21 de novembro de 2025

João Aguiar, Díptico dos Lusitanos II: a hora de Sertório, crónicas a três mãos dum general romano contra Roma

«Já nessa época o seu nome não me era desconhecido. Sertório tinha então vinte e um anos e uma presença física extraordinária: uma força da natureza modelada pela alma, pensei enquanto o observava discretamente. Um corpo vigoroso que transmitia uma impressão de resistência e agilidade; um rosto que parecia talhado em pedra a golpes de espada. Nesse rosto, a única expressão estava nos olhos grandes e cinzentos. Eram eles que riam, que se zangavam ou se apiedavam. Em qualquer caso, inspiravam confiança.» 
João Aguiar, A hora de Sertório (1994)

 A história do mundo é feito de invasões. As que se verificaram num tempo anterior aos registos escritos auxiliares da nossa memória só são detetadas, com alguma dificuldade, pelos vestígios que deixaram aquando da sua passagem/permanência pelos espaços que hoje em dia ocupamos. Muitos deles, totalmente estranhos ao nosso modo de os explicar com todo o rigor exigido para afastar os fantasmas do mistério. Depois, há as outras migrações efetuadas com um caráter mais claro de fixação perdurável nem sempre conseguida. No caso especial da mais ocidental península eurasiática, rezam os anais antigos e recentes ter sido visitada em datas nem sempre precisas por povos que nos habituámos a designar de Fenícios, Gregos e Cartagineses, mas também de romanos, bárbaros e mouros, entre alguns mais geralmente referidos nos manuais escolares em nota de rodapé. Dizem também que entre as diversas tribos resultantes da miscigenação de Celtas e Iberos teriam surgido os Lusitanos, eponímia épica por excelência para designar os descendentes de Luso. Não custa nada aceitar em termos simbólicos esses mitos e lendas ancestrais associados ao nosso devir coletivo, que em dada altura dos nossos Séculos de Ouro até inspiraram Camões a cantar as suas armas e barões assinalados.

Os grandes fluxos periódicos de massas, ocorridos em momentos de crise profunda, nunca se dão sem desencadearem um conjunto de rebeliões dos nativos contra os estrangeiros invasores. Então como agora, nada mudou no quadro do comportamento humano ao longo dos tempos. João Aguiar aproveitou-se duma destas ocasiões de instabilidade e assentou arraiais na recriação ficcionada das guerras de ocupação romana da Hispânia, para pintar um díptico verbal da resistência lusitana que lhe foi movida, primeiro n'A voz dos deuses (1984), focado na figura incontornável do caudilho nativo Viriato, seguido uma década depois n'A Hora de Sertório (1994), centrada no general rebelde nomeado no título do segundo relato da série. Uma sucessão altamente improvável representada no teatro dos eventos bélicos travados nos três quartos de século que antecederam a unificação completa do espaço ibérico. Tal como considera o autor nas notas finais do livro, a figura de Quinto Sertório (122-72 AEC) insere-se numa espécie de «folclore histórico» português vertido no partidário dos povos bárbaros levantados contra a grande potência imperial antiga, quando na realidade se limitou a alinhar nas fileiras oponentes da facção política do ditador Sila.

A estrutura organizativa deste segundo painel do díptico novelesco é bastante mais complexa do que a usada no primeiro. O fluxo narrativo passou a repartir-se por três testemunhos escritos distintos, que se completam na diversidade dos episódios convocados a um ritmo cronológico. Olhares lhes podemos chamar, constituindo cada um deles uma espécie de «novela» autónoma de dimensão mediana, partilhando um fio condutor comum aos dois «romances» que formam o retábulo gizado com palavras. Os fragmentos autobiográficos dos emissores internos cruzam-se esporadicamente com o percurso de vida seguido pelo general romano amotinado, tanto na península itálica como na ibérica, funcionando grosso modo como um muito breve esboço biográfico da figura mais importante da efabulação. A prestação inaugural foi confiada a Euménio de Rodes, um filósofo fictício grego estabelecido em Roma, que nos legou um conjunto de fragmentos de reflexão pessoal datados de 95-79 AEC. Seguem-se-lhe os escritos de Lúcio Hirtuleio, descrito nas Notas finais como um estratega conceituado da Guerra Sertoriana (80-72 AEC) e o mais fiel colaborador do seu líder. O derradeiro bloco deve-se a Medamo, referido por Plutarco e ficcionado por João Aguiar, para documentar o assassinato do herói, nos últimos instantes da Hora de Sertório.

O encontro casual dum rolo de papiro nas ruínas do santuário de Endovélio, exarado pelo seu antigo guardião, abre as portas a um romance histórico tradicional, decalcado nos cânones vulgarizados a partir da sua fase romântica oitocentista. Promove ainda a ligação discursiva entre os dois vultos maiores da resistência lusitana à ocupação latina, através do narrador singular do painel mais antigo do díptico e do narrador charneira do mais recente. Este achado faculta-nos, deste modo, a interface estratégica entre os itinerários vitais do portador da insígnia do touro e do homem da corça, i.e., de Viriato e Sertório. A busca sistemática pela verosimilhança genérica exigida e viabilizar a reconstituição criteriosamente encenada. Assim se representa de modo credível uma panóplia documentada de factos fingidos mesclados num repositório de factos efetivamente acontecidos. Onde as lacunas históricos se instalaram ao longo dos tempos nos anais oficiais conservados, a verve criativa romanesca encarrega-se de as preencher plausivelmente com todo o engenho e arte gerado ao sabor das malhas da imaginação literária.   

17 de novembro de 2025

Olhar idealizado da rainha perfeitíssima olhada à distância por José Malhoa

José Malhoa, Rainha D. Leonor de Lencastre (1926)
[Caldas da Rainha, Museu José Malhoa]

Os 500 anos da rainha das caldas e das misericórdias

Num dia como o de hoje de há precisamente quinhentos anos, a Rainha Dona Leonor de Lencastre exalava o último suspiro. Aquela a quem as didascálias da Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente referiam como a Rainha Velha e que a minha geração se habituou a identificar como Dona Leonor de Lencastre, passou a ser apelidada de Avis, de Viseu ou de Portugal. A Rainha Perfeitíssima foi espoliada no universo mediático do nome da Rainha da Boa Memória.

Nas Caldas da Rainha tudo evoca/evocava a sua insigne padroeira, a consorte de Dom João II, duas vezes herdeira da coroa portuguesa, a bisneta mais ilustre de Dona Filipa de Lencastre, a matriarca da Ínclita Geração. O Hospital Termal por si fundado em 1485 continua a lembrá-la em cada recanto que o nosso olhar alcance e os guias turísticos nos conduzam. O mesmo se não poderá dizer do parque fronteiro ao complexo termal, agora rebatizado de Dom Carlos I.

No centro desse espaço ajardinado ao gosto romântico, fica o Museu Malhoa, que possui no seu espólio um retrato póstumo da Rainha Dona Leonor (1926), uma tela a óleo pintada pelo grande mestre caldense e doado à instituição aquando da sua criação em 1933. Ali se mantém imponente até hoje, numa sala condigna da sua grandeza régia, depois de ter esperado provisoriamente na Casa dos Barcos pela inauguração oficial do edifício definitivo no ano seguinte.

O olhar idealizado rainha perfeitíssima olhado à distância por José Malhoa representa-a na flor da idade, pouco depois de ter subido ao trono. A paleta do pintor naturalista não a tingiu com as cores sombrias dum amanhã ainda distante, a mãe enlutada pela perda do filho adolescente e a viúva amargurada sem vontade de sorrir para quem se deixasse olhar. Imagem ainda inacabada duma princesa real com tanta vida ainda para viver e tantas histórias por contar.

Armas da Rainha D. Leonor de Lencastre
Jean du Cros, Livro da Perfeição das Armas (1509)
[Lisboa, BNP]

12 de novembro de 2025

O bicentenário discreto de Camilo Castelo Branco


O silêncio é uma confissão
Camilo Castelo Branco, O bem e o mal (1863)

Deixei passar em branco o bicentenário do nascimento de Camilo Castelo Branco. Não posso esperar pelo bicentenário da sua morte, porque nessa data já não terei possibilidade de o fazer.

Vasculhei nos escaparates das livrarias ainda abertas aqui do burgo e não encontrei quase nada da vasta obra que nos legou. Nem a diversidade de géneros cultivados ajudou nessa pesquisa.

Sacudido o das edições antigas e munido duma máscara sobrante da Covid-19, reinicio a tarefa de reler os títulos residentes nas minhas estantes pessoais. Já os tenho à minha beira. Mãos à obra.

Um dia destes ainda me vou pôr a falar dum deles. Até pode ser O bem e o mal que me emprestou o tema para retirar do silêncio um dos imortais da república das letras portuguesas. Veremos.

Obs.:
Camilo Castelo Branco  (Lisboa, 16 de março de 1825 – São Miguel de Seide, 1 de junho de 1890)

6 de novembro de 2025

A tertúlia das musas parnasianas…

Raffaello Sanzio, Parnaso (c. 1510-1511)
[Pallazzo Apostolico, Stanza della Segnatura, Vaticano]

Tertúlia - Tália - Parnaso

Ao entrar nos pretéritos anos 60 na Rua das Montras rumo à Praça da Fruta, deparávamo-nos com três pequenas livrarias, cujos nomes nos sugeriam de imediato alguns dos mitos e lendas ancestrais mais conhecidos da cultura helénica clássica: Tertúlia, Tália e Parnaso. Estava concentrado naquela via central da Caldas da Rainha um grupo de seres divinos e heroicos evocados amiúde pelas letras e artes. Olhando para os frescos renascentistas de Rafael no Vaticano, encontramos ali representados muitos deles a duas dimensões, sobretudo os ligados ao deus Apolo e às nove Musas, reunidos na ΄Ορος Παρνασσός, próximos de Delfos, a cantar e dançar em coro ao som da lira e dos versos dos poetas imortais antigos e modernos.

A Tertúlia de Artes e Letras ficava à entrada daquela correnteza de lojas variadas. Estava sediada no primeiro andar dum prédio idêntico a tantos outros ali residentes, mas com um recheio de livros, discos, gravuras, peças de arte, permitindo o convívio com muitos criadores dos heróis da imaginação elevados às alturas da imortalidade. Ali se reuniram no escasso par de anos da sua vida vultos conhecidos da nossa cultura, em tertúlias literárias e artísticas da παιδεία lusitana, resistente às diatribes usuais nos tempos da outra senhora de má memória para os amantes do livre-pensamento. Subi os degraus daquela escadaria uma meia dúzia de vezes e encontrei sempre ao meu dispor tudo aquilo que procurara em vão noutros locais.

Um pouco mais à frente, no outro lado da rua ainda aberta ao tráfego automóvel ficava a Tália, a mais ampla e concorrida do trio, talvez por funcionar também como papelaria, discoteca, ludoteca e outras ofertas mais para quem a visitava por hábito ao longo do dia. A musa da Comédia ‒ a tal que inspirara o nome da loja ‒ lá estava em sintonia fraterna na companhia das demais protegidas de Apolo, a guiar os potenciais amantes mortais da poesia, drama, história, dança e beleza em geral, para levarem para casa um pouco da criação artística e científica produzidas com a sua inspiração divina. Por ali passei vezes sem conta. Ali folheei revistas, ouvi discos e cirandei sem destino certo, como muitas vezes convém.

A terminar o circuito triangular e após uma nova travessia do itinerário comercial a céu aberto da cidade da rainha, deparámo-nos com a Livraria Parnaso, a mais pequena de todas mas também a mais longeva, a única que tem conseguiu resistir até aos nossos dias à voragem inexorável do tempo. A minha memória visual guarda a imagem precisa do espaço exíguo onde os livros se viam por toda a parte protegidos pela vitrine da montra virada para os passeantes e pelo balcão protetor de atendimento dos clientes. Tocávamos-lhes à distância com os olhos arregalados e cheirávamo-los com ambas as narinas bem abertas. Depois da compra, saíamos com os sentidos bem despertos para a aventura da escrita que nunca falhava.

Livrarias surgem, livrarias partem, mas, no admirável mundo novo em que vivemos, são mais as que fecham as portas até um nunca mais do que aquelas que as abrem para os amantes de livros físicos novinhos em folha. O contacto com a escrita faz-se cada vez mais à distância. O virtual condenou as sinestesias da leitura à tirania insípida do digital. Tudo se resume ao matraquear do teclado dum PC ligado à Net e à visualização do texto desejado no respetivo ecrã. Livrámo-nos de vez das poeiras e odores a mofo das edições antigas, mas fomos igualmente impedidos de acariciar as palavras impressas a tinta numa folha de papel. Por outras palavras, deitou-se o bebé fora junto com a água do banho. Nem mais nem menos.

31 de outubro de 2025

Gustave Flaubert, anatomia realista das ilusões românticas de Madame Bovary

« Par la diversité de son humeur, tour à tour mystique ou joyeuse, babillarde, taciturne, emportée, nonchalante, elle allait rappelant en lui mille désirs, évoquant des instincts ou des réminiscences. Elle était l’amoureuse de tous les romans, l’héroïne de tous les drames, le vague elle de tous les volumes de vers. Il retrouvait sur ses épaules la couleur ambrée de l’odalisque au bain ; elle avait le corsage long des châtelaines féodales ; elle ressemblait aussi à la femme pâle de Barcelone, mais elle était par-dessus tout Ange ! »

Junto a mim tenho o romance dos romances de Gustave Flaubert, o Madame Bovary (1857), aquele que marcaria a entrada em cena das estéticas realistas da ficção francesa e europeia. Para grande espanto meu, o exemplar resgatado da estante de casa, adquirido numas férias de verão passadas em Dinard, no início de setembro de 79, surgiu-me imaculadamente livre de qualquer tipo de anotação comentada ou sublinhada, a revelar-me o facto algo insólito de nunca o ter lido neste quase meio século de silêncio discreto. O razoável conhecimento que tenho da obra ter-me-á sido transmitida por uma qualquer versão filmada com difusão televisiva. Refeito da surpresa, lancei-me à tarefa de o fazer pela primeira vez. Substituir as imagens em movimento do pequeno ecrã pelas palavras registadas nas cinco centenas de páginas que muito tempo deixaram de cheirar a tinta acabada de imprimir.

São conhecidos os traços autobiográficos do romancista, novelista e contista normando oitocentista mesclados na ficção. Comprovei-o na leitura recente de duas delas, publicadas em data posterior à destas crónicas de costumes provincianos, com uma especial incidência na Educação sentimental ou n' Um coração simples. Tal não ocorre na sua obra magna, ausente da tessitura narrativa com tanta clareza. Ao invés, tudo leva a crer terem as suas fontes sido bebidas num conjunto de faits divers dispersos, divulgados aquando da escrita e devidamente identificados e comentados pelos seus estudiosos mais chegados. O conhecimento dos espaços cénicos onde decorre a ação e passou grande parte da vida, adstritos do seu país natal, terá ajudado a criar a atmosfera ideal para relatar com verosimilhança os eventos ali ocorridos no mundo real e no ficcionado.

Emma Bovary segue de muito perto o percurso desviante de Delphine Coutourier, Louise Pradieu ou Marie Lafarge, possíveis modelos reais do drama burguês imaginado no fictício vilarejo de Yonville-l'Abbaye e na factual cidade de Rouen. Porém, a passagem daquelas histórias acontecidas para as imaginadas não é feita dum modo linear. Trai como todas elas o marido em pensamentos e em atos, mas o seu destino é depois adaptado pela instância enunciadora a uma variante pessoal mais adequada às exigências dum romance. Permanecem as aventuras amorosas extraconjugais, a aversão crescente pela vida matrimonial, o acumular de dívidas consideráveis impossíveis de saldar, a aquisição a crédito de numerosos objetos de luxo, a espiral infindável de mentiras para encobrir o adultério, a atração inexorável para a queda iminente num abismo impossível de evitar. E, como seria fácil de prever, culmina com o suicídio da protagonista. O remate final das restantes pontas soltas no relato seguem os trâmites expectáveis nas estéticas do novo género literário acabado de nascer, empenhado em retratar fielmente a vida, tal qual ela acontece no dia a dia e com toda a veracidade ao seu dispor.

No final da escrita da saga passional de Charles e Emma Bovary, o seu relator acusou o cansaço extremo sentido de trazer à luz do dia uma tal profusão de infortúnios doentios de contorno folhetinesco. Rapidamente resolveu trocar o cenário contemporâneo gaulês pela esfera da antiguidade cartaginesa espelhada na Salammbô. Lidas as três partes e trinta e cinco capítulos do livro, experimentei uma certa solidariedade com o autor. Longe da vista longe do coração, diríamos nós, apesar de nos esquecermos uma ou outra vez que a verdade dos heróis/anti-heróis dos romances só existir, de facto, nas páginas impressas do faz-de-conta que as alojam. É que o uso e abuso dum ultrarrealismo desmesurado arrisca-se a cair nas malhas dum pseudorrealismo irreal. A reação às alegadas ofensas à moral pública e religiosa, detetadas nos seis números publicados pela Révue de Paris (1856), não logrou mesmo assim impedir que essa tal Histoire des adultères d'une femme de province ‒ como lhe chamou o advogado de acusação no processo judicial que lhe foi movido  circulasse em livro e esgotasse sucessivas edições até à presente data. O poder criativo e libertador da literatura tem destas coisas, para proveito e deleite dos leitores de todos os tempos.

EPÍGRAFE
«Pela diversidade do seu humor, ora mística ora alegre, ora tagarela, ora taciturna, ora extasiada, ora indiferente, ela despertava nele mil desejos, evocando instintos ou reminiscências. Era a amante de todos os romances, a heroína de todos os dramas, o vago ela de todos os volumes de versos. Ele encontrava nos seus ombros a cor âmbar d’a odalisca no banho; ela tinha o longo corpete das castelãs feudais; assemelhava-se também à mulher pálida de Barcelona, mas era acima de tudo um Anjo!»
G. Flaubert, Madame Bovary (1857)

27 de outubro de 2025

Paraísos Perdidos

Henri Rousseau - Foret vierge au soleil couchant (1910)
[Kunstmuseum Basel - Schweiz]
“The mind is its own place, and in it self | can make a heaven of hell, a hell of heaven.”
John Milton, Paradise Lost, (1667: I, 254-255)

 LOCUS AMŒNUS                                     

Os anos dourados da minha infância foram passados alternadamente entre três paraísos irremediavelmente perdidos logo à entrada da pré-adolescência. Situavam-se esses locus amœnus distantes na Estremadura natal, como então se designava toda a região que servia de linde natural entre o Setrentrião duriense e o meridião alentejano, e se mantém, para todos os efeitos, uma das mais antigas províncias históricas portuguesas. Estou-me a referir à Praia da Areia Branca, na costa atlântica ocidental; o povoado da Abrigada, nas faldas da Serra de Montejunto; a herdade de Rio Frio, na Península de Setúbal. Por ora, vou-me ficar por este último recanto habitado pelas minhas memórias remotas.

A lembrança mais nítida que guardo deste paraíso perdido provém do perfume intenso a eucalipto, emanado duma pequena mancha florestal plantada a meio da vasta propriedade rural. Formava como que um enclave arborizado, a rodear uma pequena capela caiada de branco, ladeado pela imponente casa senhorial com ar palaciano e pelo aglomerados de habitações modestas do pessoal assalariado, dispostas à volta dum recinto descoberto comum. Era neste pátio que ocorria grande parte das minhas brincadeiras e da garotada localNunca entrei na casa dos patrões, onde a minha tia servia como cozinheira, nem na casa do santo desconhecido, que uma das minhas primas cuidava.

Fora deste recinto descoberto contíguo ao casario dos assalariados residentes, o paraíso perdido abria-se para os amplos espaços a perder de vista. Havia as valas com água corrente de rega dos arrozais, boas para pescar se se fizesse o silêncio exigido pelo meu pai e observar os touros bravos que pastavam no outro lado da lezíria. Noutros espaços mais abrigados do sol, havia a possibilidade de apanhar um ou outro sapo e uma ou outra enguia, no meio dos tanques naturais rodeados de agriões, enquanto as vizinhas faziam a lavagem da roupa e a punham a corar na relva. Momento também de merendar em plena natureza, numa altura em que ainda se não falava em piqueniques.

O final das diversões ao ar livre era marcado pela corrida veloz do Joly rumo à oficina de carpintaria onde o dono trabalhava. Ignoro se havia alguma sineta ou se era só ele que a ouvia soar. Com a chegada dos dois a casa, ceávamos todos com o cachorro a dar ao rabo à volta da mesa. Seguia-se uma conversa animada à beira da lareira, sentados nuns banquinhos de madeira feitos pelo meu tio. Por vezes, dávamos uma saltada à coletividade, para brincar com a criançada, ver televisão ou assistir à projeção dum filmeLembro-me das autoridades presentes nessas ocasiões me terem impedido de ver O Terceiro Homem, que só visionei muito mais tarde depois de atingida a maioridade.

Tempus fugit, diziam os latinos e nós repetimos por tudo e por nada. A Areia Branca e a Abrigada dos meus avós  muito se apagaram no meu horizonte de eventos, embora possam ser revisitados num espaço geográfico necessariamente transformado. O Rio Frio dos meus tios desapareceu mesmo do mapa e nem sequer permite uma visita fugaz para matar saudades. Esteve para ser o novo aeroporto de Lisboa. Projeto abandonado como muitos outros nascido em mais de meio século de devir histórico. Com o olhar de decano que o tempo cavou, recupero os paraísos perdidos da infância através dos exercício de memória que o meu mirar atento fixado no remoto consegue enxergar.

22 de outubro de 2025

Pelo toque das castanholas...

                                    CHAROLEIRAS DE ESTOI                                    

Más contento que unas castañuelas...

Se se quiser dar um toque andaluz a um canto espanhol, junte-se-lhe um par de castanholas. Para lhe imprimir ainda um pouco de salero, que seja cantada/dançada por uma bailaora/cantante com uma bata de cola flamenca, uma peineta y mantilla e um clavel rojo en la oreja. O look ideal estará criado, o ambiente de feria de abril está criada. Depois a originalidade do todo obtido pouca importância tem, quando acompanhada pelo repique de palillos de las castañuelas.

Regista a memória dos povos que as castanholas eram conhecidas dos fenícios 3000 anos. Depois ter-se-ão espalhado um pouco por toda a parte no mundo antigo e moderno, continuando populares nas culturas ibéricas, magrebinas, sefarditas, otomanas e ciganas. Em termos meramente portugueses, as iluminuras do Cancioneiro da Ajuda documentam a sua forte presença nas mãos das cantadeiras e bailadeiras das cantigas trovadorescas galaico-lusitanos.

Pelo toque das castanholas, também se chega à tradição popular algarvia de cantar as charolas em grupo e de casa em casa, no dia de Ano Novo e nos seguintes até aos Reis, a celebrar o nascimento do Deus-Menino. As castanholas são obrigatórias nestas ocasiões festivas e comunitárias, para acentuar o ritmo das canções e versos alusivos interpretados. Ouvem-se sobretudo nos meios rurais mas também em festivais urbanos em toda a época natalícia. Viva! 

Estou a poucos dias de participar em Jerez de la Frontera num encontro internacional de coros. O Ossónoba leva na bagagem  o «El vito», um baile, canto e música popular andaluza que aguenta muito bem o toque das castanholas. Fá-lo-emos à moda portuguesa, com as conchas de madeira ornadas com fitas coloridas e seguras pelos quatro dedos maiores das mãos, que também as farão vibrar e levar o público a gritar no final os olés e vivas merecidos. ¡Vale!

Cancioneiro da Ajuda
Trovadores nobres - Bailadeiras com castanholas - Jograis com saltérios