17 de fevereiro de 2022

A paixão dos livros

The Chess Players

«Cada libro, cada tomo que ves, tiene alma. El alma de quien lo escribió, y el alma de quienes lo leyeron y vivieron y soñaron con él. Cada vez que un libro cambia de manos, cada vez que alguien desliza la mirada por sus páginas, su espíritu crece y se hace fuerte.»
Carlos Ruíz Zafón, La sombra del viento (2001)

A paixão dos livros registada no meu universo de memórias é antigo. Antecedeu a minha capacidade de decifrar as palavras impressas a cheirar a tinta. Começou com a visão desses objetos mágicos que tinham o poder de contar histórias a quem os abria e desvendava. Revelavam-se nas vinhetas, tiras e pranchas publicadas todos os domingos n'O Primeiro de Janeiro. As bandas desenhadas d'O Janeirinho alimentaram-me a curiosidade de deslindar enredos mais elaboradas do que os revelados nos balões de pensamento ou de fala nas páginas dum jornal diário sediado no Porto.

A paixão dos livros surgiu-me numa altura em que me faltavam livros para pôr na estante. Numa primeira fase resolvi o problema com os livros que a biblioteca de turma ia adquirindo semana após semana. Leitura parca para quem as histórias fingidas impressas com letra de forma eram cada vez mais importantes. A solução surgiu sobre rodas com a biblioteca itinerante da Gulbenkian que periodicamente visitava o burgo e perfumava o ambiente com o aroma inconfundível da tinta dos livros novinhos em folha. Depois vieram as bibliotecas fixas, mas isso já são contas doutros rosários.

A paixão dos livros nunca me transformou num rato de biblioteca. Sempre preferi ter os meus próprios livros para ir preenchendo os tempos livres e os muitos espaços ainda disponíveis duma única estante. Isso não me impediu de recorrer de vez em quando à biblioteca pública que alimentou a minha voracidade juvenil. Depois de esgotar a esmo a leitura dos livros de capa azul, cor-de-rosa ou de qualquer outra cor e géneros ali depositados, passei a ser mais restritivo nas escolhas. E assim o gosto pela leitura indiferenciada se foi moldando ao gosto pessoal que hoje tenho.

A paixão dos livros de lazer levou-me à leitura dos livros de leitura obrigatória. E assim cheguei à situação atual de carecer de espaço nas estantes para pôr mais livros ou de espaços em casa para pôr mais estantes. As alternativas têm assentado arraiais nas segundas leituras e terão de ser seguidas por força das circunstâncias na supressão de todos os livros dispensáveis no final dum percurso académico ligado às letras. Manuais quase todos e pouco mais. Depois talvez me renda à leitura de livros digitais se entretanto me habituar à falta do papel a cheirar a tinta impressa.

A paixão dos livros inscrita no meu ADN de leitor espanta-se com a apatia sentida por alguns pela leitura. Um estudo recente revela que mais de metade da população portuguesa não lê livros. Para estes não-leitores, os direitos do leitor fixados por Daniel Pennac cifram-se no direito de não ler. Parca consolação para quem prescinde de saltar páginas, de deixar um livro a meio, de reler, de ler tudo, de querer ler ainda mais, de ler em todo e qualquer local, de ler uma frase aqui outra acolá, de ler em voz alta, de fazer segredo do que está a ler. Vistas bem as coisas, há quem se contente com bem pouco.

   

3 comentários:

  1. Partilho a tua estranheza pelo facto de tanta gente não ler, ignorando saber que não ler é não aprender, tema afinal tão propalado nos nossos dias, mesmo depois dos famigerados programas de entretenimento televisivos que só servem para embrutecer as massas, como bem demonstram os estudos...
    O gosto pela leitura foi-nos transmitido pelo meu pai que, em Cabo Verde, devorava tudo o que lhe ofereciam, principalmente pelas tripulações e passageiros de barcos estrangeiros, livros também em língua estrangeira que, ao longo da sua vida, ele foi estudando e aperfeiçoando o saber. Ainda bem que ele não assistiu ao incêndio que consumiu o apartamento em Campo de Ourique e que destruiu a sua coleção multilingue que ele tanto prezava... Os meus livros têm sido também objeto de seleção e, ao longo dos anos, fui dando os de estudo e oferecendo os de cultura geral... Mas há aqueles que vão resistindo nas prateleiras, aqueles que de vez em quando gosto de reler. Gostaria tanto de doar a minha pequena biblioteca à minha terra natal onde, dizem-me, o apetite pela leitura é grande, sendo os livros caros para o nível de vida da população, e onde se cultiva o hábito de os passar de mão em mão. Eu, que ainda hoje choro os livros que emprestei e que não me devolveram, talvez aprendesse em Cabo Verde como o escritor Germano Almeida que, após uns anos de regresso à terra, acabou por concluir e aceitar que os livros, na verdade, não devem estar nas estantes mas sim a passar pelas mãos dos que deles precisam, para aprender e desfrutar do seu mundo mágico. É pena a burocracia instalada neste mundo, até para oferecer uma pequena biblioteca... Na terceira idade e com a vista cada vez pior, terei de lhes dar um destino feliz!

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    1. Ganhei o gosto pela leitura em casa, onde todos liam um pouco. Fi-lo sobretudo com o meu avô, autodidata integral, que mal foi à escola, e foi obrigado a aprendeu por si só a desvendar os segredos das letras, das palavras e dos livros. Teve mais dificuldade com a escrita, mas aprendeu a fazê-lo com a ajuda dos cadernos escolares dos netos. Não tinha nenhuma biblioteca em casa mas lia tudo o que lhe aparecia à mão, sobretudo os romances que os jornais na época publicavam periodicamente em forma de folhetim. Depois cortava-os sistematicamente e juntava-os um a um até obter uma obra completa. Gostava de os voltar a ver agora que já sou também avô e a vida deu um salto tão grande no seu caminhar de duas ou três gerações e meia. O gosto pela leitura mantém-se cá por casa com uma dimensão q.b. Os livros vão-se acumulando um pouco por todo o lado e cada vez me é mais difícil prescindir da sua companhia. Serei egoísta. Talvez. A verdade é que acalento a ideia de estar sempre a necessitar de viajar no seu interior e de aprender sempre um pouco mais com eles.

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  2. Tão bons, o texto e os comentários.
    Não sobra nada para dizer.
    Está tudo dito!

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