2 de novembro de 2023

Robert Graves e a autobiografia fingida do divino Cláudio e da mulher Messalina

“I, Tiberius Claudius Drusus Nero Germanicus This-that-and-the-other (for I shall not trouble you yet with all my titles) who was once, and not so long ago either, known to my friends and relatives and associates as "Claudius the Idiot", or "That Claudius", or "Claudius the Stammerer", or "Clau-Clau-Claudius" or at best as "Poor Uncle Claudius", am now about to write this strange history of my life; starting from my earliest childhood and continuing year by year until I reach the fateful point of change where, some eight years ago, at the age of fifty-one, I suddenly found myself caught in what I may call the "golden predicament" from which I have never since become disentangled.”
“Two years have gone by since I finished writing the long story of how I, Tiberius Claudius Drusus Nero Germanicus, the cripple, the stammerer, the fool of the family, whom none of his ambitious and bloody-minded relatives considered worth the trouble of executing, poisoning, forcing to suicide, banishing to a desert island or starving to death – which was how they one by one got rid of each other – how I survived them all, even my insane nephew Gaius Caligula, and was one day unexpectedly acclaimed Emperor by the corporals and sergeants of the Palace Guard.”

Levei grande parte dos meses de verão e princípios de outono a reler a obra magna de Robert Graves, repartida por dois grossos volumes de inspiração histórica, atribuídos à pena autobiográfica do quarto imperador romano, Eu, Cláudio (1934) e Cláudio e Messalina (1935). A reconstituição imaginada do hipotético pensamento analítico de Tibério Cláudio César Augusto Germânico Britânico (10AEC-54EC), da Dinastia Júlio-Claudiana, está coligida em oito centenas de páginas de pura ilusão efabulativa, contidos em 66 capítulos, a que o alegado redator designa à boa maneira latina de livros. Para os leitores atuais, o autor real da conversa íntima da ficção com o factual anexa um conjunto de quadros/árvores genealógicos, bem como alguns textos coevos referentes à morte do memorialista, pedidos emprestados a Suetónio, Tácito, Cássio e Séneca.

Ultimamente, os diversos canais televisivos globais têm sido pródigos na acomodação ao pequeno ecrã dos percursos de vida de algumas figuras públicas singulares vindas dum tempo mais ou menos remoto, através da realização de roteiros expressamente preparados para o efeito ou da adaptação de textos já consagrados pela literatura. À medida que seguia a série britânico-italiana Domina (2021), produzida pela Epix/MGM+, e me perdia na exposição nem sempre clara da conturbada existência da imperatriz Lívia Drusila, a poderosa mulher de Caio Otávio Augusto, fui-me lembrando da fluidez e mestria com que a BBC adequara os romances de Robert Graves à minissérie I, Claudius (1976) e, movido por um impulso imperioso, resolvi reler o suposto pacto biográfico composto por Clau-Clau-Cláudio, descrito na edição da Livraria Bertrand como o infeliz coxo e gago feito imperador de Roma contra a sua vontade.

Durante muitíssimo tempo considerei Cláudio o mais fascinante dos Césares, provavelmente o mais aceitável de todos. Efeito persistente do visionamento da versão televisionada a anteceder a leitura da romanceada. Hoje em dia, sinto uma certa dificuldade em manter ou refutar esse juízo de valor tecido há quase meio século. As notícias extraliterárias que me foram surgindo a pouco e pouco sobre a ação labiríntica desenvolvida por cada um dos membros proeminente da família tornou a tarefa de os destrinçar um tanto espinhosa. Em termos poéticos, o prazer da primeira abordagem da obra manteve-se porém inalterada. Numa primeira fase da saga, o bisneto de César, sobrinho-neto de Augusto, sobrinho de Tibério e tio-avô de Calígula e Nero, traça o perfil pormenorizado dos seus promíscuos parentes nos destinos imperiais, elencando depois o seu contributo pessoal no mando supremo da cidade-estado mais poderosa de época, não se esquecendo de desenhar o percurso sinuoso de Messalina, a sua terceira e penúltima mulher. Os jogos seculares e sagrados, de poder e guerra, as honras e triunfos, as obras públicas, reformas e decretos, o direito, os julgamentos e sentenças, as doenças, mezinhas e venenos, as vinganças, intrigas e traições, perpassam em catadupa a uma velocidade vertiginosa, que a cultura geral do leitor comum poderá absorver ou deixar passar em claro, como forma ajuizada de salvaguardar minimamente a sanidade mental.

Lidos e relidos os relatos confidenciais do divino historiador e sentidos os ecos distantes dos episódios vistos e ouvidos na década de 70, revivi a nostalgia intimista com que a RTP difundia então o seu sinal voltar a habitar o preto e branco impresso das páginas de papel dos livros. Vitória inesperada obtida com alguma ironia sobre a invasão absoluta da pigmentação policromada na realidade virtual moderna, tão mais cinzentos nos seus trajos quotidianos do que vestidos com as sete cores do arco-iris e todas as suplementares com nomes exóticos postos à nossa disposição pelas mais recentes tecnologias de transmissão à distância.

1 comentário:

  1. Sim, de facto as séries televisivas têm o condão de envolver as figuras históricas numa aura nem sempre a mais real e verídica.
    Persistindo na busca de informação credível constatamos que afinal esses personagens históricos levaram vidas complicadas.
    Salva-nos o prazer da leitura histórico-romanceada.

    ResponderEliminar