5 de novembro de 2021

Thomas Mann: desejo, virtude, beleza, fascínio, paixão e morte em Veneza

„Aber mit ihnen, in ihnen war der Träumende nun dem fremden Gotte gehörig. Ja, sie waren er selbst, als sie reißend und mordend sich auf die Tiere hinwarfen und dampfende Fetzen verschlangen, als auf zerwühltem Moosgrund grenzenlose Vermischung begann, dem Gotte zum Opfer. Und seine Seele kostete Unzucht und Raserei des Unterganges.“
Thomas Mann, Der Tod in Venedig (1912)

Depois de ter visto meio século em Lisboa a versão filmada de Luchino Visconti, projetada no ecrã do Satélite, a sala estúdio do Monumental, voltei ao convívio etéreo duma das novelas mais emblemáticas de Thomas Mann, A morte em Veneza (1912), agora em forma de livro. Experiências únicas, sem reprise duma e doutra de permeio. Inexplicável. Não me dei conta de ter sido projetado por qualquer canal da TV ou de ter visto alguma edição impressa nas livrarias que vou visitando frequentemente. Ouvi, em contrapartida, um sem-número de vezes a trilha musical que acompanhava a película ítalo-francesa (1971). Sobretudo os contributos sinfónicos de Mahler, mas também de Mussorgsky e Beethoven. Impossível não recordar com nostalgia as sinestesias audiovisuais experimentas nessa sala de cinema desaparecida da praça Duque de Saldanha.

A parca centena de páginas de texto está dividida por cinco capítulos, tantos quantos os atos duma tragédia, a que o dramaturgo-novelista alemão chama tragédia da humilhação ou da degradação. Refere-se assim a Gustav von Aschenbach, reputado prosador-poeta, na casa dos cinquenta anos, convertido por força do destino num homem descaído, possuído, envelhecido, solitário e sensível. Tudo se passa entre maio e junho dos inícios de novecentos, talvez 1911, data da escrita do relato bem como do momento em que a segunda crise marroquina atingia a sua plenitude e quase antecipava o deflagrar da primeira guerra mundial. O ambiente trágico anunciado logo no título desenvolve-se depois num crescendo descritivo desde o entrada à saída do protagonista de cena, marcadas por uma quase ausência de intriga e de vozes dialogantes.       

O cenário central do drama desloca-se de Munique para Veneza, com uma passagem breve por Trieste. Instalado na ilha do Lido, o reputado vulto da cultura literária germânica transita a um ritmo oscilante entre o labirinto de ruelas, canais, pontes e pracetas da cidade dos doges e os terraços, átrios, salões e demais dependências aristocráticas do Hôtel des Bains. É neste ambiente de luxo agonizante e de primavera disfarçada de falso verão que a hybris se revela, o páthos se insinua, a anagnórise se impõe, o clímax se instala e a cathársis se efetiva. Por outras palavras, o decadente von Aschenbach nessa estância de férias o jovem efebo Tazdio, rende-se ao fascínio da sua beleza etérea, deseja-o com uma paixão insana, atira para trás das costas a virtude defendida por Sócrates no Fedro de Platão e admira-o pela última vez na praia inóspita e deserta do Adriático.

As derradeiras peripécias vividas pelo escritor de passagem pelo complexo balneário do Véneto começam com o seu próprio nome e findam com a palavra morte, reduzindo-a da introdução ao epílogo no tema axial do drama representado na novela. As alusões iniciais à capela mortuária do cemitério norte de Föhring (Ⅰ) e a ilha do cemitério de San Michel (Ⅴ) servem de moldura ao canto de abertura ou párodo e ao canto de saída ou êxodo, i.e., o α e ω trágicos executados por um grupo de músicos ambulantes à entrada da cidade (Ⅲ) e por uma banda de cantores de rua no jardim à frente do hotel (Ⅴ). Os rumores e boatos duma epidemia ignota, desmentidos pelas fontes oficiais e calados pela imprensa local, a notícia dos cheiros nauseabundos e a sucessão de cadáveres negros chegam aos jornais alemães e ao conhecimento do cinquentão grisalho disfarçado de falso jovem para agradar ao vero jovem de catorze anos. O negacionismo comum em situações similares de pandemia é revelada, a cólera indiana invade com passo firme o espaço cénico, as gôndolas assemelham-se a caixões infindáveis e confirma-se a caminhada irreversível e sem marcha-atrás possível da anunciada morte em Veneza.

6 comentários:

  1. Belíssimo texto sobre esta obra-prima de Thomas Mann, Prof.! Li primeiro o livro, numa edição do Círculo de Leitores de Setembro de 1990, que me agradou sobremaneira pela capacidade extraordinária do autor de nos prender à descrição de um ambiente carregado de beleza e drama. Só vi o filme anos depois, mas a adaptação foi uma bela surpresa, pelo grande desempenho dos atores, pela beleza da fotografia e pela música envolvente.

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    1. Comigo aconteceu ao contrário. Foi o filme que antecedeu o livro e a uma distância bem mais alargada no tempo. Agora posso dizer representarem dois prazeres distintos que se completam. Nas imagens em movimento, com a música que se ouve enquanto se vê; nas páginas atrás de páginas, no silêncio das palavras que se faz enquanto se lê. Em ambos os casos, sempre com Veneza como pano de fundo.

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  2. Adquiri o título em nov2020, mas a edição da Relógio d'Água é de 2004.
    Promete...

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  3. Não li a obra, mas vi o filme, em Coimbra, no Teatro Académico Gil Vicente.
    Absolutamente inesquecível.

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    1. Histórias d'Arthur d'Algarbe11 de novembro de 2021 às 11:41

      Inesquecível mesmo a forma como a cidade de Veneza nos é descrita através da maestria de Visconti a adaptar à sua maneira a história duma paixão impossível em tempo duma pandemia indesejada.

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  4. "Der tod in Venedig", um trabalho artístico magistral, na literatura, no cinema, na música e na ciência da Psicologia.

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