«It is sometimes said that butlers only truly exist in England. Other countries, whatever title is actually used, have only manservants. I tend to believe this is true. Continentals are unable to be butlers because they are as a breed incapable of the emotional restraint which only the English race are capable of. Continentals - and by and large the Celts, as you will no doubt agree - are as a rule unable to control themselves in moments of a strong emotion, and are thus unable to maintain a professional demeanour other than in the least challenging of situations. If I may return to my earlier metaphor - you will excuse my putting it so coarsely - they are like a man who will, at the slightest provocation, tear off his suit and his shirt and run about screaming. In a word, "dignity" is beyond such persons. We English have an important advantage over foreigners in this respect and it is for this reason that when you think of a great butler, he is bound, almost by definition, to be an Englishman.»Kazuo Ishiguro, The Remains of the Day (1989)
A Academia Sueca anunciou que adiaria por um ano a atribuição do prémio Nobel da Literatura 2018. O motivo de tal decisão deve-se a uma guerra interna desencadeada por alguns dos seus membros. Fala-se em escândalos de favorecimento e doutros assuntos mais cabeludos. Perante um tal panorama, somos levados a olhar apreensivamente para a lista completa dos já laureados nesta categoria e a encarar com alguma perplexidade o grau de isenção seguida pelos ilustres académicos na hora de tornarem público o seu veredito. A fama alcançada nessas ocasiões de vanglória é muitas vezes efémera, as obras deixam de ser visitadas pelos leitores e os autores sobreviventes ao esquecimento resultam escassos. Kazuo Ishiguro estará por ventura nesta última categoria. Como só li até ao momento Os despojos do dia (1989), é-me difícil ajuizar o conjunto da sua produção, lacuna que espero colmatar em breve. Pela parte que me toca, parece ser já um bom sinal de confiança na qualidade intrínseca de toda ela. A ver vamos.
Comecei pelas reflexões memorialistas dum mordomo inglês perfeito, idealizadas pelo romancista, contista e guionista britânico de nacionalidade japonesa, por me ter sido dito tratar-se da sua magnum opera. Confiei no alvitre, segui em frente e fiquei satisfeito. A ação decorre no Sudoeste da Grã-Bretanha, numa qualquer semana de julho de 1956. James Stevens, o protagonista-relator, aproveita a ausência do atual proprietário da Darlington Hall, congressista aposentado americano Mr. Farraday, para empreender uma excursão recreativa pelo West Country, ao volante do Ford que o amo lhe emprestara para tal fim. Na linha de chegada, estará Miss Kenton, ex-governanta da casa senhorial, com quem marcara um encontro semiprofissional/semipessoal. Nas seis etapas que dura a viagem, terá ocasião de descrever os principais pontos do país por onde foi passando, confrontando a sua visão pragmática com a que Jane Symons inscrevera pedagogicamente na The wonder of England. Ficção na ficção. Toque de verosimilhança na elaboração dum relato de viagens, em que os factos imaginados se cruzam constantemente com os acontecidos. Os destinos das personagens inventadas dão as mãos aos destinos possíveis das personalidades históricas convocadas. São chamadas uma a uma ao convívio da velha mansão aristocrática, pertença então de Lord Darlington, nos anos que mediaram o final da Grande Guerra (1918) e o rescaldo da Segunda Guerra Mundial (1953). A deslocação pelos condados de Wiltshire, Dorset, Somerset, Doven e Cornwall são um pretexto para o protagonista elaborar o balanço da sua carreira e traçar o retrato do país onde a exercera. A revisitação crítica à primeira metade do século passado entra em cena. A morte anunciada duma certa forma de estar no mundo e o nascimento de formas alternativas de o gizar tomam forma à medida que a viagem se vai fazendo.
Nas pausas da jornada, interroga-se sobre um conjunto de questões consideradas por si como de transcendente importância para definir o seu desempenho profissional, tais como aferir a pertinência do domínio dos ditos espirituosos e respetivas réplicas, determinar quais os procedimentos mais adequados para garantir a limpeza e brilho das pratas, identificar as potencialidades existentes na literatura sentimental, compreender de que é composta a dignidade que conduzirá um grande mordomo a servir um grande senhor. Todos estes temas de meditação são largamente desenvolvidos ao longo do relato. Monólogos interiores passados a escrito no caderno de bordo à compita com diálogos travados noutras ocasiões com os seus parceiros de ofício. O confronto com outras mansões acaba por se impor. A Easterly House, Charleville House ou a Loughborough House estão nesse rol, tais como a Grandchester Lodge ou Branbury Castel, são palco de disputas, controvérsias, dissidências, desacordos e discórdias. Nada que um mordomo filho de mordomo não aprecie.
A crise vivida pela Alemanha nas décadas que se seguiram à assinatura do Tratado de Versalhes acaba por tomar conta das recordações do narrador-viajante, que as transfere para as páginas do seu diário pessoal. O tal que nós lemos, de mão beijada, sob a forma dum romance laureado pelo Booker Prize de ficção (1989), ou podemos visionar em adaptação cinematográfica de James Ivory (1993). A personalidade do aristocrata inglês a quem serviu durante trinta e cinco anos vai sendo revelada ao sabor da pena. Lentamente. Com todo o vagar exigido pelas circunstâncias. O antissemitismo latente de Sua Senhoria é apresentado como um acidente de percurso e a simpatia que nutria pelos ideais nazis entendida como um equívoco. Estes e outros pormenores criteriosamente escolhidos mais não fazem do que anunciar e clarificar o final triste a que esse grande homem foi condenado nos restantes dias de vida. No termo da visita, o motorista-mordomo encontra-se com a antiga governanta da casa senhorial que serviram com toda a dedicação exigida na época. Nada mais há a dizer sobre os despojos dos dias e dos anos de submissão a uma ordem social perdida. Ficou tudo dito sem possibilidade de correção ou remissão. Duas vidas perdidas para a vida a juntarem-se a muitas outras envolvidas pelas teias do ser e do parecer, apagadas pelas tradições herdadas ou fabricadas à medida. Os dois regressam a casa e nós fechamos a contragosto o livro que nos acompanhou enquanto viajámos na sua companhia por este mundo do faz-de-conta a que chamamos literatura.
Comecei pelas reflexões memorialistas dum mordomo inglês perfeito, idealizadas pelo romancista, contista e guionista britânico de nacionalidade japonesa, por me ter sido dito tratar-se da sua magnum opera. Confiei no alvitre, segui em frente e fiquei satisfeito. A ação decorre no Sudoeste da Grã-Bretanha, numa qualquer semana de julho de 1956. James Stevens, o protagonista-relator, aproveita a ausência do atual proprietário da Darlington Hall, congressista aposentado americano Mr. Farraday, para empreender uma excursão recreativa pelo West Country, ao volante do Ford que o amo lhe emprestara para tal fim. Na linha de chegada, estará Miss Kenton, ex-governanta da casa senhorial, com quem marcara um encontro semiprofissional/semipessoal. Nas seis etapas que dura a viagem, terá ocasião de descrever os principais pontos do país por onde foi passando, confrontando a sua visão pragmática com a que Jane Symons inscrevera pedagogicamente na The wonder of England. Ficção na ficção. Toque de verosimilhança na elaboração dum relato de viagens, em que os factos imaginados se cruzam constantemente com os acontecidos. Os destinos das personagens inventadas dão as mãos aos destinos possíveis das personalidades históricas convocadas. São chamadas uma a uma ao convívio da velha mansão aristocrática, pertença então de Lord Darlington, nos anos que mediaram o final da Grande Guerra (1918) e o rescaldo da Segunda Guerra Mundial (1953). A deslocação pelos condados de Wiltshire, Dorset, Somerset, Doven e Cornwall são um pretexto para o protagonista elaborar o balanço da sua carreira e traçar o retrato do país onde a exercera. A revisitação crítica à primeira metade do século passado entra em cena. A morte anunciada duma certa forma de estar no mundo e o nascimento de formas alternativas de o gizar tomam forma à medida que a viagem se vai fazendo.
Nas pausas da jornada, interroga-se sobre um conjunto de questões consideradas por si como de transcendente importância para definir o seu desempenho profissional, tais como aferir a pertinência do domínio dos ditos espirituosos e respetivas réplicas, determinar quais os procedimentos mais adequados para garantir a limpeza e brilho das pratas, identificar as potencialidades existentes na literatura sentimental, compreender de que é composta a dignidade que conduzirá um grande mordomo a servir um grande senhor. Todos estes temas de meditação são largamente desenvolvidos ao longo do relato. Monólogos interiores passados a escrito no caderno de bordo à compita com diálogos travados noutras ocasiões com os seus parceiros de ofício. O confronto com outras mansões acaba por se impor. A Easterly House, Charleville House ou a Loughborough House estão nesse rol, tais como a Grandchester Lodge ou Branbury Castel, são palco de disputas, controvérsias, dissidências, desacordos e discórdias. Nada que um mordomo filho de mordomo não aprecie.
A crise vivida pela Alemanha nas décadas que se seguiram à assinatura do Tratado de Versalhes acaba por tomar conta das recordações do narrador-viajante, que as transfere para as páginas do seu diário pessoal. O tal que nós lemos, de mão beijada, sob a forma dum romance laureado pelo Booker Prize de ficção (1989), ou podemos visionar em adaptação cinematográfica de James Ivory (1993). A personalidade do aristocrata inglês a quem serviu durante trinta e cinco anos vai sendo revelada ao sabor da pena. Lentamente. Com todo o vagar exigido pelas circunstâncias. O antissemitismo latente de Sua Senhoria é apresentado como um acidente de percurso e a simpatia que nutria pelos ideais nazis entendida como um equívoco. Estes e outros pormenores criteriosamente escolhidos mais não fazem do que anunciar e clarificar o final triste a que esse grande homem foi condenado nos restantes dias de vida. No termo da visita, o motorista-mordomo encontra-se com a antiga governanta da casa senhorial que serviram com toda a dedicação exigida na época. Nada mais há a dizer sobre os despojos dos dias e dos anos de submissão a uma ordem social perdida. Ficou tudo dito sem possibilidade de correção ou remissão. Duas vidas perdidas para a vida a juntarem-se a muitas outras envolvidas pelas teias do ser e do parecer, apagadas pelas tradições herdadas ou fabricadas à medida. Os dois regressam a casa e nós fechamos a contragosto o livro que nos acompanhou enquanto viajámos na sua companhia por este mundo do faz-de-conta a que chamamos literatura.
O filme passou na tv há muito, recordo que o mordomo foi interpretado por Sir Anthony Hopkins, um grande ator britãnico, um grande filme. nem por acaso, estive a ler um artigo de autoria do A. Mega Ferreira sobre o legado de Philip Roth e do facto de ele ter entrado para a lista dos injustiçados do Nobel, fiquei até com muita vontade de o ler... Refere ainda Mega Ferreira da justeza do Nobel atribuido a Kazuo Ishiguro. Salvando a face do prémio face aos últimos prémios de Literatura atribuídos a escritores que se esquecem rápidamente. a sua reflexão entusiasmou-me...
ResponderEliminarO livro foi para esquecer.
ResponderEliminarÉ uma das prerrogativas dos livros: convocarem a lembrança ou o esquecimento...
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