17 de maio de 2023

Lídia Jorge, a misericórdia dum diário monologado no Hotel Paraíso

«Aqui onde me encontro, mesmo em tempo de primavera, quando os dias costumam ser do tamanho das noites, a noite é sempre mais longa do que o dia. Sabendo disso, é precisamente a meio da noite que a noite vem ter comigo, dirigindo-me perguntas inimagináveis como se fosse aquele gato pardo, muito antigo, que se chamava esfinge.»
Lídia Jorge, Misericórdia (2022)

Uma estada prolongada no CHUA de Faro em tempos de pandemia ajudou-me a entrar de imediato no espírito claro de espalhar risos e derramar lágrimas, testemunhado por Lídia Jorge no meio milhar de páginas do Misericórdia (2022), escrito a pedido da mãe, de certo modo a protagonista implícita do romance. O ambiente hospitalar não é exatamente igual ao ambiente vigente num lar de idosos, casa de repouso ou de terceira idade, sobretudo quando esta dá pelo nome algo insinuante de Hotel Paraíso, mas coincide ainda assim em muitos dos aspetos envolventes do dia a dia vivido pelos pacientes e residentes que os povoam com caráter passageiro ou permanente.

As noites parecem sempre maiores do que os dias, mesmo quando a sua duração real se equilibra no início da primavera e do outono. Esta sensação da imensa grandeza noturna, desmesurada e infindável, é sempre sentida quando o sono teima em partir e nos achamos fora do nosso ambiente natural de conforto. Dona Alberti, a voz feminina que corpo ao relato gravado num Olympus Note Corder DO-20, mitiga as insónias com longos debates com a inoportuna visitante trajada de negro que a flagela com uma regularidade persistente. As palavras saem-lhe da boca em catadupas para a fita magnética que as traz até nós numa transcrição naturalmente infiel, a que foram retirados os bordões próprios da oralidade mas preservada a respiração e ritmo com que foram produzidas. A casa, os livros, os cães, as memórias, os fantasmas, o amor e a morte são uma presença constante nesses combates alucinantes travados na solidão do seu quarto de exílio sofrido em final de vida.

Lidos os  três textos de caráter introdutório do livro, os setenta e um fragmentos do diário falado, as trinta e oito notas escritas pelo próprio punho da monologante e os sete parágrafos compostos em seu nome, a minha viagem por outras leituras remete-me para as anotações de Aristóteles sobre a tripla unidade duma obra de arte de caráter dramático. Tudo se passa num mesmo espaço cénico, durante um ano completo e centrado na visão duma testemunha. Naquele lugar de retiro, setenta pessoas caminham juntas para o termo do seu tempo pessoal. Entram vivas e saem mortas. Os cenários são sempre os mesmos dentro daquelas quatro paredes rodeadas por um jardim. O mundo exterior chega em pequenos pedaços de coisa quebrada. Reverberações distantes trazidas pelas visitas, pela televisão, pelos telemóveis, pelos jornais, pelos funcionários de nações distintas. Coisa de pouca monta que raramente ultrapassa as fronteiras de Valmares, banhada pelo mar e bafejada pelas areias do deserto. A relatora resiste à invasão das formigas-ladra no verão de 2019 mas é-lhe negada a possibilidade de declarar se se livrou da entidade invisível, venenosa e letal que veio sem aviso ao longo de 2020. Ironia trágica que a impediu de revelar o seu próprio destino depois de ter revelado o de tantos outros companheiros de infortúnio.

Aqui e ali ouvem-se ecos descritivos muito próximos do percurso biográfico da obreira externa do relato, assentes na crítica literária tecidos pela sua promotora interna aos livros da filha. Critica-a por contarem demasiadas desgraças, por estarem focadas em gentes vulgares, por terminarem sempre mal, por descreverem um percurso discursivo contrário ao seu gosto pessoal e do público leitor em geral. Quiçá para fugir a esse final indesejado, a história fingida revelada pela mãe duma escritora conhecida deixa o final aberto à fantasia de todos nós, depoimento que ouvimos até a fita magnética cessar o registo do diário monologado e o bando de astronautas mascarados testemunhar o seu regresso imaginário ao pátio da escola e voltar a saltar, cheia de energia, até lhe voar o chapéu.

3 comentários:

  1. Ainda não li este título mas, depois de ouvir a autora dissertar sobre ele em duas entrevistas, a curiosidade aguçou-se. É uma realidade muito familiar nos nossos tempos, a de terminarmos os dias em fila de espera num lar qualquer de nome atrativo, com raras exceções de quem tem a sorte de ser assistido humanamente em família, quando a sociedade atual isola mais as pessoas. Que nos seja dada a benesse de ir desfrutando da arte que nos dá cor aos dias, seja sob a forma de um livro que nos desafia à fantasia...

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    1. Senti um desconforto muito grande ao lê-lo e simultaneamente um prazer sem limites pela forma como nos é contada a história. Um livro a não perder, apesar de padecer de todos aqueles defeitos apontados por aquela mãe àquela filha da ficção. Soberbo...

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  2. Uma leitura desconfortável mas real.
    Li várias matérias sobre o livro no JL, inclusive uma entrevista à autora, tocante e que nos interpela.
    Ainda não li.

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