10 de fevereiro de 2020

Peter Shafft: a caçada real do sol dramatizada em palco, tela e livro

"OLD MARTIN: Save you all. My name is Martin. I'm a soldier of Spain and that’s it. Most of my life I’ve spent fighting for land, treasure and the cross. I’m worth millions. Soon I’ll be dead and they’ll bury me out here in Peru, the land I helped ruin as a boy. This story is about ruin. Ruin and gold. More gold than any of you will ever see even if you work in a counting house. I’m going to tell you how one hundred and sixty-seven men conquered an empire of twenty-four million. And then things that no one has ever told: things to make you groan and cry out I’m lying. And perhaps I am. The air of Peru is cold and sour like in a vault, and wits turn easier here even than in Europe. But grant me this: I saw him closer than anyone, and had cause only to love him. He was my altar, my bright image of salvation. Francisco Pizarro! Time was when I’d have died for him, or for any worship."
Peter Shaffer, The Royal Hunt of the Sun (1969)
Decorria o primeiro ano da década de 70 quando vi num ecrã gigante dum cinema de Lisboa a versão filmada por Irving Lerner da história do Atahualpa Capac, Senhor dos Quatro Quartos, Divisões ou Regiões do Mundo, Rei da Terra e do Céu, filho do Sol e da Lua. Esqueci-me do nome da sala e da data exata em que ocorreu. Lembro-me perfeitamente do impacto que aquela hora e meia me causara e de ter adquirido então a versão escrita da peça de Peter Shaffer que estivera na sua origemA caçada real do sol (estreada nos palcos ingleses em 1966 e nas telas americanas em 1969), ainda permanece viva hoje em dia nas minhas memórias, a meio século de distância da projeção do filme e da leitura do livro.

Voltei à companhia das duas versões da história do 14.º Sapa Inca depois de ter terminado a leitura do mais recente grand prix du roman de l'Académie française, atribuído a Laurent Binet com o Civilizations (2019). A visão ucrónica deste fabulista francófono difere em muito da visão canónica dos dois fabulistas anglófonos. O senhor do maior império andino da época pré-colombiana nunca abandonou o território americano que o vira nascer entre 1497 e 1500, nunca lhe passou pela cabeça cruzar o vasto mar atlântico em 1531,  conquistar grande parte do continente europeu e governar essa Quinta Região com pulso de ferro, até que a morte o levasse desta vida em 1547, no preciso ano em que Cervantes era dado à luz em Alcalá de Henares. O destino de Ataw Wallpa de Tahuantinsuyu, o Ditoso na Guerra, o Galo Feliz, a Ave da Fortuna, foi mesmo capturado e executado na cidade de Cajamarca em 1533, a mando de Francisco Pizarro, o conquistador castelhano do Peru.

O drama representado em espaço cénico está repartido por dois atos - a Caçada e a Morte -, cabendo a cada um deles doze cenas. Pode-mos ver nesta estrutura as vinte e quatro horas dum dia completo, uma metade regida pelo Sol e outra pela Lua, progenitores míticos do soberano derrotado e marcos da sua submissão e eliminação ao novo poder imposto pelo general vitorioso. O relato é confiado ao velho Martin Ruiz (ausente na película anglo-americana fixada em celulose), que procede a um balanço crítico dos factos ocorridos anos atrás, quando ainda era um jovem pajem ao serviço de Pizarro e servia de intérprete a Atahualpa. Fá-lo como se tivesse encarnado o papel dum verdadeiro corifeu, aquele que empresta alternadamente a voz a dois coros rivais armados, a dos cristãos forasteiros e a dos pagãos nativos.

Lidos os livros e visto o filme, confirmamos que as civilizações são sempre regidas pela força de quem as impõe ou pela resistência de quem as defende, que as noções de correto e incorreto dependem invariavelmente do ponto de vista de quem julga em detrimento de quem é julgado. A imortalidade do filho de deus feito homem defendi-da tanto por Incas como por Castelhanos difere no modo como é explicada pelos dois cultos em presença. Normal para uns, anormal para outros. A sensação de estranheza sentida por uns e por outros só depende da familiaridade que se tenha com o insólito metafísico em presença. À força de o ouvirmos repetir tantas vezes, acabamos por aceitá-lo como uma verdade que não admite contestação. Defen-der a ressurreição dum rei-deus filho do deus-sol é tão credível como defender a ressurreição dum deus-homem parte dum deus-trino sem corpo. O alegado sucesso do primeiro e o comprovado insucesso do segundo se deve atribuir à vontade dessa tal entidade superior transcendente conhecida por Deus a que a imanência do Homem estará submetida. E a vida sucumbe à morte e a morte comanda a vida, enquanto o Sol brilha, rutilante.   

PIZARRO & ATAHUALPA
[Granger Colectio & Brooklim Museum]

2 comentários:

  1. Muito interessante.
    A história contada pelos vencedores é sempre diferente daquela que é contada pelos vencidos, são inevitávelmente dois lados de uma mesma moeda.
    Só o planeta é o mesmo,as visões do mundo são tantas quanto o humanos que o habitam quiserem.

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  2. A História não se reescreve, lembrava eu a uma amiga, quando estivemos em Trujillo, cidade natal de Francisco Pizarro. A luta entre os castelhanos e os incas foi repetida sob outras formas nos mais diversos recantos do globo, ao longo dos séculos, com o homem a impor a sua força sobre os seus semelhantes, tantas vezes em nome do Deus que diz venerar. Nos nossos dias, a História repete-se noutros moldes...

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