Numa
das
minhas
visitas
a
Copenhaga,
tive
um
encontro
inesperado numa das livrarias centrais de cidade, a
Arnold Busck, na K
øbmagergade 49. Ia acompanhado duma amiga que ali vive há algumas décadas. Deu-me um toque no braço e perguntou-me se sabia quem era aquele sujeito de cachecol colorido enrolado à volta do pescoço à moda nórdica, que se encontrava a poucos metros de nós a folhear um qualquer livro de título indecifrável. Perante o meu ar de admiração, avançou tratar-se de Peter Høeg, um dos mais aclamados escritores locais do momento. Acabava de publicar um romance que já era
bestseller numa trintena de países incluindo o nosso. Pasmei. Até já tinha sido adaptado ao cinema com um sucesso semelhante. Estava a referir-se a
Smilla e os mistérios da neve (1992), que consegui encontrar com alguma facilidade no idioma nativo,
não
muito
longe
duma
versão em
inglês. Como o meu conhecimento
do
dinamarquês
se
restringe
a
uma
dúzia
de
palavras
mal-pronunciadas, resolvi procurar mais tarde uma tradução para português. Foi o que fiz. Depois deixei-o a repousar tranquilamente no meio de muitos parentes seus até que os dias quentes do Sul lhe ditaram o fim duma hibernação forçada de anos.
A capa-contracapa e badanas avançam logo pistas sobre a natureza da fábula. Filiam-na na esfera dos
thrillers escandinavos, onde reina o
suspense e o exotismo
noir. A suspeita dum crime terrível ocorrida no seio da pequena comunidade esquimó da Gronelândia a viver em Copenhaga funciona como o
leitmotiv que norteará a quase meia centena de páginas onde se urdirão todas as intrigas, maquinações, enredos e conspirações anunciados pelos editores nos locais de destaque referidos. A tarefa de desvendar os mistérios escondidos na neve estará a cargo da protagonista, cujo nome nos é revelado no título. Um policial, em suma, com cenário centrado em dois polos distintos do universo dinamarquês, a capital do reino e a antiga colónia dos mares do Norte. Uma informação tão circunstanciada da trama desencadeou um efeito inibidor na minha vontade de avançar com a leitura do livro. É que o efeito da surpresa me parecia seriamente ameaçada de morte. Após uma hesitação passageira, decidi-me pela visita completa a esse mundo branco desconhecido de secretismos revelados em primeira mão e na primeira pessoa. Não me arrependi de o ter feito. Os publicitários nem sempre são tão exagerados como os pintam.
O testemunho pessoal relatado por Smilla Qaavigaaq Jaspersen distribui-se por seis partes, agrupadas em três blocos temáticos: a cidade, o mar e o gelo. As deambulações reflexivas proferidas propiciam-nos uma quase visita guiada pelas ruas, ruelas, praças, pracetas, avenidas e alamedas de København. A ficção acaba por nos conduzir a espaços emblemáticos tantas vezes percorridos em
visitas
reais
. A
Christianshavn,
o
Kongens
Have, o Kongens Nytorv, o Hotel d'Angleterre e La Brioche d'Or, o Dyrehaven, a Frelserkirke e o Amaliansborg. Depois dirigimo-nos para o porto. Embarcamos no Kronos, transpomos o estreito de Øresund, deixamos o Báltico e navegamos pelas águas oceânicas do Atlântico e do Ártico. O estreito de Helsing
ør-Helsingborg e o castelo de Kronborg ficam para trás e entramos na toponímia algo exótica dum navio de grande cabotagem preparado para as rotas geladas da Grønland. A voz feminina da protagonista-narradora continua a marcar o discurso mas começa a confundir-se com a do autor-romancista, que, antes de se dedicar à arte da escrita, já abraçara as atividades de bailarino, ator, marinheiro e alpinista. Toda uma experiência de vida vivida emprestada às vidas imaginadas.
Um miúdo de seis anos caiu do telhado dum prédio de sete andares e estatelou-se no chão sem vida. A testemunhar essa escalada insensata, ficaram registadas na neve as suas pegadas de criança. O inquérito oficial arrolou o desfecho trágico verificado na categoria dos acidentes. Tudo ficaria por aí se o suspeita de assassinato não tivesse surgido como uma hipótese tornada certeza. É que a vítima tinha pavor às alturas e nunca teria subido até àquele local de livre e espontânea vontade. Assim o pensou a vizinha, convertida em investigadora por conta própria do enigma e relatora dos resultados obtidos. No final, tudo se resolve ou quase tudo. Nessa perseguição sem tréguas para encontrar uma solução plausível do insólito, os perigos
sem
fim
encontrados
em
cada
esquina
surgem
em
catadupa, como cogumelos bravios em terreno propício. Os arrepios causados pelas peripécias de percurso só não atingem um grau maior, porque sabemos
tratar-se
duma
ficção
realista
verbalizada
por
um
eu
singular
concreto,
humano,
abrangido
pelas
leis
do
natural,
obrigado a sobreviver até ao derradeiro parágrafo, período e palavra escrita em letra de imprensa. E nada mais fica por dizer quando não há mais nada para dizer.