« Dans la maison que nous étions venus habiter, la grande dame du fond de la cour était une duchesse, élégante et encore jeune. C'était Mme de Guermantes, et grâce à Françoise, je possédai assez vite des renseignements sur l'hôtel. Car les Guermantes (que Françoise désignait souvent par les mots de “ en des-sous ”, “ en bas ”) étaient sa constante préoccupation depuis le matin où, jetant, pendant qu'elle coiffait Maman, un coup d'œil défendu, irrésistible et furtif dans la cour, elle disait : “ Tiens, deux bonnes sœurs ; cela va sûrement en des-sous ” ou : “ Oh ! les beaux faisans à la fenêtre de la cuisine, il n'y a pas besoin de demander d'où qu'ils deviennent, le duc aura-t-été à la chasse ”, jusqu'au soir où, si elle entendait, pendant qu'elle me donnait mes affaires de nuit, un bruit de piano, un écho de chansonnette, elle induisait : “ Ils ont du monde en bas, c'est à la gaieté ” ; dans son visage régulier, sous ses cheveux blancs maintenant, un sourire de sa jeunesse animé et décent mettait alors pour un instant chacun de ses traits à sa place, les accordait dans un ordre apprêté et fin, comme avant une contredanse. »Marcel Proust, Le côté de Guermantes (1920-1921)
De vez em quando, ganho coragem e dá-me uma vontade imensa de encetar uma nova busca do tempo perdido e aproximar-me, assim, do almejado tempo reencontrado no final da longa pesquisa efetuada ao longo de muitas centenas/milhares de páginas, idealizada por Marcel Proust entre 1908/1909-1922. Lidas as partes, capítulos, parágrafos e períodos dos livros que compõem a obra, fico satisfeito de o ter feito e tiro uns meses de sabática para recobrar forças até um novo incurso nos tomos ainda em falta. Cabe-me desta feita assentar arraiais no terceiro painel do políptico, dedicado às duas etapas desenhadas d'O lado de Guermantes (1920-1921).
O projeto memorialista tecido em forma de romance autobiográfico aproxima-se a passos largos da mudança de século. Entre 1897 e 1899, o narrador-herói-protagonista anónimo rondaria os 19-21 anos e preparava-se para fruir a derradeira fase da adolescência. Depois de ter passado a idade dos nomes [T. I] e a idade das palavras [T. II], traça-nos o seu deambular minucioso pela idade das coisas [T. III]. Máxime, toda a trama narrativa está focada no fascínio sentido pelo jovem relator desde a mais tenra infância pela Duchesse Oriane de Guermantes. Os encantos aristocráticos dessa figura insigne da Belle Époque parisiense (1871-1914) levam-no a experienciar o advento, evolução e extinção duma paixão idealizada sem futuro à vista. O mundo do sonho alimentado na primeira parte do relato [G. I] dá lugar na segunda [G. II] à realidade pragmática nua e crua dos factos.
Os caminhos que movem o memorista ao convívio dos Guermantes é também a história da sua ascensão mundana no universo duma boa centena e meia de príncipes e princesas, duques e duquesas, marqueses e marquesas, condes e condessas, barões e baronesas, frequentadores assíduos dos salões de moda do Faubourg-Saint-Honoré. Cerca de duas centenas da velha e nova nobreza gaulesa remanescente do Ancien Régime e da Monarquia Constitucional real e imperial, em plena vigência da Terceira República (1870-1940), minuciosamente apresentada, descrita e comentada pela instância enunciativa de primeira pessoa. Este testemunho poderá também ser entendido como um documento precioso de época, centrado de forma insistente no affaire Dreyfus, um conflito social e político que agitou a sociedade francesa por doze largos anos (1894-1906), dividindo-a em dois campos visceralmente opostos, os dreyfusards e os antidreyfusards, i.e., os defensores da inocência ou da culpa de traição do capitão alsaciano de origem judaica.
Fala-se muito no snobismo diletante de Marcel Proust, ao pintar com palavras escritas cada uma das sete tábuas do retábulo. O emissor externo de La recherche du temps perdu tanto se confunde com o cronista interno sem nome revelado das histórias contadas, como com os intervenientes trazidos à boca de cena, oferecendo ao leitor um quadro social preciso a que os anais de finais de oitocentos deu corpo. A futilidade, a frivolidade, a superficialidade, o pedantismo, a vaidade, o preciosismo e a ociosidade estão todos representados nos diversos episódios escolhidos para dar corpo a este segmento da heptalogia. A mudança e instalação em Paris, o fascínio pela duquesa de Guermantes, o convívio fraterno com Saint-Loup na guarnição de Doncières, as receções de Mme de Villeparisis, a visita ao excêntrico barão de Charlus ou a doença e óbito da avó ‒ entre outros eventos mundanos/familiares de maior ou menor dimensão discursiva ‒ são exemplo da morte inexorável da infância a abrir caminho para as restantes estafetas de vida que a saga nos trará. Mas essa descoberta virá mais tarde. Talvez nas férias de verão, quando os dias são mais extensos e as horas de leitura se alongam no tempo.
E lá chegaste ao final da saga. Só li o primeiro tomo e fico por aqui...
ResponderEliminarSuas palavras ilustram, esclarecem e motivam a leitura!
ResponderEliminarPelo seu discurso manuscrito, prevejo que encetarei tal aventura somente após a reforma…
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