«“Ha Geveret”, così hanno chiamato gli ebrei Dona Gracia Nasi, la Dominatrix, dal momento che aveva costruito a proprie spese, nel quartiere affollato di Balata, una sinagoga che ad un tratto fu chiamata "la Señora".»Edgarda Ferri, L'Ebrea Erante. Donna Grazia Nasi dalla Spagna dell'Inquisizione alla Terra Promessa (2000)
Alguém disse algures que a criatividade humana é mais aparente do que real. A ideia até pode ferir os ouvidos mais sensíveis. A verdade nua e crua da afirmação pode ser testada com alguma facilidade. A conversão da natura em cultura tem vindo a ser concretizada por um conjunto de princípios que mantêm sempre algo de comum entre si. Opõem-se sobretudo na capacidade de disfarçar a imitação com um ou outro elemento estranho que dê uma ilusão consistente de novidade. A configuração do nosso mundo envolvente tem vindo a obedecer a um processo contínuo de afirmação/rejeição das normas vigentes nos sucessivos períodos de espaço-tempo que pontuam o devir histórico do homo sapiens. A cíclica luta entre o cosmos previsível do já feito e o caos imprevisível do por fazer é particularmente visível nas dialéticas seguidas pela república das letras. Os modelos biográficos de figuras públicas conhecidas são dos mais expostos a esse pendor diegético de dizer o mesmo com outras palavras. O percurso de vida de Beatriz de Luna Mendes / Grácia (Hannah) Nássi encontra-se nessa situação ingrata de ter sido relatada ao sabor da imaginação dos efabuladores mais ou menos oficiais que lhe deram corpo.
A recente releitura da versão gizada por Catherine Clément, n' A Señora (1992), levou-me a revisitar uma outra mais recente composta por Edgarda Ferri, n’ A Judia. Do Portugal da Inquisição à Terra Prometida (2000). O confronto entre as duas assaltou-me de imediato a ideia. Vou resistir à tentação de fazê-lo, muito embora a vontade me não falte. Limitar-me-ei a destacar que a imaginação poética que define a primeira é substituída pela reportagem prosaica da segunda. A vertente objetiva da jornalista e ensaísta italiana impede-a de rivalizar com a subjetividade da romancista e ensaísta francesa. Escusado será dizer por qual das duas contadoras de fadários alheios a minha preferência recai. Revelação aliás bem pouco pertinente, dado que a vocação primordial dos livros é suscitar tantas leituras quantos os leitores envolvidos. A minha interpretação não é melhor nem pior do que as demais. Gostaria todavia de salientar que a grande dificuldade com que os cultores deste género se deparam depende em grande medida das fontes seguidas. Neste caso concreto, a consulta confessada por ambas em nota final de edição está ancorada nos trabalhos modelares de Sir Cecil Roth, A History of the Marranos (1932) e The House of Nasi (1940). Divergem naturalmente na forma. Outra coisa não seria de esperar em duas obras autónomas e complementares.
A peregrinação traçada por Edgarda Ferri segue de muito perto os caminhos trilhados pela marrana sefardita portuguesa e registados em todas as enciclopédias dignas desse nome. Lisboa, Londres, Antuérpia, Veneza, Ferrara e Istambul, com passagens rápidas por outros pontos intermédios da bacia mediterrânica europeia e asiática. A hipótese de ter falecido na Palestina é ignorada. O real sobrepõe-se sempre ao imaginário neste arrolar de factos acontecidos aceites por todos sem se deixarem estrebuchar por suspeitas pouco consistentes. O rigor enunciativo do discurso produzido esbarra, porém, com a verdade histórica exigida no ato da escrita. Deslizes pouco significativos mas sistemáticos. Tudo começa no subtítulo original dado à naturalidade da heroína. Segundo se julga saber, apesar de ter percorrido meio mundo até chegar à Terra Prometida, nunca terá pisado terras de Espanha. Pormenor a juntar a muitos outros geralmente situados na geografia cultural do Portugal da Inquisição. Como, por exemplo, insistir na antiga capitalidade de Évora, a cidade das muitas colinas e bosques de castanheiros, localizada a curta distância da Batalha. Falhas que podemos atribuir à pesquisa apressada de quem viajou mais pela fantasia delirante de ficcionista aprendiza do que pela mestria científica da investigadora aclamada, dando razão aos créditos aludidos na contracapa do exemplar que tenho entre mãos.
A Ha Gueveret do povo judeu na diáspora, a mecenas de artistas e financeira de reis, atravessa de modo muito tímido as menos de duas centenas de páginas da crónica factual disfarçada de romance. O mesmo se diga do papel meramente decorativo dos restantes elementos da família na tessitura narrativa. Sombras sem vida dum grupo de destinos iluminados pujantes de vida. Quem quiser perscrutar a dimensão psicológica de cada um deles que enverede por outras vias alternativas. Comece pelas palavras inspiradas que Samuel Usque dedicou «À Ilustríssima Senhora Dona Gracia Nasci», prossiga com «Da ordem e razão do livro prólogo aos senhores do desterro de Portugal» e ouça os três Diálogos que compõem a Consolação às tribulações de Israel (1553). Está tudo lá. Basta fazê-lo com toda a atenção que o tema merece e a memória exige.
Muito interessante. Realmente o pior que nos pode acontecer quando lemos um romance histórico é constatar a falta de rigor, pelo menos, naqueles que conseguimos detetar. Registei as sugestões alternativas...
ResponderEliminarMais uma excelente resenha, Prof., que orienta a leitura do livro ao denunciar as principais falhas narrativas da jornalista Febri que, pela profissão, deveria ser mais rigorosa. Aliás, como não li nenhum dos romances, irei optar pela Catherine Clément, decididamente.
ResponderEliminarQuem te manda a ti remendão tocar violão? Apetece perguntar a certos jornalistas que se pões e escrevinhar romances por atacado, ancorados na fama efémera que a visibilidade mediática lhes vai dando no dia a dia. Depois até conseguem reproduzir em dezenas de outras línguas bestsellers de pacotilha, destinados a um público faminto de palavras bonitas e plenas de coisa nenhuma. Bem-aventurados os pobres de espírito, que será deles o reino da mediocridade globalizada...
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