The Chess Players |
«Cada libro, cada tomo que ves, tiene alma. El alma de quien lo escribió, y el alma de quienes lo leyeron y vivieron y soñaron con él. Cada vez que un libro cambia de manos, cada vez que alguien desliza la mirada por sus páginas, su espíritu crece y se hace fuerte.»Carlos Ruíz Zafón, La sombra del viento (2001)
A paixão dos livros registada no meu universo de memórias é antigo. Antecedeu a minha capacidade de decifrar as palavras impressas a cheirar a tinta. Começou com a visão desses objetos mágicos que tinham o poder de contar histórias a quem os abria e desvendava. Revelavam-se nas vinhetas, tiras e pranchas publicadas todos os domingos n'O Primeiro de Janeiro. As bandas desenhadas d'O Janeirinho alimentaram-me a curiosidade de deslindar enredos mais elaboradas do que os revelados nos balões de pensamento ou de fala nas páginas dum jornal diário sediado no Porto.
A paixão dos livros surgiu-me numa altura em que me faltavam livros para pôr na estante. Numa primeira fase resolvi o problema com os livros que a biblioteca de turma ia adquirindo semana após semana. Leitura parca para quem as histórias fingidas impressas com letra de forma eram cada vez mais importantes. A solução surgiu sobre rodas com a biblioteca itinerante da Gulbenkian que periodicamente visitava o burgo e perfumava o ambiente com o aroma inconfundível da tinta dos livros novinhos em folha. Depois vieram as bibliotecas fixas, mas isso já são contas doutros rosários.
A paixão dos livros nunca me transformou num rato de biblioteca. Sempre preferi ter os meus próprios livros para ir preenchendo os tempos livres e os muitos espaços ainda disponíveis duma única estante. Isso não me impediu de recorrer de vez em quando à biblioteca pública que alimentou a minha voracidade juvenil. Depois de esgotar a esmo a leitura dos livros de capa azul, cor-de-rosa ou de qualquer outra cor e géneros ali depositados, passei a ser mais restritivo nas escolhas. E assim o gosto pela leitura indiferenciada se foi moldando ao gosto pessoal que hoje tenho.
A paixão dos livros de lazer levou-me à leitura dos livros de leitura obrigatória. E assim cheguei à situação atual de carecer de espaço nas estantes para pôr mais livros ou de espaços em casa para pôr mais estantes. As alternativas têm assentado arraiais nas segundas leituras e terão de ser seguidas por força das circunstâncias na supressão de todos os livros dispensáveis no final dum percurso académico ligado às letras. Manuais quase todos e pouco mais. Depois talvez me renda à leitura de livros digitais se entretanto me habituar à falta do papel a cheirar a tinta impressa.
A paixão dos livros inscrita no meu ADN de leitor espanta-se com a apatia sentida por alguns pela leitura. Um estudo recente revela que mais de metade da população portuguesa não lê livros. Para estes não-leitores, os direitos do leitor fixados por Daniel Pennac cifram-se no direito de não ler. Parca consolação para quem prescinde de saltar páginas, de deixar um livro a meio, de reler, de ler tudo, de querer ler ainda mais, de ler em todo e qualquer local, de ler uma frase aqui outra acolá, de ler em voz alta, de fazer segredo do que está a ler. Vistas bem as coisas, há quem se contente com bem pouco.
Partilho a tua estranheza pelo facto de tanta gente não ler, ignorando saber que não ler é não aprender, tema afinal tão propalado nos nossos dias, mesmo depois dos famigerados programas de entretenimento televisivos que só servem para embrutecer as massas, como bem demonstram os estudos...
ResponderEliminarO gosto pela leitura foi-nos transmitido pelo meu pai que, em Cabo Verde, devorava tudo o que lhe ofereciam, principalmente pelas tripulações e passageiros de barcos estrangeiros, livros também em língua estrangeira que, ao longo da sua vida, ele foi estudando e aperfeiçoando o saber. Ainda bem que ele não assistiu ao incêndio que consumiu o apartamento em Campo de Ourique e que destruiu a sua coleção multilingue que ele tanto prezava... Os meus livros têm sido também objeto de seleção e, ao longo dos anos, fui dando os de estudo e oferecendo os de cultura geral... Mas há aqueles que vão resistindo nas prateleiras, aqueles que de vez em quando gosto de reler. Gostaria tanto de doar a minha pequena biblioteca à minha terra natal onde, dizem-me, o apetite pela leitura é grande, sendo os livros caros para o nível de vida da população, e onde se cultiva o hábito de os passar de mão em mão. Eu, que ainda hoje choro os livros que emprestei e que não me devolveram, talvez aprendesse em Cabo Verde como o escritor Germano Almeida que, após uns anos de regresso à terra, acabou por concluir e aceitar que os livros, na verdade, não devem estar nas estantes mas sim a passar pelas mãos dos que deles precisam, para aprender e desfrutar do seu mundo mágico. É pena a burocracia instalada neste mundo, até para oferecer uma pequena biblioteca... Na terceira idade e com a vista cada vez pior, terei de lhes dar um destino feliz!
Ganhei o gosto pela leitura em casa, onde todos liam um pouco. Fi-lo sobretudo com o meu avô, autodidata integral, que mal foi à escola, e foi obrigado a aprendeu por si só a desvendar os segredos das letras, das palavras e dos livros. Teve mais dificuldade com a escrita, mas aprendeu a fazê-lo com a ajuda dos cadernos escolares dos netos. Não tinha nenhuma biblioteca em casa mas lia tudo o que lhe aparecia à mão, sobretudo os romances que os jornais na época publicavam periodicamente em forma de folhetim. Depois cortava-os sistematicamente e juntava-os um a um até obter uma obra completa. Gostava de os voltar a ver agora que já sou também avô e a vida deu um salto tão grande no seu caminhar de duas ou três gerações e meia. O gosto pela leitura mantém-se cá por casa com uma dimensão q.b. Os livros vão-se acumulando um pouco por todo o lado e cada vez me é mais difícil prescindir da sua companhia. Serei egoísta. Talvez. A verdade é que acalento a ideia de estar sempre a necessitar de viajar no seu interior e de aprender sempre um pouco mais com eles.
EliminarTão bons, o texto e os comentários.
ResponderEliminarNão sobra nada para dizer.
Está tudo dito!