«A primeira vez que vi uma mulher tinha onze anos e me surpreendi subitamente tão desarmado que desabei em lágrimas. Eu vivia num ermo habitado apenas por cinco homens. Meu pai dera um nome ao lugarejo. Simplesmente chamado assim: “Jesusalém”. Aquela era a terra onde Jesus haveria de se descrucificar. E pronto, final.»Mia Couto, Jesusalém (2009)
Celebra-se este ano o quinto centenário da publicação em Lovaina da obra magna de Sir Thomas More, a Utopia (1516). A data tem vindo a ser vivida com toda a pompa e circunstância que as academias das letras por esse mundo fora costumam dedicar sempre que podem a estes eventos e a que os mais comuns dos mortais costumam dar muito pouca ou nenhuma atenção. O título escolhido recaiu num termo utilizado por Platão na República (c. 347 AEC), para descrever uma sociedade perfeita a erigir num futuro mais ou menos distante, significando, por conseguinte, um não-lugar. O humanista inglês transpôs essa possibilidade para o presente, localizando-a, todavia, num espaço secreto, isolado do globo, a que só se acederia por mero acaso. Assim o fizeram os imitadores que lhe seguiram o exemplo, sem se aperceberem muito bem do caráter irónico contido no diálogo fundador. Os destaques vão regra geral para os casos paradigmáticos do italiano Fra Tommaso Campanella, na Cidade do Sol (1623), e para o do inglês Sir Francis Bacon, na Nova Atlântida (1627). Eutopias lhes chamaram os entendidos, quando os estudaram e inseriram num género literário conciso, por reunirem relatos otimistas que configuravam modelos políticos bem-sucedidos.
Razão terão tido os responsáveis pelos Livros RTP-LeYa, de se terem aproveitado da efeméride para incluírem na Coleção Essencial a reedição dum dos romances mais conhecidos de Mia Couto, o Jesusalém (2009). Pelo menos é o que dá a entender Miguel Real, que, ao prefaciá-lo, o considera uma das poucas distopias compostas em língua portuguesa. Verdade incontestável para referenciar uma categoria narrativa que se oporia às anteriormente referidas pelo seu caráter pessimista, concretizado agora num espaço-tempo antecipados que convinha evitar a todo o custo. Os modelos apontados como hipotéticas fontes seguidas pelo autor moçambicano seriam as sempre citadas comunidades ideais de cidadãos condenados a serem felizes imaginadas por Aldous Huxley, n’O admirável mundo novo (1932), e por George Orwell, no 1984 (1949). A continuidade diegética proposta é tão sedutora como falaciosa, dado que o miniestado totalitário alicerçado por Mateus Ventura, rebatizado Silvestre Vitalício, se situa numa coutada de caça abandonada e nos tempos da guerra civil que se seguiram à independência do país. No final da ficção, tudo volta à normalidade, sem o mais apagado vestígio utópico duma cidade alternativa vitoriosa, marcada pelos princípios claros-escuros da eutopia ou da distopia. Diga-se de passagem que na república das letras ninguém fica a perder com o facto. As grandes representantes do espírito criador humano não costumam pertencer a nenhum grupo genérico específico. Escapam a todas as tentativas de captura poética e recusam-se a dar origem a outras.
Jesusalém, a terra onde Jesus haveria de se descrucificar, sumiu-se tão completamente do mapa das quimeras fracassadas como surgira no espírito doente do seu mentor. Faz lembrar um pouco o destino trágico infligido à Atlântida, imergida nas águas do mar para castigo da arrogância dos homens, nessa ânsia desmedida de afirmarem a sua superioridade face aos demais mortais. Aqui, a lenda reinventada por Platão remete-nos para um passado distante que não logra atingir as fronteiras do mito, muito embora se possa situar em qualquer parte do oceano que a nossa imaginação consiga enxergar. No texto do prémio Camões 2013, a procura da terra prometida para a realização de catarses vindouras funciona, sobretudo, como um exílio voluntário para o aprendiz de ditador e um cativeiro forçado para a restante comunidade. Número exíguo esse de três homens adultos, dois jovens e uma jumenta, para construir seja o que for, sem a presença feminina a assegurar uma nova estirpe de seres superiores. Essa ilha de bem-aventurados, submetida à vontade alucinada dum fugitivo das más influências da grande cidade e abrigado no isolamento purificador dum lugar situado para além de todos os lugares, estava condenado a desaparecer. Assim aconteceu antes que os leitores tivessem chegado ao derradeiro capítulo da terceira e derradeira parte da gesta. O regresso ao Lado-de-Lá era inevitável, até porque, no cronótopo efetivo em que vivemos, tudo se passa inexoravelmente no Lado-de-Cá. No dia em que a mulher morreu, faleceu o mundo para o fabricante de fantasias. No dia em que uma mulher surgiu como visita no meio do nada africano, a vida renasceu como uma revelação para todos. O regresso à realidade quotidiana da humanidade estava assegurado.
Admirável texto, Prof., que estabelece paralelos literários exemplares. Utopias que se identificam sempre com a vivência humana, embora condenadas a desaparecer devido precisamente às idiossincrasias humanas...
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