5 de abril de 2023

Da velhilíngua à novilíngua

Pupet 2 by Oleg Dou on Artnet (2006-2009)
«O vocabulário da novilíngua era construído de modo a exprimir com exatidão, e muitas vezes com grande subtileza, qualquer sentido que um membro do Parti-do pudesse legitimamente querer exprimir, excluindo, ao mesmo tempo, todos os outros sentidos, e também a possibilidade de chegar a eles por meios indire-tos. Conseguia-se isto em parte através da invenção de novas palavras, mas prin-cipalmente eliminando as palavras indesejáveis e despojando as que restavam dos seus sentidos não ortodoxos, e tanto quanto possível de todos e quaisquer sentidos secundários. [...] Mesmo quando não se tratava de suprimir palavras manifestamente heréticas, encarava-se a redução do vocabulário como um fim em si, e não se permitia a sobrevivência de qualquer palavra dispensável. A no-vilíngua foi concebida não para aumentar, mas para restringir o campo do pen-samento, propósito indiretamente servido pela redução ao mínimo da gama das palavras.»
George Orwell, «Os princípios da novilíngua», in 1984 (1949)
PALAVRAS PROIBIDAS, ABOLIDAS & DESCARTADAS
As distopias estão na moda. Os tempos que correm não estão para menos. As produzidas no passado perderam há muito o seu caráter premonitório e tornaram-se perfeitamente visíveis no presente. Em todo esse processo literário de antecipação dos paraísos na terra, as palavras desempenharam sempre um papel de primeiríssima ordem. As inventadas, as banidas, as alteradas.

Aldous Huxley diz-nos no Admirável mundo novo (1932) terem as palavras «mãe» e «pai» sido ostracizadas, por serem tidas como pornográficas. George Orwell incluiu um Apêndice ao 1984 (1949) com os princípios oficiais da «novilíngua», que devia substituir a «velhilíngua». Ray Bradbury queima os livros e as palavras neles contidas no Fahrenheit 451 (1953). Nem mais...

A impoluta Albion resolveu desterrar para os confins inacessíveis das bibliotecas as edições originais d'Os Cinco da Enid Blyton, por terem linguagem ofensiva. Na malha da censura caiu também a obra de Agatha Christie, cuja redação deverá ser adaptada às sensibilidades modernas. É um fartar vilanagem sem fim à vista. O universo totalitário do Big Brother já esteve mais longe.

Entre nós, a ditadura do politicamente correto não chegou tão longe. Valha-nos isso. A moral e os bons costumes da imprensa cor-de-rosa limitou-se a declarar a solteirice dos famosos do momento como um estado civil universal. Nada de divorciados e viúvos. Os descasados regressam sempre à condição de eternos namorados. E cá vamos cantando e rindo neste oásis à beira-mar plantado. Até ver...

3 comentários:

  1. Thanks for bringing this up. Even Roald Dahl’s children’s books will now have to go through purgatory. The books are FUN and he invented new words instead of cancelling them. Fancy a Frobscottle? Penguin has reluctantly agreed to keep publishing the original versions, to be called “Classic Roald Dahl” as a kind of sidekick to the new pc editions. Unbelievable!

    ResponderEliminar
  2. Teresa Salvado de Sousa14 de abril de 2023 às 12:13

    Tudo isto é tão disparatado. Eu não menosprezo o poder e o peso das palavras, bem pelo contrário. Mas reescrever obras? Que coisa louca! Mas este edulcorar atinge tudo - li no Guardian que os Caminhos de ferro de Gales tinham pedido desculpa por incómodos, um comboio tinha tido "a thermal incident", isto é, tinha havido um incêndio.

    ResponderEliminar
  3. Boa e adequada reflexão.
    Os novos tempos trazem-nos velhos garrotes, neste caso, linguísticos.
    Estaremos atentos…

    ResponderEliminar