em Cantal, a que então se poderia chamar La France profonde. Embalado por esse impulso de revelar factos vividos no início duma carreira literária brilhante, tece uma série de comentários sobre as relações imprevisíveis estabelecidas entre o escritor e o leitor, bem como do sucesso que poderia ou não vir a granjear no futuro, mormente na escolha do título a dar aos livros por si gizados, neste caso resultante da associação do nome duma personalidade célebre com um item pouco óbvio.

O ponto de partida para a composição deste exercício de escrita criativa situa-se, pois, na figura dum dos vultos maiores da cultura literária gaulesa oitocentista e numa das mais exóticas aves que povoam a nossa imaginação, apresentados em imagens coloridas e em letras gordas na capa do volume que, à partida, revelará essa associação algo insólita. Tal tarefa, todavia, será confiada ao fictício Geoffrey Braithwaite, narrador central do relato, que muito de vez em quando, se fará substituir por outras entidades reais/inventadas diversificadas, conferindo assim ao texto uma visão multifacetada dos factos trazidos à colação, perfeitamente adequada para tecer as fases mais significativas da vida de alguém, como se fora um conjunto de buracos ligados por um fio, como se fosse uma rede de pesca. Por muito peixe que se apanhe, há sempre muito mais que fica por filar.

Descobrir o paradeiro do papagaio empalhado que terá inspirado Gustav Flaubert a desenhar com palavras Un cœur simple (1877), o mais conhecido conto que legou à posteridade, amplamente citado, resumido e comentado ao longo desta digressão da criação/crítica literárias. Lido este livro de ensaio biográfico de feição romanesca, fica no ar a vontade imperiosa de revisitar com outros olhos as páginas tantas vezes aludidas da Madame Bovary e de L'Éducation sentimentale, há tanto tempo deixadas em repouso numa estante de livros da minha biblioteca pessoal, e estrear-me na descoberta da Salambô e, inevitavelmente, nos Trois contes que albergam a tal história curiosa de Loulou, o papagaio de corpo verde, com a ponta das asas cor-de-rosa, a cabeça azul e a garganta dourada. 

EPÍGRAFE
«A vida… é um pouco como ler. … Se todas as suas respostas a um livro já foram duplicadas e ampliadas por um crítico profissional, então qual o sentido da sua leitura? Apenas que ela é sua. Da mesma forma, porquê viver a sua vida? Porque ela é sua. Mas e se essa resposta se tornar cada vez menos convincente?»

31 de julho de 2025

O homem a quem chamaram cavalo...

I'm not a horse, I'm not an animal, I'm a man...

 A L T E R I D A D E S                                                       

Anda por aí disponível na Net um filme que eu vi nos anos 70, já não me recordo muito bem onde, mas cuja memória me acompanhou até hoje, apesar de nunca mais o ter voltado a visionar desde então no grande ecrã. Revi-o agora em formato pequeno num canal da TV Cabo, o Star Movies 92 da NOS, no meu plasma caseiro. Espero que se mantenha disponível nos próximos tempos, sobretudo por tratar dum conjunto de tópicos tão atuais nos nossos dias, ligados ao embate de culturas oriundas de espaços geográficos diametralmente opostos e a aversão visceral duns e doutros aos distintos sistemas civilizacionais em confronto. Estou-me a referir a A Man Called Horse (1970), uma película estadunidense realizada por Elliot Silverstein, baseado no conto de Dorothy M. Johnson, Indian Country (1968).

Nas décadas anteriores, os westerns clássicos exibidos nos cinemas ou emitidos na televisão primavam pelas lutas ferozes entre índios e cowboys, quer dizer, entre os corajosos vaqueiros americanos e os ferozes indígenas emplumados. A completar esse estado bélico constante contado com imagens em movimento havia, ainda, toda uma gama de histórias aos quadradinhos, em que os colts certeiros dos bons derrotavam sem exceção os arcos e flechas dos maus. Ou seja, naquele mundo exótico do Far West mítico, os caras-pálidas levavam sempre a melhor sobre os peles-vermelhas. As aventuras infindas do Kansas Kid, do Roy Rogers, do Buffalo Bill contra o Touro Sentado, o Nuvem Vermelha, o Cavalo Louco preenchiam o nosso imaginário infantil a contaminar largamente o juvenil e até adulto.

O homem a quem chamaram cavalo veio dizer-nos que o ser-se diferente não nos faz, a priori, nem bons nem maus. Tudo depende  de se cumprirem ou não as regras estabelecidas por cada um dos grupos em presença. Neste caso concreto, entre um representante singular dos invasores ingleses e uma tribo inteira dos invadidos Sioux. O contacto abrupto e o convívio forçado dum europeu nunca até então visto leva a tribo americana que o arrestou a considerá-lo como um mero animal, sem o menor traço de humanidade claro à flor da pele. Tanto para o cativo como para os cativadores, a lei da alteridade considera o outro, individual/coletivo, como um selvagem, cruel e bárbaro. Estão todos errados, afinal. Os padrões é que variam, ou seja, os plasmados na tela e os visionados pelos espetadores.  

No ano em que este filme estreou, estavam ainda em cartaz dois outros de temática afim: The Royal Hunt of the Sun (1969) e o Soldier Blue (1970), de Irving Lerner e Ralph Nelson. Sobre o mais antigo, falei um pouco aqui, o que farei certamente acerca do mais recente, quando voltar a revê-lo numa qualquer estação televisiva. Com três idas ao cinema em menos dum ano, todos os mitos e contramito ligados à conquista do Novo Mundo pelo Velho partiram à desfilada para o país distante do nunca mais. Para tal terá contribuído também o desconforto de ter seguido todos os debates verbais travados na tribo ameríndia em sioux sem legendas auxiliares, pondo-me assim na pele das minorias que são confrontadas com uma língua estranha como se fosse de facto a sua. Tão simples e tão eficiente, em suma.

26 de julho de 2025

Raiz, tronco e copa da árvore da vida

Frida Kahlo, Árbol de familia, 1936
«Mis abuelos, mis padres y yo»
[
MoMA - Museum of Modern Art à New York]

Παῦροι γάρ τοι παῖδες ὁμοῖοι πατρὶ πέλονται,
οἱ πλέονες κακίους, παῦροι δέ τε πατρὸς ἀρείους.
[Poucos são os filhos semelhantes aos pais:
a maior parte são piores; só raros são melhores.]
           Homero, Odisseia (II, 276-277)

Dia dos Avós: Dia dos Pais & Dia dos Netos...

Avô és, neto foste. Esta máxima aplica-se também, mutatis mutandi, à geração intermédia. Pai és, filho foste. Gostaria de trocar o foste pelo és, mas, na parte que me toca, a forma verbal pretérita há muito que substituiu a forma verbal presente. Os fados, o destino, a sina, a fortuna ou o que quer que seja que mede a distância entre o alfa [α] e ómega [ω] cumpriu inexoravelmente o seu percurso, o tal a que o alvedrio humano é sempre vencido pelo determinismo cósmico.

Os meus avós paternos só conheceram os cinco filhos que geraram e, mesmo assim, muito brevemente. Dos oito netos que tiveram o primogénito nasceu após a morte dos dois. O meu pai perdeu a mãe aos dois anos e o pai aos nove. Foi criado pelas irmãs mais velhas e depois internado num colégio. A memória que tinha dos pais era muito escassa e foi essa que nos transmitiu a mim e ao meu irmão. Viviam das terras onde tinham nascido e onde viriam a morrer.

Os meus avós maternos oram mais bafejados. Conheceram a única filha que tiveram e os dois netos que esta lhes deu. Destes, a minha memória é muito fértil, embora distante de décadas no tempo. As palavras que diria a seu respeito não caberiam neste lugar tão justo de espaços e linhas. Desfrutei a sua companhia até à adolescência e mais seria se a raiz, tronco e copo da árvore da vida assim tivesse querido. Ficaram os frutos mais próximos para contar como foi.

No dia dos avós, gostava de os ter aos quatro aqui comigo. Guardo duns e doutros os apelidos de família transmitidos por via varonil de pais a filhos. Seguindo a práxis ancestral injusta que deixa de fora os sobrenomes maternos, também já fiz o mesmo com as minhas filhas e neto. Um legado tradicional que promete dilatar-se por uma geração mais. Vão-se as gentes ficam os nomes cuja origem se perde num tempo remoto onde a memória de quem os usa não chega.

22 de julho de 2025

Pós-modernidades exemplares

Human Body Shaped from Fresh Fruits and Vegetables

Por keshia

Canibalismo Vegano
Muitos críticos gostariam de ser ditadores da literatura…

Não deverá haver mais romances em que um livro de pessoas, isoladas pelas circunstâncias, «voltem à condição natural» do homem, se tornem criaturas essenciais, pobres, nuas. Tudo isso pode ser escrito num conto, o último do género, a rolha da garrafa. Vou escrevê-lo eu por vocês. Um grupo de viajantes vítima de um naufrágio ou de um desastre de avião está algures numa ilha. Um deles, um homem grande, poderoso, desagradá-vel, tem uma arma. Obriga todos os outros a viver num buraco que eles próprios tiveram de cavar. De vez em quando tira um dos prisioneiros, mata-o com um tiro e come o cadáver. A comida sabe bem e ele engorda. Depois de matar e comer o último prisioneiro, começa a preocupar-se com o que fará para arranjar comida; mas felizmente chega um hidroavião e salva-o. Ele conta ao mundo que foi o único a escapar do desastre e que sobreviveu alimentando-se de bagas, folhas e raízes. O mundo maravilha-se com a sua ótima condição física, e um cartaz com a sua fotografia é exposto nas montras das lojas de comida ve-getariana. Nunca é descoberto.

Vê como é fácil escrever, como é divertido? É por isso que eu proibia o género?

Julian Barnes, O Papagaio de Flaubert (1984)
[edição comemorativa. 40 anos da primeira edição]
Lisboa: Quetzal. 2025 (pp. 148, 149-150)

16 de julho de 2025

Pinceladas dispersas à borda-d'água

Praia, mar & dunas

O mar enrola n'areia...

Às 8:00h da manhã, não se vivalma na praia. O extenso areal a perder de vista só é visitado por bandos dispersos de gaivotas que qualquer ruído inesperado faz esvoaçar em todas as direções. Ao meu redor, descansam em espaços restritos as espreguiçadeiras e toldos de aluguer completamente vazios. Virado de costas para as dunas definidoras da linha de costa, dirijo o olhar para o movimento constante das vagas a marcarem as fases altas e baixas das marés com as fileiras de espuma branca da rebentação das vagas, a balizarem as fronteiras oscilantes da borda-d'água.

Pouco a pouco, os grupos de veraneantes começam a semear o território que consideram seu com chapéus-de-sol coloridos, toalhas de praia, cadeiras desdobráveis, para-ventos funcionais e mil e um objetos usuais à beira-mar. Uma fauna exótica, chamaria a minha amiga Aida a estes sedentos de novos territórios a conquistar. Amiga é uma força de expressão, que se aplica à falta de melhor a quem conhecemos medianamente, como é o caso, que apesar de nada e criada em Faro, se converteu ao linguajar afetado de Cascais quando se instalou de armas e bagagens em Algés.

O mar enrola na areia como dizia a canção, as crianças chapinham na água aquecida pelo sol, as horas fluem sem pressa num ambiente de canícula abrasadora. Efeitos evidentes do tal aquecimento global de que tanto se fala e tão pouco se faz. Os banhos, braçadas e mergulhos revigorantes sucedem-se sem pausas de permeio. Os vendedores de bolas-de-berlim passam e repassam em ambas as direções, barlavento-sotavento a um ritmo alucinante. De quando em quando regalo-me com uma recheada de creme pasteleiro. Aperitivo a antecipar uma refeição saudável e ligeira ao almoço.

Entre o meio-dia e o meio-da-tarde os invasores mais resistentes mudam-se para a água a afogar os raios ultravioletas que, mesmo ao abrigo da floresta de sombrinhas coloridas, teimam a grelhar quem lhes fizer frente. Do lanche para a frente, o acampamento dum dia de praia e mar começa a esvaziar-se muito lentamente. O vasto areal entre as dunas raianas e o vasto oceano ficam as marcas visíveis duma ocupação intensa de doze horas solares seguidas. Castelos de areia fugazmente erguidos que as marés noturnas reduzirão fatalmente aos miúdos grãos de que são feitos.

10 de julho de 2025

A cantar y a bailar por sevillanas

Tomàs - Sevillanas

Qué bonitas están las niñas cuando tienen veinte años
Cuando tienen veinte años | qué bonitas están las niñas
cuando tienen veinte años | qué bonitas están las niñas
cuando tienen veinte años | Cuando tienen veinte años
qué alegría en su mirada y en sus andares qué garbo
qué alegría en su mirada | y en sus andares qué garbo
Morenita de ojos negros 
rubita de ojos azules, trigueña pelo castaño 
qué bonitas están las niñas cuando tienen veinte años 
Amigos de Ginés, Niñas de veinte años (1972)

Aprendi a gostar das sevillanas com a minha amiga Sónia. Amiga será um termo exagerado, quando centrada em alguém que tinha vergonha de me olhar ou falar. É que nessas idades ditas dos -teen, a diferença de seis anos mais corresponde a uma eternidade. Estou a vê-la à distância de muitas décadas a passar a ferro a roupa da família e a ouvir e a cantar uma seguidilla sevillana gravada numa cassete áudio de fita magnética. O ferro a vapor que manejava com vigor era uma novidade absoluta para mim. O leitor de cintas então em voga é, agora, um arcaísmo há muito caído em desuso.

Ainda tentei aprender a cantar e a bailar por sevillanas com a M. Esther, a irmã mais velha dos meus amigos extremeños, essa com uma idade bem mais próxima da minha. Mesmo assim, não se inibiu de me encarar e dizer sem tibieza no olhar e timidez no falar, que me faltava requiebro al canto y salero al bailar. Escusado será dizer que nem me atrevi a rascar una guitarra ou atirar-me com afinco ao repique de palillos. Fiquei-me pelo palmateo a marcar o rítmo da melodia e deixei de parte a arte da precursão acertada das castañuelas, na presença de entendidos ou tidos como tal.

A minha atração melódica pelas sevillanas não esmoreceu com o desaire obtido in illo tempore ao tentar cantá-las e bailá-las. Muito pelo contrário. Aquelas Niñas de veinte años, interpretadas pelos Amigos de Ginés e ouvidas à exaustão ficaram-me nos ouvidos. Até hoje. Esqueci-me de quase todas as rimas que lhe dão corpo, mas a melodia que as acompanhavam resistiu na sua totalidade ao tempo. Trauteio-as sem a presença de testemunhas indiscretas. E nem estou a falar das duas nenas minhas amigas de adolescências pretéritas há muito afastadas do meu horizonte de contactos. ¡Y olé!