«Escuchó unos movimientos, rezos de los sacerdotes y, por fin, otra vez un susurro de Mr. Ellis pidiéndole que bajara la cabeza y se inclinara algo, please, sir. Lo hizo, y, entonces, sintió que le había puesto la soga alrededor del cuello. Todavía alcanzó a oír por última vez un susurro de Mr. Ellis: “Si contiene la respiración, será más rápido, sir”. Le obedeció.»Mario Vargas Llosa, El sueño del celta (2010)
O problema das biografias literárias de personalidades históricas assenta no facto de já se conhecer, em linhas gerais, o alfa e o ómega dos percursos que traçaram em vida. Tudo deriva da notoriedade granjeada ao longo desse intervalo de tempo e que a memória dos homens tenha querido ou sabido preservar. O cronista só acrescenta pormenores verídicos à fábula e outorga um aparato estético ao discurso. Por vezes, enfatiza a faceta brilhante do herói, outras a sombria do anti-herói. Opções legítimas tomadas pelo autor de serviço em demanda do leitor ideal ou tido como tal.
Mario Vargas Llosa deixou-se seduzir pela figura controversa de Sir Roger Casement (1864-1916), diplomata britânico e nacionalista irlandês, revolucionário gaélico e humanista universal, patriota para uns e traidor para outros. Percorreu de ponta a ponta os relatórios públicos e diários secretos que nos deixou, centrou-se no combate sem tréguas sustido em três continentes em prol da liberdade dos povos colonizados e compôs uma interpretação pessoal dos acontecimentos a que deu a forma de romance. Chamou-lhe O sonho do celta (2010), apropriando-se do título homónimo dado pelo retratado a um longo e esquecido poema épico, escrito em 1906, sobre o passado mítico da Irlanda.
A ação inicia-se no cárcere londrino de Pentonville Prison, numa manhã chuvosa de abril de 1916, onde o condenado se manterá até à execução da pena capital por enforcamento, ocorrida cerca de três meses mais tarde. Os dias e as noites são ocupados num ajuste de contas constante enredado entre as sombras do passado e as luzes do presente, erigido em intermináveis monólogos interiores tecidos na mais profunda solidão e em escassos diálogos milimetricamente cronometrados com o carcereiro e uma ou outra rara visita que a severa e justiça de Jorge V lhe foi magnanimamente concedendo.
A organização novelesca faz-se também através da alternância deste bloco narrativo recente com um outro de eventos pretéritos, aquele que nos conduz à infância, juventude e maturidade do protagonista, repartido por três espaços cénicos maiores, onde o seu destino trágico se teceu e firmou: Congo, Amazónia e Irlanda. Em todos eles, denunciou os abusos das grandes potências contra os países subjugados, escudadas sempre no argumento de o fazerem em nome da civilização. Esclavagismo, tortura, exploração e genocídio são alguns dos meios utilizados para atingir os fins almejados. Na etapa africana, relatou as iniquidades cometidas por Leopoldo II da Bélgica no Estado Livre do Congo; na americana, as atrocidades praticadas pela Peruvian Rubber Company sobre os nativos peruanos; na europeia, a violação do direito à independência irlandesa por parte da Grã-Bretanha.
As batalhas travadas no hemisfério sul valeram-lhe o título de cavaleiro e as mais subidas distinções, as encetadas no hemisfério norte a destituição de todas as honrarias e a condenação à morte. A mão imperial que é pródiga a outorgar não vacila um único instante quando toca a despojar. Recorre a todos os expedientes disponíveis para levar a bom termo os altos interesses do estado. Os crimes humanitários revelados nas páginas oficiais do Blue Book são apagados e os desvios sexuais relatados nas páginas íntimas dos Black Diaries são divulgados.
Os perseguidores de êxitos fáceis na república das letras esfregariam as mãos de satisfação e explorariam até às raias do razoável um filão comercial tão auspicioso, sobretudo quando o erotismo divulgado roça a suspeita de pedofilia. Vargas Llosa não cometeu o duplo erro de branquear o perfil negro posto a nu nos escritos privados ou de o empolar desmesuradamente na textura narrativa. Refere-o com naturalidade e dá-lhe o peso relativo merecido. A seu ver, todas as pessoas são feitas de contradições. Casement não fugiria muito a esse destino de anjo e demónio, de herói e mártir. Depois nem precisava de ter vivido todas as obscenidades pestilentas que escreveu com o próprio punho. Bastava imaginar que as tinha vivido e passá-los para um papel que só ele leria. O ficcionista atesta, assim, que não existe perfeição ao cimo da terra e que, de quando em quando, temos de ser nós a fazer de juízes supremos para aferir com lisura e rigor o bem e o mal e decidir com isenção e eficácia os pequenos/grandes deslizes que nos definem como seres humanos plenos.
NOTA
Quando a arte contar histórias alheias tecidas por Mario Vargas Llosa se cruza com as histórias pessoais vividas por Sir Roger Casement surge O sonho do celta, um testemunho histórico feito romance. Li-o e comentei-o há tempos no Pátio de Letras. Trago-o agora aqui para esta estante de livros, de fantasias e quimeras.
NOTA
Quando a arte contar histórias alheias tecidas por Mario Vargas Llosa se cruza com as histórias pessoais vividas por Sir Roger Casement surge O sonho do celta, um testemunho histórico feito romance. Li-o e comentei-o há tempos no Pátio de Letras. Trago-o agora aqui para esta estante de livros, de fantasias e quimeras.
Uma ótima crítica literária sobre um livro notável de Vargas Llosa, que bem merece uma nova leitura!
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