『私は沈黙していたのではない。お前たちと共に苦しんでいたのだ. 弱いものが強いものよりも苦しまなかったと、誰が言えるのか?』遠藤 周作,「沈黙」(1966)
Uma história bem contada nas páginas dum livro costuma conduzir à sua transposição para os fotogramas duma película. Como se o sucesso editorial fosse o garante dum êxito de bilheteira. Às vezes a conjugação dessas duas componentes resulta em pleno. A leitura da obra escrita costuma também anteceder o visionamento da obra filmada. Por vezes a ordem dos fatores inverte-se. Foi a versão cinematográfica realizada pelo norte-americano Martin Scorsese do Silêncio (2016) que me levou à descoberta da versão escrita criada pelo japonês Shūsaku Endō do Silêncio (1966), meio século a separar estas duas representações complementares de factos históricos vividos na centúria de Seiscentos, já lá vão quatrocentos e tal anos.
A matéria selecionada pela reconstituição literária remonta aos primeiros tempos do Período Edo (1603-1868), aquele que isolou o Império do Sol Nascente do resto do mundo. A introdução do catolicismo no Oriente Nipónico, iniciada em 1549 pelo jesuíta basco Francisco Xavier, é posta em causa por Ieyasu Tokugawa (1543-1516), que em 1614 proclama o édito de expulsão dos missionários europeus e proíbe o Cristianismo em todo xongunato que havia fundado. A era das perseguições estava aberta. O martírio dos refratários e a apostasia dos resignados entram em cena. A veracidade desses casos de abjuração da fé evangélica e submissão às premissas da fé budista é questionada pelas autoridades eclesiásticas e os inquiridores oficiais da Igreja de Roma são enviados para o Japão. Ao padre Sebastião Rodrigues cumpriu precisamente o papel de averiguar, in loco, qual a atitude que o padre Cristóvão Ferreira havia tomado, quando fora obrigado a colocar-se ao lado dos resistentes ou dos renegados. Tarefa que nos será apresentada a várias vozes ao longo do relato, repartido por dez capítulos, completado na edição que tenho entre mãos por um Prefácio de William Johnston, da Universidade Sophia de Tóquio, e por um Apêndice final, extraído do «Diário de um funcionário da residência cristã». O fictício e o factual convocados pela fábula encarregam-se de nos dar uma resposta à verdade procurada pelas entidades narrativas envolvidas.
Os anais históricos dizem-nos que os dois sacerdotes referidos tiveram uma existência real, tendo ambos apostatado e ficado retidos o resto dos seus dias naquele arquipélago longínquo do fim da terra, submetidos às leis civis e religiosas ali vigentes. Passaram a ser conhecidos como o apóstata Paulo e o apóstata Pedro. A nacionalidade portuguesa atribuída aos dois é que só pode ser imputada ao inquirido, visto o inquiridor ser afinal italiano de Palermo e chamar-se Giuseppe Chiara. A ficção vai um pouco mais longe e atribui-lhe ainda em vida o nome japonês de Okada San'emom e o budista de Muysen Joshim Shinshi já a título póstumo. O apostolado do último jesuíta chegava assim ao termo sem honra, nem glória. Ironia trágica a coroar um empreendimento que tinha tocado três continentes, a ligar Lisboa e Nagasaki, com passagem por Goa e Macau. O mensageiro da palavra de Cristo falha o seu propósito de converter os gentios e acaba convertido aos ditames de submissão que estes lhe impuseram. O terreno pantanoso visitado apresentou-se pouco propício à religiosidade europeia. É que nesse finisterra asiático nada transcende a natureza humana, tudo se resolve através do korobu, ou seja, na renúncia da fé pessoal que o ser humano tem de seguir para se tornar melhor.
Visto e revisto o filme, lido e relido o livro, sou incapaz de eleger uma versão em detrimento da outra. Completam-se. Cada uma à sua maneira remete-nos para dupla dimensão de sentir o silêncio, a que nos rodeia e a que vive dentro de nós. A mensagem do romancista católico Paulo / Shūsaku Endō sugere-nos que o mais importante na comunicação não reside tanto no que dizemos em voz alta mas no que ouvimos em silêncio, sobretudo quando pretendemos estabelecer um contacto com o indizível, a que alguns identificam com Deus ou com a ideia que dele fazemos. Está em nós o poder de o aceitar ou de o recusar. De ouvir as respostas às perguntas que lhe fazemos mesmo quando se mantém calado. A fronteira entre os fortes e os fracos, os santos e os medíocres, os heróis e os cobardes desvanece-se. A inquisição japonesa de matriz budista pouca diferença faz da inquisição portuguesa de matriz católica. São ambas iguais ainda que variem nos pormenores. Incapazes de sondar a verdade que habita no nosso silêncio. O ato de apostasia dos protagonistas torna-se irrelevante quando ao fazê-lo evitaram o sofrimento inútil dos seus seguidores. Perderam-se para a eclésia mas encontraram-se na paz da sua consciência. Ao pisaram em ato público o rosto de Cristo no fumie que o representava, abriram a possibilidade de contemplar a face daquele que fumie algum pode reproduzir, porque só se deixa ver com os olhos fechados. Se o silêncio de Deus é terrível, como alguns dizem, que dizer então do silêncio dos homens que o criaram à sua imagem e semelhança...
Visto e revisto o filme, lido e relido o livro, sou incapaz de eleger uma versão em detrimento da outra. Completam-se. Cada uma à sua maneira remete-nos para dupla dimensão de sentir o silêncio, a que nos rodeia e a que vive dentro de nós. A mensagem do romancista católico Paulo / Shūsaku Endō sugere-nos que o mais importante na comunicação não reside tanto no que dizemos em voz alta mas no que ouvimos em silêncio, sobretudo quando pretendemos estabelecer um contacto com o indizível, a que alguns identificam com Deus ou com a ideia que dele fazemos. Está em nós o poder de o aceitar ou de o recusar. De ouvir as respostas às perguntas que lhe fazemos mesmo quando se mantém calado. A fronteira entre os fortes e os fracos, os santos e os medíocres, os heróis e os cobardes desvanece-se. A inquisição japonesa de matriz budista pouca diferença faz da inquisição portuguesa de matriz católica. São ambas iguais ainda que variem nos pormenores. Incapazes de sondar a verdade que habita no nosso silêncio. O ato de apostasia dos protagonistas torna-se irrelevante quando ao fazê-lo evitaram o sofrimento inútil dos seus seguidores. Perderam-se para a eclésia mas encontraram-se na paz da sua consciência. Ao pisaram em ato público o rosto de Cristo no fumie que o representava, abriram a possibilidade de contemplar a face daquele que fumie algum pode reproduzir, porque só se deixa ver com os olhos fechados. Se o silêncio de Deus é terrível, como alguns dizem, que dizer então do silêncio dos homens que o criaram à sua imagem e semelhança...
EPÍGRAFE
«Não estava em silêncio. Sofria a teu lado [...] Não há fortes nem fracos... Quem pode garantir que os fracos sofram menos do que os fortes?»
Shusaku Endo, Silêncio: Lx: D. Quixote, 2010 (Ⅹ, 261)
Muito bom, o texto e o livro. O filme ainda não vi.
ResponderEliminarBelo texto, a salientar que perdi um bom filme tão propalado... Irei atrás do livro para compensar esta lacuna, enquanto não tenho a sorte de ver o filme.
ResponderEliminarE acabei por ver o filme, que muito me impressionou, sem ter lido o livro, tal a violência brutal da perseguição, física e psicológica, a que os padres foram sujeitos, tão bem traduzida no filme...
ResponderEliminarA leitura do livro poupa-nos à visualização da violência da perseguição física e psicológica retratado no filme, que a versão escrita não deixa todavia de denunciar...
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