14 de abril de 2015

Crónicas e contos katafaraónicos

«Nanfazcafalta constatou que um erudito sentado nunca chegaria a interpretar um único símbolo katafaraónico. O mesmo se aplica aos sábios deitados, ajoelhados, acocorados ou de pé ‒ posições que vedam o acesso ao símbolo. Nanfazcafalta empreendeu a decifração de numerosos fragmentos, colocando-se naquela posição a que se dá o nome de pyno. O êxito de Nanfazcafalta que diz que as posições do texto e do leitor não são permutáveis.»
José Martins Garcia, Katafaraum é uma nação (1974) 
Lembro-me muito bem do último livro que li no tempo da outra senhora e das circunstâncias que o fez chegar às minhas mãos. Tenho-o aqui ao meu lado. A testemunhar a sua existência física para além da memória que guardasse dele. Faz ou fez agora 41 anos que o encontro ocasional se deu. Não sei precisar o dia exato de abril em que o adquiri na Compasso da Saraiva de Carvalho, a Campo de Ourique, a um quarteirão de distância da rua onde na altura morava. Teria saído do 28, agora tão na moda, e entrei no local de perdição, onde as novidades literárias imperavam com aquele chamamento impossível de resistir de papel impresso a cheirar a tinta. Chamou-me a atenção a orientação gráfica da capa vestida de vermelho e do título enigmático grafado a verde dum exemplar ali exposto, a que José Martins Garcia, um autor para mim desconhecido, dera à obra, Katafaraum é uma nação (1974). Folheei as quase duas centenas de páginas que o compunham e fiquei rendido à escrita registada nas entrelinhas, para descrever de modo embuçado um país que não tive dificuldade a identificar com o meu. Levei-o para casa e li-o numa assentada. Deliciado no exercício de decifrar as mensagens subliminares contidas no seu interior. Preparei-me a comentá-las com os meus amigos da época. Tão jovens como eu. Nunca cheguei a satisfazer esse meu desejo. A Revolução dos Cravos entrou em cena e tudo passou a ser encarado de modo diferente. Sou incapaz de identificar o primeiro livro que li em liberdade. Só sei que foi um entre muitos. Nenhum deles, todavia, terá exercido um efeito tão intenso como aquele que encontrei à minha espera numa pequena livraria de bairro alfacinha.

Os textos reunidos no volume editado com a chancela da Assírio & Alvim, inserido na nova série dos cadernos peninsulares, estão repartidos por duas partes distintas: vinte e uma «Crónicas», dezasseis das quais já publicadas no suplemento «Fim de Semana» do jornal República; e nove «Contos Katafaraónicos» autónomos, o inaugural da série já divulgado no mesmo meio de comunicação escrita e os restantes com caráter inédito. Tudo se passa no país katafaraónico (Portugal), nação onde reina uma cultura-pensamento hidrófila (< hidro- + -filo = «que gosta de meter água»), senhora duma escrita intrigante só decifrada através do esforço iluminado do sábio oriental Nanfazcafalta (< Não-faz-cá-falta = «erudição inútil»). Oportunidade para criticar de forma cifrada - a única possível na altura - essa nação vizinha de Ispahan (Espanha), aquela em que a estrutura piramidal ou da lei do funil, ditada pelo basileus (imperador = «chefe de estado») e pedagogúnico (< pedagogo + único = «presidente do conselho») para felicidade suprema do rebanho em permanente transumância (migrações internas e externas). Ultrapassando a escrita hieroglífica inventada pelos homens de guitarra e de gládio, satiriza-se com a secular habilidade do escárnio e maldizer, a censura e os censores, a pedagogia e os pedagogos, a arte e os artista, a política e os políticos. Significativamente, o compilador anónimo dos fragmentos identificadores duma nação adverte, logo no início da fábula, relato ou alegoria, que o mais célebre de todos os centros hidrófilos foi arrasado por um maremoto, no ano setenta da nossa era, no momento em que se executava uma viragem inexorável para a esterilidade. A tal passagem artificial do salazarismo de má memória para uma primavera marcelista que nunca deu frutos muito palpáveis.                 

Guardo uma memória menos nítida da impressão que os contos da segunda parte da compilação então exerceram em mim. Obedecem a um registo diferente das crónicas, mais facilmente identificados com a tal nação verde-rubra colorida com vista para o mar e para algumas ilhas a perder de vista no horizonte. Talvez volte ao seu convívio um dia destes e reaviva as mensagens cifradas nos três ciclos simbólicos documentados: o Diabo (o vivo e o dos grandes remédios), o Herói (o imperfeito, o mais-que-perfeito e o perfeito), a Linguagem (a da competência e a da performance). Talvez o faça se estiver para aí voltado, até porque o livro que os profissionais do lápis azul e da tesoura castradora da censura deixaram passar inadvertidamente sem exercer o seu poder purificador para que estavam mandatados pela moral e bons costumes. Falta então imperdoável aos farejadores encartados de subversivos ou opositores do regime, que é o que Katafaraum também poderá querer significar (< Kata(r) + far(o) + a + um = «catadores de parasitas»). Talvez o faça, de modo a resgatar dum ostracismo imerecido um livro sobre a opressão que a liberdade, ironicamente, recambiou em 74 para o tal cemitério dos livros esquecidos, de que falava um ficcionista sobejamente conhecido à escala global nos nossos dias, lugar sombrio onde todos os livros se arriscam a ir parar, se deixarem de ser percorridos pelos sentidos despertos dos leitores: respirar o perfume segredado das palavras estampadas a negro em fundo branco e saborear avidamente as histórias tateadas com o olhar ao longo das viagens de descoberta pelos universos infinitos da imaginação libertadora.

3 comentários:

  1. José Martins Garcia, grande biógrafo de Vitorino Nemesio. Gostei de ler no seu blog o que diz sobre o Katafaraum mas, achei graça, sobretudo ao facto de termos sido vizinhos nessa época... velha e boa Compasso que, claro, já não existe...

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  2. Os livros que nos marcaram indelevelmente, num tempo em que a cadeira ainda não nos tinha salvo de uma ditadura que manteve o povo na ignorânia e na miséria. Falando nisso, recordo-me de um livro, cujo título agora me escapa, que ironizava acerbamente sobre a pena ignorante que castrava o livre pensamento expresso em textos perfeitamente compreensíveis por leitores atentos. A ignorânia ainda deixou escapar, para nosso deleite, muita palavra iluminadora. Frequentei muito a Compasso também, memoria do tempo de uma juventude feliz, num bairro ainda hoje considerado um dos melhores da capital alfacinha.

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  3. Éramos então todos vizinhos uns dos outros e nem sequer sabíamos que um dia falaríamos duma livraria já extinta e mesmo assim motivadora que tantas memórias dum tempo tão importante dos nossos verdes anos juvenis.

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