24 de julho de 2020

Mario Vargas Llosa, a festa do chibo contada em três atos e um merengue

«Pero, aquello del libre albedrío lo afectó. Tal vez por eso decidió que Trujillo debía morir. Para recuperar, él y los dominicanos, la facultad de aceptar o rechazar por lo menos el trabajo con el que uno se ganaba la vida. Tony no sabía lo que era eso. De niño tal vez lo supo, pero lo había olvidado. Debía de ser una cosa linda. La taza de café o el trago de ron debían saber mejor, el humo del tabaco, el baño de mar un día caluroso, la película de los sábados o el Merengue de la radio, debían dejar en el cuerpo y el espíritu una sensación más grata, cuando se disponía de eso que Trujillo les arrebató a los dominicanos hacía ya treinta y un años: el libre albedrío.»
Mario Vargas Llosa, La fiesta del chivo (2000)
Há um popular merengue dominicano que celebra com todo o ritmo esfuziante caribenho conhecido e reconhecido, o folclórico Mataron al chivo, onde se canta em tom festivo e convida o povo a bailar com muito entusiasmo a morte do Chibo, do Bode, do Chefe, do Chapita, do tirano Rafael Leonidas Trujillo Molina, nesse já distante 30 de maio de 1961, o dia da liberdade. Mario Vargas Llosa apropria-se dum dos versos da composição (III, 5) para intitular um dos seus mais icónicos romances, La fiesta del chivo (2000), que transcreve, também, em forma de epígrafe inicial da sua versão dos factos. Não se pense,  todavia, que a festa histórica musicada se identifica com a festa escrita ficcionada e já adaptada ao cinema. As pistas começam a ser dadas desde os primeiros parágrafos do livro, mas só são desvendadas de forma cabal no seu derradeiro capítulo, quinhentas e tal páginas bem contadas mais à frente.

A construção imaginária concebida pelo jornalista, político e escritor peruano-espanhol, reparte-se alternadamente por três sequências narrativas de sinal dramático ou atos duma tragédia com final anunciado. A configuração geral dos atores no teatro das operações discursivas centra-se na visita duma emigrante-exilada há trinta e cinco anos nos Estados Unidos ao seu país natal, para visitar o pai, ex-senador e ex-político caído em desgraça pelo regime; no último dia de vida do autocrata militar apodado pelos seus seguidores de Benfeitor, de Pai da Pátria Nova, de Generalíssimo dos Exércitos Nacionais, de Salvador da Pátria, de Restaurador da Independência Financeira, completado com outros momentos que antecederam o atentado; no relato pormenorizado dos motivos que levaram os sete conspiradores a atuar, nos preparativos para punir o opressor, na execução bem-sucedida do magnicídio e nas perseguições que lhes foram movidas e aos familiares nos derradeiros meses da Era Trujillo pelos seus apaniguados e fiéis seguidores, com especial relevo para os membros ligados pelo sangue ao clã no poder.

A arquitetura estrutural da obra obedece a um vaivém constante entre tempos e cenários diegéticos, possível através da corrente de pensamento e memórias recorrentes dos protagonistas ou da própria instância narrativa que lhes vida e interpela retoricamente a cada momento, sem esperar uma resposta adequada às suas dúvidas e incertezas, deixando ao leitor a tarefa de o fazer. Esta omnisciência ou semiomnisciência assumida do narrador permite-lhe revelar-nos os monólogos interiores das personagens, mas dá-lhe igualmente a liberdade tática de se calar sempre que a economia do texto assim o exija, chegando mesmo a dar a entender o facto insólito de ignorar de ciência certa alguns aspetos menos relevantes para o desenrolar dos eventos. Outras vezes tem a habilidade de saltar bruscamente duns espaços e momentos para outros, de parágrafos contíguos ou à distancia de vários capítulos, recorrendo à técnica folhetinesca das novelas radiofónicas ou televisivas, para criar um clima de suspense, que domina à perfeição e já havia demonstrado na elaboração d'A tia Júlia e o escrevedor. A execução do homem-que-nunca-sua, do Maligno, do déspota maquiavélico é reportada, por exemplo, duas vezes, precisamente a meio do relato e já reta final do mesmo. O ponto de vista dos diferentes grupos de conspiradores, situados em locais estratégicos contíguos.

O Ilustrísimo Señor Marqués de Vargas Llosa, membro eleito da Real Academia Española e futuro prémio Nobel da Literatura, opta aqui por compor uma novela del dictador, cultivada com grande êxito por vários autores do movimento boom latino-americano, que lançou as letras hispânicas do Novo Mundo um pouco por toda a parte. Como subgénero narrativo dos relatos de sucessos reais acontecidos, tem a desvantagem de dificilmente causarem surpresa nos leitores. Os factos são conhecidos de todos e encontram-se registados nas crónicas, relações, anais e demais documentos de cariz oficial. Em contrapartida, os romances de ficção pura oferecem-nos o prazer inesperado do contacto com o desconhecido. Neste caso concreto, qualquer enciclopédia nos pode informar qual o destino do caudilho dominicano e dos seus matadores. A poeticidade é estabelecida com a ironia trágica do devir histórico, que converte os traidores assassinos em heróis nacionais e o todo poderoso senhor do país na besta diabólica que subjugara toda a população por um período de trinta e um anos, marcados pela arbitrariedade governativa, pela crueldade praticada no desempenho de funções, pela repressão sádica indiscriminada exercida sobre toda a oposição, pela tortura generalizada incluindo o canibalismo, pelos assassinatos políticos e pelas execuções sumárias em massa.

O mais conhecido efeito de suspense inserida no texto reside no sentido-outro dado à fiesta presente no título. Ao invés de seguir à letra a aceção plasmada na letra do merengue, no romance em apreço, esse vocábulo ganha um significado erótico dum encontro amoroso a dois, disfarçado de festa, em que el Chivo, el Maligno, senhor absoluto do país, tenta seduzir uma jovem de catorze anos, Urania Cabral, e que acaba por violar ao ver os seus intentos malogrados. Episódio gizado pela ficção mas baseada em ocorrências factuais que a fama do tirano granjeou ao longo dos seus setenta anos de idade. Com esta associação engenhosa, o seu mentor demonstra que o real e o imaginário costumam andar de mãos dadas, que os seus caminhos se cruzam e se confundem muitas vezes, como reflexo que são um do outro, oferecendo um manancial precioso aos grandes criadores de Arte, feita com palavras escolhidas ao sabor da fantasia e assim atingirem pela escrita o sublime poético, como é o caso.

2 comentários:

  1. Uma leitura que fiz há muito tempo de um escritor que acompanho, assim como os textos do Artur.

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  2. Uma história real de um ditador latino-americano que ganha mais intensidade dramática sob a pena mágica de Vargas Llosa e que não deixarei de procurar nas livrarias, após ler esta magnifica resenha, Prof.!

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