28 de setembro de 2017

Das autonomias & das independências

C A T A L U N Y A

  Senyera  Estelada  

Um estado-nação ou um estado de nações

«Es Cataluña la provincia más oriental de España, puesta por los romanos en la Citerior, después en la Tarraconense, nombre derivado a su tercera parte de la antigua ciudad de Tarragona, famosa en aquellas edades y ésta célebre por sus militares acontecimientos. De los pueblos celtas o celtíberos fue llamada Celtiberia, pero en siglos más próximos, entre godos y alanos, que la ocuparon, mudó el primero nombre, llamándose de las naciones dominantes Gotia Alania o Gocia Alonia, y agora Catalunia o Cataluña, obedeciendo a los tiempos en la variedad de los nombres en la del imperio.» 
Dom Francisco Manuel de Melo
Historia de los movimientos, separación y guerra de Cataluña (1465: I, 69)
A Espanha que nós conhecemos não é nem nunca foi um autêntico estado-nação. A união dinástica criada pelos soberanos das Coroas de Aragão e Castela (1469) nunca foi mais do que uma manta de retalhos ou um estado de nações distintas. Os reinos, domínios e senhorios governados a título pessoal pelos Reis Católicos nunca permitiram que se passasse de facto das Espanhas plurais dos Habsburgos austríacos para a singular dos Bourbons franceses.

Há mais de quinhentos anos que assim é. Portugal viu-se envolvido nessa teia hispânica de países que ia muito além dos limites físicos da península ibérica. A Monarquia Dual luso-castelhana (1580-1640) chegou ao fim quando deixou de fazer sentido. À falta dum referendo legal, apelou-se à força das armas. A Guerra da Restauração (1640-1668) repôs a soberania real perdida pelos Avis e a Sereníssima Casa de Bragança tomou com ambas as mãos as rédeas do poder.

A tentativa falhada do Principado da Catalunha de se libertar da alçada castelhana nessa mesma centúria de Seiscentos repetiu-se mais vezes nas seguintes. Saíram sempre goradas. As autonomias monárquicos e republicanos nunca igualaram as independências obtidas por outras parcelas do império espanhol. Um novo round Madrid-Barcelona está marcado para o primeiro dia de outubro. Só falta saber se findo o combate haverá um vencedor por knockout.


21 de setembro de 2017

Espelhismos reais a cores e a preto e branco

Pompeo Batoni,  D. João V de Portugal e Algarves (séc. xviii)
[Palácio Nacional da Ajuda - Lisboa]
Nem sempre rainha, nem sempre galinha
A RTP1 tem vindo a transmitir nas noites de quarta-feira uma série de pendor histórico com um número contado de episódios e fim à vista, baseada na figura de Madre Paula de Odivelas (1701-1768), mãe de um dos três Meninos da Palhavã e amante mais conhecida de Sua Majestade Fidelíssima D. João V, pela Graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves (1689-1750; rei: 1706), cognominado o Grande ou o Magnânimo.

O mesmo canal de televisão pública portuguesa já fizera outro tanto com as duas primeiras temporadas das três já realizadas de Versailles, produzida pela BBC Two e centrada na história do mais famoso palácio real europeu da era barroca, residência e sede do poder político de Sa Majesté Très Chrétienne, Louis XIV, par la Grâce de Dieu, Roi de France et de Navarre (1638-1715; roi: 1643), dit le Grand ou le Roi-Soleil.

Muitas simetrias se têm apontado a estes monarcas absolutos, acusando-se o Bragança de ter imitado a magnificência efetiva ou de aparato do Bourbon. Miragens coloridas à parte, onde mais se espelharam foi nos affaires d'amour com monjas conventuais e cortesãs palacianas. Por algum motivo, o Rei-Sol Português ficou conhecido entre os seus súbitos pelos epítetos despetivos a preto e branco de Freirático e Mulherengo.

Ao que parece, faltava à rainha consorte austríaca a beleza que sobrava ao real consorte lusitano. Vendo-se preterida pelo marido, queixou-se ao confessor, que chamou o pecador à razão. O soberano ouviu-o e incumbiu o cozinheiro-mor de só servir galinha ao prelado. A repetição da dieta levou o capelão real a lamentar-se ao monarca. Este ter-lhe-á então dito: Pois é, senhor padre, nem sempre galinha, nem sempre rainha.

14 de setembro de 2017

Carlos Ruiz Zafón, o labirinto dos espíritos e a cidade dos espelhos ou das maravilhas

«El laberinto se alzaba frente a mí en un espejismo infinito. Una espiral de escalinatas, túneles, puentes y arcos tramados en una ciudad eterna construida con todos los libros del mundo ascendía hasta una inmensa cúpula de cristal.»
Carlos Ruiz Zafón, El laberinto de los espíritus, 2016
Enchi-me de coragem durante um ano escolar inteiro para viajar pelos derradeiros episódios da tetralogia do Cemitério dos Livros Esquecidos de Carlos Ruiz Zafón. Cerca de nove meses, para ser mais exato. O tempo duma gestação completa com parto normal. Durante a primeira quinzena de agosto destas férias de verão, dediquei-me à leitura exclusiva das novecentas e tantas páginas d'O labirinto dos espíritos (2016). Ultrapassada a linha de meta da maratona, respirei fundo, pus o volumoso tomo que o alberga de lado e descansei um pouco para recobrar o fôlego das emoções de percurso. Imensas e intensas.

Quando no final d'O prisioneiro do céu (2011) se afirma que a história em vez de ter terminado mal havia começado, não duvidei um só instante da sua veracidade. Depois de ter seguido as peripécias em cadeia d'O jogo do anjo (2008) herdadas d'A sombra do vento (2001), não duvidei que assim fosse. Cheguei a pensar poder tratar-se de novos dados trazidos à intriga por Sofia Gispert, a última personagem a entrar em palco, rodeada de secretismo e promessa dum desenlace favorável ao destino familiar dos Sempere, livreiros da cidade condal e protagonistas da saga. Afinal era uma falsa pista. Uma manobra de diversão do autor ou inferência apressada do leitor. O fio condutor da narrativa é entregue a Alicia Gris, criatura de sombras, mulher fatal, animal urbano, pérfida, misteriosa, noturna, um pouco de tudo e um muito de nada, anjo e demónio, heroína e vilã. Tudo depende do ponto de vista da ficção, assente num conjunto de lances detetivescos insólitos, onde os policias-bandidos vão sendo eliminados um a um pelos marginais-justiceiros, num maniqueísmo feito de pernas para o ar. Robins dos Bosques de totalitarismos recentes, aqueles que atravessam a derradeira centúria do segundo milénio, revisitados pela vontade expressa da literatura intemporal.

O desenho estrutural dos quatro romances da série optam por uma solução de compromisso. Após ter oscilado entre os domínios do natural e do sobrenatural e de se ter insinuado na terra de ninguém da hesitação, o maravilhoso desfaz-se, o fantástico esclarece-se e o estranho instala-se. Os enigmas desaparecem e a fábula cumpre-se. Os géneros teóricos definidos por Tzvetan Todorov* encontram-se todos representados neste longo rosário novelesco de traçado neogótico, a meio caminho entre o amor/morte e o ódio/vida, o que, para todos os efeitos, quererá dizer mais ou menos o mesmo. Segue a técnica do folhetim ou da entrega periódica por fascículos. Quando se julga que os maus vão ser castigados e os bons premiados, volta tudo ao princípio. O desenlace há muito esperado terá de esperar por uma ocasião mais oportuna, chame-se ele conclusão, desfecho, termo, remate ou epílogo.

Os relatos obscuros de vida de Julian Carax, David Martín e Víctor Mataix, os autores obscuros de livros esquecidos, estão concluídos. O destino existencial de Juan, Daniel e Julian Sempere está traçado. As crónicas de Barcelona, a cidade dos malditos, dos mistérios e das sombras, abriram um período de pousio forçado. O labirinto dos espíritos, dos espelhos ou das maravilhas - imagem pálida e distante do país imaginado por Lewis Caroll para as Aventuras de Alice - inscreveu o derradeiro ponto final. O pano desceu de vez sobre a ribalta, traçando a fronteira inexorável entre a boca de cena e a plateia. Desconheço qual será o próximo projeto do grande artífice atual das letras catalãs. Tudo me leva a antecipar que se manterá fiel aos registos da escrita a que nos habituou neste último quarto de século. A sonoridade das palavras gravadas no papel sobrepor-se-á, de certeza, a todos os enredos gizados ao jeito dos filmes a preto e branco de Série B, com muitas pinceladas de loucura e cordura à mistura. Razão mais do que suficiente para correr a uma qualquer livraria do aquém ou além Guadiana, para adquirir os primeiros fascículos dessa nova série de folhetins de cordel, compilados num livro que talvez fale doutros livros e com entrega sazonal garantida.

NOTA
(*) Tzvetan Todorov, Introduction à la littérature fantastique, Paris, Le Seuil, 1970.

11 de setembro de 2017

A fúria fustigadora do ar

MÚSICA DAS ESFERAS

Robert Fludd,  Utriusque Cosmi, 1617

O terceiro elemento...

Dizem os manuais de geografia física que o vento é o ar em movimento. Dizem também que todos eles circulam sempre das altas para as baixas pressões. A direção que tomam, nos sentidos horário ou anti-horário, depende do hemisfério em que soprem, o Norte ou o Sul. Terão assim direito a integrar-se nas categorias genéricas dos Ciclones (B) e dos Anticiclones (A).

A intensidade com que se fazem sentir condiciona também a sua designação específica. Aragem, brisa, vendaval, tornado, tufão, furacão e outra vez ciclone. Os locais onde se formam conduz a um léxico eólico muito extenso. Áfrico, austro, gregal, levante, mistral, siroco, tramontana, zéfiro, para só referir aqueles que se formam na bacia mediterrânica nossa vizinha.

O ar é o único elemento primordial que não se deixa ver. É o mais misterioso dos quatro. Inspirador de mitos e lendas. Foi com um leve sopro que Iavé deu a Adão o dom divino da vida. Foi com um gesto protetor que Éolo encerrou num odre os ventos nocivos do regresso de Ulisses a Ítaca. Depois é o que se sabe. O Génesis e a Odisseia de Homero dão os pormenores.

Muito zangados estão os deuses com os homens. Muitos pecados terão cometido para merecer tais castigos. O Harvey ainda não tinha acabado de assolar as costas do Caribe mais as do Golfo e já se avistava no horizonte a força destrutiva do Irma e do José com o Katia à arreata, ciclones tropicais do Atlântico Norte com presença no catálogo do Centro Nacional de Furacões.

É um fartar vilanagem. A cólera dos imortais a fustigar os erros dos mortais é ilimitada. Os Senhores dos Ventos e das Chuvas, dos Incêndios e das Secas não têm descanso. Mandam titãs e titânides de todos os panteões a agitar o Ar, a entornar a Água, a atear o Fogo e a estancar a Terra. Estranha cobardia esta da prepotência divina de se vingar da fragilidade humana.

6 de setembro de 2017

Persistências em contracorrente


O tempo é o melhor juíz de todas as coisas, afirma o ditado popular com toda a razão que a cultura popular lhe costuma conceder. Por algum motivo se recorre sempre nestas ocasiões à sentença latina que diviniza cabalmente essa tal sabedoria imemorial, mãe de todas as ciências: Vox Populi, Vox Dei...

O Arthur d'Algarbe anda há três anos agora completados a contar histórias, pessoais e alheias, em contracorrente e com persistência. Histórias aos quadradinhos, com arte e com filmes. Histórias com história. Com livros, com música, com números, com palavras, com sentidos. Histórias de vida e de morte...

Histórias do tudo e do nada. Histórias em conta-corrente. Banhas-da-cobra. Diário-de-bordo. Conto-a-conto. Verso-a-verso. Extractus e faits divers. Livrarias & Livreiros. Mitos & Contramitos. Equinócios & Solstícios. Efemérides-Retóricas-Helénicas. Um diz que disse para todos os anuários. Agora e até ver...

1 de setembro de 2017

Espreguiçadeira, acessórios & C.ª

O render da guarda...

Não há bem que sempre dure...

Dei o descanso merecido à espreguiçadeira no canto do quintal, arrumei o guarda-sol do jardim junto aos de ir ver o mar, despedi-me da toalha de praia e dos calções de banho. Guardei o panamá de pano na mochila de verão e vou dar um uso moderado de fim de semana às camisetas estampadas e aos chinelos de enfiar.

Está na hora de substituir os trajes de repouso pelos de combate. Uniformes os dois. O do ócio e o do negócio. O de usar ao ar livre e o de vestir paredes adentro. Os que fazem os monges e os que os desfazem. Olhei para a mochila de inverno e juntei um ou outro livro de lazer aos do dever. Equilibrar assim as rotinas sazonais.