Toyohara Chikanobu - The shogun celebrating New Year's Day (1838 - 1912) |
A pergunta retórica do senhor de Chikugo...
Takenobu
Matsuura, senhor de Hirado, tinha quatro concubinas que constante-mente se
tomavam de ciúmes e brigavam entre si. Não as podendo suportar por mais tempo,
Takenobu correu com elas do seu castelo. Mas talvez não seja esta uma história
muito própria para padres celibatários...
– Acho que esse
Matsuura não era nada parvo... – Como Inoue se mostrasse conciliador, o padre
ganhara ânimo e desafogava deste modo a tensão.
– Diz isso a
sério, padre? Que peso me tira dos ombros! É que acontece com o nosso Japão, e
não apenas com Hirado, o que aconteceu a Matsuura. – Rodopiando a tigela nas
mãos, o senhor de Chikugo prosseguiu: – As mulheres, neste caso, chamam-se
Portugal, Espanha, Holanda e Inglaterra. Uma vez aqui chegadas, ciosas umas das
outras, encheram de intrigas e mexericos os ouvidos do marido, o Japão. À
medida que ouvia a tradução do intérprete, foi o padre compreendendo onde
queria o governador chegar. Estava bem longe de ser um disparate o que Inoue
dizia. Quantas vezes, estando ainda em Goa e Macau, ouvira dizer que
países protestantes como a Inglaterra e a Holanda, e católicos como Portugal e
Espanha, ávidos todos de sucesso neste país, se caluniavam reciprocamente na
presença dos japoneses! Por seu lado, envolvidos na mesma rivalidade, os
missionários recorriam a idêntica moeda, chegando a proibir severamente os
seus convertidos japoneses de todo e qualquer contacto com ingleses e
holandeses. – Padre, se tem por inteligente o procedimento de Matsuura, terá de admitir que os
motivos que levaram o Japão a proscrever o cristianismo não são assim tão
levianos e absurdos.
Enquanto falava,
o magistrado exibia um amplo sorriso nas faces rosadas e nédias, ao mesmo tempo
que fitava intensamente o padre. Para japonês, Inoue tinha uns olhos
estranhamente castanhos e claros, e não se lhe via nas suíças, a menos que
fossem tingidas, um só cabelo branco.
– Como a nossa Igreja
prega a monogamia – observou o padre ironizando deliberadamente – ou seja, como
só consente uma mulher para cada homem, tem o senhor carradas de razão
quando entende que se devem despedir as concubinas. Sendo assim, que diria o senhor
se o Japão escolhesse uma só dessas quatro mulheres para sua legítima
esposa?
– E quem seria
essa legítima esposa? Portugal?
– Nada disso! A
Igreja católica.
Quando o
intérprete, com a sua habitual impassibilidade estereotipada, passou a resposta
a Inoue, este desfez o rosto de circunstância até aí afivelado e desatou a
gargalhar desalmadamente. Dada a idade que tinha, era um riso demasiado
estridente, mas nos olhos dominadores que fitavam o padre não havia a mais pequena
emoção. Os olhos, esses não riam.
– Padre, não acha
melhor que esse homem chamado Japão deixe de pensar nas mulheres de outros
países e se volte unicamente para uma mulher da sua terra, uma mulher da
sua plena confiança?
Shusaku Endo, Silêncio (1966)
[Lisboa: Dom Quixote, 2010, cap. 7, pp. 176-177]
Tenho uma edição de 1990, li-o há muitos anos... por causa da sua evocação, fui reler a badana, um tema, um autor, a merecer ser revisitado. Obrigada, Artur.
ResponderEliminarUm texto novo para mim que estou a ler com muita atenção e vagar, porque toca em assuntos que têm ocupado as minhas reflexões silenciosas ao longo dos anos e já lá vão muitos..
ResponderEliminarUma lição que não surpreende, tendo em conta a aura da sabedoria japonesa. Um tema sempre atual, o da religião, que tanta celeuma provoca neste mundo... Um autor que não conheço mas que desperta logo a atenção!
ResponderEliminarConheci este "Silêncio" através de Scorvese e passou, desde então, a acompanhar-me na versão Endo em leituras continuadas e intermitentes. Um livro que eu teria adorado ler quando atravessei a minha fase agnóstica rumo à descrença absoluta do transcendente...
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