20 de junho de 2024

O Orlando de Virginia Woolf visto por Lídia Jorge n'O Belo Adormecido

QUANDO A LITERATURA FALA DE LITERATURA...

Começamos a ler um conto e este remete-nos uma e outras vezes para um romance que desconhecíamos e cuja intriga resumida nos convida a visitar o original. Assim se passa das palavras de Lídia Jorge n'O belo adormecido (2004) para a tessitura narrativa de Virgínia Woolf no Orlando (1928).

Acontece na vida dos atores, mesmo aqueles cuja intimidade não se torna matéria universal da intriga dos magazines. Acontece. Tudo isso porque me tinham proposto e eu havia aceitado desempenhar o papel do único personagem colhido da Literatura, que vive durante vários séculos, que a meio do percurso muda de sexo, modos e trejeitos e fatos, meios de transportes e palácios, e procede a todas essas mudanças através de um striptease mental mirabolante, praticado diante de toda a gente. Isto é, eu iria ser Orlando, ele mesmo.

A personagem que eu representava invocava a Grande Geada que se abatera sobre a Inglaterra, na altura em que Orlando era moço. A tirada referia o momento em que a corte inglesa fora para Greenwich e o rio gelado pudera ser varrido com vassouras como se fosse o soalho dum palácio. Sobre o rio patinava uma princesa russa com título Romanovitch, a linda Sacha, da qual eu, jovem ardente me enamorava. Era o início do século dezassete britânico. [...Estava eu, precisamente, a repetir palavras, embrulhada na cama de rede, a decorar a passagem em que a personagem invocava o momento em que o Tamisa, iluminado pelos archotes, mostrava silhuetas dos peixes congelados no interior da sua massa de água solidificada, podendo os príncipes e as princesas de todas as nações patinar por cima, e eu, que não era príncipe mas lorde, encontrava-me precisamente nesse transe de ser jovem lorde patinador, quando me tinha apercebido de que da realidade surgia uma sombra.

Por mim, poderia garantir à pessoa que me esperava no Salão do Ritz, que por aqueles dias o meu melhor divertimento tinha consistido em decorar o meu papel, estando a personagem que me era cara cada vez mais volátil e mais densa, a aproximar-se, de hora a hora, da configuração burlesca para a qual fora concebida, feita de propósito para pulverizar a identidade e a História, e eu pronta para a interpretar. Dez folhas daquelas já eu fora capaz de reproduzir, de olhos fechados, e agora eu abria a janela que dava para o poito de cimento o seu guarda-sol aberto, e prosseguia como se estivesse mudando de sexo, passando de homem a mulher, fora do lugar e do tempo ‒ «Damas, cavalheiros, despertei. Que as trombetas digam a verdade. Verdade, verdade, verdade, estou nu na vossa frente…»

Mal olhava para os papéis, o tempo fazia-se outrora, eu passava a ser um jovem lorde inglês transformado em lady, e decorava o meu papel de mulher recente, agora amante de um homem, tendo de proferir frases retumbantes, a propósito da cerimónia do meu casamento ‒ «Eu chamei por ele, ele chamou por mim, e as nossas palavras subiram e giraram como falcões bravios por entre os campanários…». Diria eu pela minha personagem, tanto ela quanto o meu marido, ambos para sempre e definitivamente ambíguos, pois apenas uma célula, quando muito célula e meia, nos distinguia em matéria de ser e sexo.

Fechei os olhos, entregue à personagem que me levava agora pelas longínquas estradas de gravilha rasgadas ao longo dos prados das Ilhas Britânicas, gares ogivais do fim do século dezanove, automóveis pioneiros do século vinte, estava agarrada  ao soalho, a medir a cintura e a barriga das pernas, estava como deve estar uma profissional de teatro atenta, dominada, cumprindo um programa por objetivos, etapa após etapa. Completamente lúcida.

Eu duvidava, porém, que as palavras que Martim havia recolhido do filme da Tilda para rematar as minhas falas de quatrocentos anos, fossem adequadas para encerrar o século vinte de Orlando. Diria eu, de calção pelo joelho ‒ «Nem senhoras nem senhores. Estou entre a vida e a morte, entre o princípio e o fim. Não sou homem, nem mulher… Já estou começando outro início e ainda nem terminei este fim Estou entre a vida e a morte» [...] Eu preferia que se regressasse, de facto, àquele ano de mil novecentos e vinte e oito, metade da personagem voasse no aeroplano, e a outra metade mostrasse os seios à lua e tivesse um colar de pérolas que ardesse na escuridão, conforme o original, e os dois fossem só um, que por instantes da vida se separavam. Para quê separar o que era de Orlando?

Lídia Jorge, O belo adormecido (Lisboa: Dom Quixote, 2004, pp. 15, 32-33, 40, 56, 63, 68-69)

Tilda Swinton no écran (1992) & Isabelle Huppert no palco (1993)

3 comentários:

  1. Ora que bem!
    O “Orlando”, já eu li, o “O Belo Adormecido”, não, desconhecia aliás, o título e o tema.
    Parece muito interessante.

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    1. E eu entrei no universo do «Orlando» através d'«O belo adormecido». Percursos inversos...

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  2. Duas autoras geniais, dois livros que preciso reler para relembrar a escrita tão criativa...
    Pena os meus olhos não me ajudarem no percurso...

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