7 de fevereiro de 2022

Marcel Proust, segunda busca do tempo perdido: à sombra das raparigas em flor

« Tout d'un coup, dans le petit chemin creux, je m'arrêtai touché au cœur par un doux souvenir d'enfance : je venais de reconnaître, aux feuilles découpées et bri-llantes qui s'avançaient sur le seuil, un buisson d'aubépines défleuries, hélas, de-puis la fin du printemps. Autour de moi flottait une atmosphère d'anciens mois de Marie, d'après-midi du dimanche, de croyances, d'erreurs oubliées. J'aurais voulu la saisir. Je m'arrêtai une seconde et Andrée, avec une divination char-mante, me laissa causer un instant avec les feuilles de l'arbuste. Je leur demandai des nouvelles des fleurs, ces fleurs de l'aubépine pareilles à de gaies jeunes filles étourdies, coquettes et pieuses Ces demoiselles sont parties depuis déjà long-temps , me disaient les feuilles. »
Marcel Proust, À l'ombre des jeunes filles en fleurs (1918)

A educação do herói-narrador-protagonista anónimo prossegue o seu caminho imparável através da pena de Marcel Proust, aplicada à escrita de À sombra das raparigas em flor (1918), a segunda etapa da busca do tempo perdido da infância-adolescência e do mais que virá nas cinco vindouras. O percurso recorrerá de novo às reminiscências involuntárias do relator e será feito tendo como ingredientes maiores de formação pessoal a literatura, a pintura e a música. A reunião de todos estes elementos valerá ao autor a conquista renhida do Prix Goncourt (1919), o mais cobiçado galardão atribuído ao melhor livro de prosa poética redigido em francês, tornando esta crónica da Belle Époque (1871-1914), num dos mais notáveis testemunhos dum certo cosmopolitismo cultural europeu produzido entre o final da Guerra Franco-Prussiana e o eclodir da Primeira Guerra Mundial.

À imagem do lanço inicial da saga, o seguinte está dividido em partes, reduzido agora a duas. Mesmo assim, guardam entre si algumas semelhanças de percurso na metodologia adotada. A ação central traslada-se de Combray para Paris e fixa-se depois em Balbec. O núcleo dos dramas representados passa da história dum amor de Swann para o círculo social de Mme Swann. As digressões sobre os nomes de terras e países mantêm-se a um ritmo vivaz, alimentado pela imaginação criativa do repórter, sem nunca perder de vista o fio condutor do discurso unificador da exposição, animado pelo grupo divertido das jovens veraneantes da estação balnear normanda. O cenário conserva em palco o figurino social já nosso conhecido das fases anteriores do relato. O destaque dado às famílias catapultadas para um primeiro plano partilha um protagonismo efetivo com uma miríade de celebridades reais, fingidas, disfarçadas ou inventadas, trazidas ao mundo anquilosado de príncipes, duques, marqueses, condes e barões de pacotilha, a cumprirem todos eles a função compositiva de meras personagens decorativas. Ecos aristocráticos distantes, oriundos da Monarquia de Julho e do Segundo Império, quando a Terceira República já era mestra e senhora sem trono, coroa, cetro, brasões ou títulos para ostentar à face da lei em vigor.

A incursão do jovem memorialista na esfera labiríntica das vivências sentimentais faz-se no Entorno de Mme Swann, também conhecida por Odette de Crécy, detentora de duvidosa reputação na alta-roda parisiense e mãe de Gilberte Swann. Aos encontros fortuitos nos Champs-Élysées sucedem-se as visitas frequentes na residência dos pais. É neste ambiente de pretenso requinte intelectual e manifesta frivolidade mundana que o alter ego idealizado do cronista externo, travestido de dandy francês de virar de século, se torna mais visível aos olhos do leitor, mesmo do mais distraído, e se mantém presente em toda a busca frenética de tempos perdidos, qual Bildungsroman ou romance de aprendizagem de vida. O convívio repetido dos dois acaba por afastá-los pouco a pouco um do outro até à separação total. Inexoravelmente, como seria de esperar. O processo de crescimento prossegue o seu andarilhar autónomo, facultando a cada um dos heróis idílicos a leitura de páginas alternativas de obras distintas. Que saia de cena quem não é de cena e fique quem nela couber.

Dois anos separam as memórias evocadas nos dois blocos deste painel da heptalogia proustiana. O beau monde dos salões de moda de Paris é trocado pelo petit monde à part do Grand Hotel de Balbec. A Gilberte Swann dos jogos infantis é descartada de vez, sem apelo nem agravo, e é rendida nos devaneios adolescentes por Albertine Simonet. Os Nomes de países: o país marcam, assim, a transição da meninice-juventude inocente para a idade adulta amadurecida do emissor interno das histórias reveladas à sombra dum verdadeiro ramalhete de flores, formado pelas jovens desportivas e burguesas que emprestam o nome ao livro. Uma órbita de influência de duração expectável a preparar o advento da terceira jornada viandante da relação retrospetiva em sete longas estafetas, aquela que será regida dos lados de Guermantes e de tudo o que à ribalta chegar.

Lido e relido mais um tomo desta obra monumental, deste vastíssimo repositório de longas tiradas descritivas de perder o fôlego, repletas de pequenas e grandes intrigas de bastidores, ocorridas na passagem do século ⅩⅠⅩ para o ⅩⅩ, voltei a experimenta a vontade imperiosa de parar um pouco, de respirar fundo, de ganhar ânimo de retomar a leitura depois do repouso merecido. Árdua tarefa a desenvolver no decorrer deste 2022, l' année Proust, em que se comemoram os 150 anos do seu nascimento e os 100 da sua morte. Duplo aniversário que me fará encetar a árdua/motivadora tarefa de prosseguir-concluir a aventura há muito planeada/adiada de descoberta/redescoberta dum dos mais completos e celebrados retábulos literários das letras francesas, europeias e universais.

3 comentários:

  1. Ao iniciar a semana com a leitura deste texto, fico com a esperança de que todas as leituras são possíveis.
    Também acalento o desejo de ler o conjunto de sete livros que compõem o Em Busca do Tempo Perdido.
    Gostei muito do texto.
    Bom dia, boa semana!

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  2. Desta saga, apenas li o primeiro volume, "Do lado de Swann", trazido às minhas mãos pelo Círculo de Leitores há uns bons anos. Continuação de feliz leitura, que a mim me falta o fôlego para travessia de tal envergadura...

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  3. Uma análise feita de sentir... Oportuna, na efeméride! Elucidativa e de leitura agradável.

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