30 de setembro de 2025

Gustave Flaubert: Salammbô, uma história cartaginesa de amor e morte

« Salammbô était envahie par une mollesse où elle perdait toute conscience d’elle-même. Quelque chose à la fois d’intime et de supérieur, un ordre des Dieux la forçait à s’y abandonner ; des nuages la soulevaient, et, en défaillant, elle se renversa sur le lit dans les poils du lion. Mâtho lui saisit les talons, la chaînette d’or éclata, et les deux bouts, en s’envolant, frappèrent la toile comme deux vipères rebondissantes. Le zaïmph tomba, l’enveloppait ; elle aperçut la figure de Mâtho se courbant sur sa poitrine. — « Moloch, tu me brûles ! » Et les baisers du soldat, plus dévorateurs que des flammes, la parcouraient ; elle était comme enlevée dans un ouragan, prise dans la force du soleil. »
Gustave Flaubert, Salammbô (1862)

Quando duas dezenas de anos estive em Cartago, limitei-me a ver as ruínas grandiosas da antiga colónia latina e muito pouco ou nada da cidade-estado cartaginesa, arrasada pela República Romana no final das Guerras Púnicas (264-146 AEC)Carthago delenda est, não se cansava de arengar o senador Catão-o-Velho no final dos seus discursos. E assim se fez, não restando depois pedra sobre pedra. Para conhecer minimamente a malha urbana primitiva, desenhada ardilosamente pela lendária rainha Dido e visitada pelo audacioso Eneias, tive de recorrer à reconstituição imaginária de Gustave Flaubert, plasmada nas quatro centenas e meia de páginas de paixões trágicas e destinos violentos do Salammbô (1862), um típico romance histórico de feição romântica enraivecida com efeitos arqueológico-ficcionados de realidade ilusória.

Entusiasmado com a experiência das viagens ao Oriente (1849-1851 e 1858) e saturado com a polémica gerada em torno do processo judicial movido à publicação da Madame Bovary (1856), o grande mestre normando das letras gaulesas resolve abandonar o quadro contemporâneo do romance moderno europeu, que ajudara a criar, e lança-se nos meandros discursivos do mundo clássico antigo, sediado na exótica metrópole fenícia fundada no norte de África, na cercania da atual Túnis. A rebelião das forças mercenárias bárbaras contra a cidade cartaginesa que as contratara (241-238/237 AEC) e falhara o pagamento do soldo que lhes era devido, marca o espaço cénico do relato centrado em Salambô e Matão, protagonistas duma história impensável de amor e morte entre a filha do sufita Amílcar Barca e o chefe líbio dos rebeldes.

Lidos os quinze capítulos do relato ou cantos dum poema épico composto em prosa, depois de ultrapassadas as descrições sem fim de batalhas travadas, de assaltos efetuados, de pilhagens cometidas, eivadas de incêndios, massacres, desolações sem fim, sobejam ainda alguns flashes de romance, paixão e violência dos heróis/anti-heróis trazidos dos eventos históricos acontecidos para os fabulados pela verve criativa do cronista oitocentista. O esquema tradicional do encontro-desencontro-reencontro toma conta de modo peculiar dos sucessos trazidos à boca de cena. O chefe dos rebeldes bárbaros enamora-se da filha do sufeta cartaginês mal a vê pela primeira vez, submetendo-a aos seus desejos lúbricos decorrido algum tempo. O contexto de guerra que os coloca em campos opostos impede que a relação dos dois prospere e conduz ao desenlace do idílio por si vivido. O mercenário líbio é executado pelo poder instituído na cidade púnica vencedora do conflito e a sua apaixonada acaba por sucumbir logo de seguida à morte do seu amor caído. Separados no aquém, unidos no além, ironia trágica duma subjetividade anticlássica ainda avessa à objetividade dum naturalismo ainda longe de vingar.

As contendas sangrentas ininterruptas, pejadas de mil atrocidades e ignomínias sem par, entabuladas vinte e um séculos antes, foram incapazes de afastar o público leitor coetâneo da sua companhia, transformando a obra num êxito de vendas inusitado, a despeito dos pareceres negativos que a crítica literária especializada então lhe teceu sem dó nem piedade. As preferências estéticas vigentes nos nossos dias dificilmente olhariam pare este singular panorama com a mesma benevolência. Felizmente para todos nós, as atuais edições têm o cuidado de nos fornecerem um conjunto de anotações, anexos e documentos variados que facilitam a compreensão cabal do texto. Neste caso preciso, a inclusão dum capítulo explicativo do autor dá-nos uma imagem clara do árduo processo investigativo efetuado, permitindo-nos também entender melhor as hipóteses compositivas por si seguidas. Depreender, v.g., o poder inexorável do devir histórico, associado tanto à representação dos factos reais vividos como recriação dos palcos idealizados das ações narradas.

EPÍGRAFE
«Salammbô foi tomada por uma suavidade que a fez perder todo o sentido de si mesma. Algo íntimo e superior, uma ordem dos deuses, obrigou-a a render-se; nuvens ergueram-na e, desfalecida, caiu de costas na cama, sob a pele do leão. Mâtho agarrou-lhe os calcanhares, a corrente de ouro rebentou e as duas pontas, voando, atingiram o leito como duas víboras saltitantes. A túnica caiu, envolvendo-a; ela viu o rosto de Mâtho curvado sobre o seu peito. — "Moloch, estás a queimar-me!" E os beijos do soldado, mais devoradores do que chamas, percorreram-na; como se tivesse sido levada por um furacão, apanhada pela força do sol.»
G. Flaubert, Salammbô, (1862)

24 de setembro de 2025

Les mots et les notes

  
           TRIANGULAÇÕES           

1. Cora Vaucaire, «Trois petits mots de musique», Henri Colpi & Georges Delerue (1961)   2. Yves Montand, «La chansonnette», Jean Drejac & Philippe Gerard (1966)                      3. Charles Dumont, «Une chanson» (1976)

Três pequeninas notas de música partiram à desfilada para os abismos da memória, abrandaram a melodia, viraram a página e adormeceram. Assim cantava e encantava Cora Vaucaire, la Dame blanche de Saint-Germain-des-Prés, no início dos anos 60, para quem a via, ouvia, aplaudia e pedia encore.

Descontente com um silêncio tão prolongado, Yves Montand, The Latin Lover, anunciou no final da década, como voz provocante, figura insinuante e presença sedutora, que o lá, lá, lá, como um três vezes nada, estava de volta nos versos duma mera cançoneta, até então perdida nas pedrinhas da calçada.

A concluir a triangulação anunciada, Charles Dumont, le Baron de la chanson française, afirma, no derradeiro quartel do segundo milénio a caminho do terceiro, que uma canção não é mais do que um punhado de coisa nenhuma, o calafrio titilante do champanhe, que mal dura um instante sem sentido numa estação.

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Se, como se diz, uma imagem vale mais do que mil palavras, podemos perguntar com quantas notas se pode compor uma melodia. Depois, tentar saber de quantas palavras e notas precisamos para escrever uma cantiga, canção ou cançoneta, como as utilizadas na tríada acima referidas e podemos ouvir aqui, aqui e aqui.

18 de setembro de 2025

Un balcon de l'Armor à Bourg-l'Évêque

                           Le bourg-l'Évêque à Rennes                           

Petits-déjs d'été au pays rennais...

No coração da antiga Roazhon, ergue-se um dos mais emblemáticos edifícios da capital bretã, o Armor (bret. ar mor = port. «o mar»). Do alto do 6.º andar do apartamento da minha amiga Gigi, admirei pela primeira vez a globalidade do antigo quarteirão do Bourg-l'Évêque, limitado pela rua de Brest nos subúrbios da cidade.

O verão de 77 foi particularmente quente, permitindo-nos tomar as refeições na larga varanda panorâmica do prédio, tal como faríamos numa esplanada de café. Destaco sobretudo os pequenos-almoços, já que durante o resto do dia se piquenicava ao ar livre num prado verde do pays rennais ou numa praia à beira-mar.

Recordo-me do odor inebriante do café acabado de fazer e do sabor particular dos craquelans, brioches ou croissants que alternavam entre si, bem como a presença fiel duma baguette artesanal bem crocante, barrados uns e outros com uma compote reine-claude ou uma dose generosa de beurre salé de Guérrande.

Com um Guide Vert aberto e um mapa Michelin sobre a mesa daquele balcão sobre o Bourg-l'Évêque, traçávamos cada manhã os itinerários de descoberta do BZH (a sigla bê-zed-hache da histórica Breizh). Bosques, costas, campos e mares dos departamentos ducais de Ille-et Vilaine, Côtes-d'Armor, Finistère et Morbihan.

Cela fait plus de deux ans que je n'ai pas visité la Bretagne. La compagnie de mes copains et copines bretons me manquent de plus en plus. Il faut absolument les revoir aussi tôt possible. Cela fera un demi-siècle que nous nous sommes rencontrés, une date qui ne peut rester sans être célébrée. Voilà, ça y est !

Brioche - Craquelans - Baguettes - Croissants
Beurre salé - Compote Reine-Claude - Tasse à café

12 de setembro de 2025

Murasaki Shikibu, a história do Hikaru Genji, o Príncipe Brilhante

どの天皇様の御代であったか、女御とか更衣とかいわれる後宮がおおぜいいた中に、最上の 貴族出身ではないが深い御愛寵を得ている人があった。最初から自分こそはという自信と、親 兄弟の勢力に恃む所があって宮中にはいった女御たちからは失敬な女としてねたまれた。その 人と同等、もしくはそれより地位の低い更衣たちはまして嫉妬の焔を燃やさないわけもなかっ た。夜の御殿の宿直所から退る朝、続いてその人ばかりが召される夜、目に見耳に聞いて口惜 しがらせた恨みのせいもあったかからだが弱くなって、心細くなった更衣は多く実家へ下がっ ていがちということになると、いよいよ帝はこの人にばかり心をお引かれになるという御様子 で、人が何と批評をしようともそれに御遠慮などというものがおできにならない。御聖徳を伝 える歴史の上にも暗い影の一所残るようなことにもなりかねない状態になった。高官たちも殿 上役人たちも困って、御覚醒になるのを期しながら、当分は見ぬ顔をしていたいという態度を とるほどの御寵愛ぶりであった。唐の国でもこの種類の寵姫、楊家の女の出現によって乱が醸 されたなどと蔭ではいわれる。今やこの女性が一天下の煩いだとされるに至った。馬嵬の駅が

O cume das letras japonesas de sempre é tido, por muitos, como o romance mais antigo de todos. Outros, mais contidos, preferem vê-lo como uma das obras matriciais da ficção universal, gizadas pela verve criativa humana, ou, apenas, candidata a primeiro conto, novela ou romance do mundoTeria, também, as caraterísticas dum relato psicológico traçado à sombra duma saga familiar semi-histórica, oriunda do Império do Sol Nascente durante a vigência do período Heian (794-1185). Esse feito notável deve-se ao pincel de escrita da dama de honor da corte imperial conhecida por Murasaki Shikibu (973/978-1014/1031), que numa dezena de anos compôs os 54 livros, rolos ou manuscritos de extensão variável d'O Romance do Genji (c. 1005-1014), traçados com elegância e arte em carateres silábicos kana.

Tomei conhecimento deste relato monumental nas páginas iniciais redigidas pelo ensaísta britânico Felipe Fernández-Armesto, no não menos volumoso Milénio. A história dos últimos 1000 anos (1995), mas só agora tive a ocasião de o ler parcelarmente na versão portuguesa da Relógio d'Água. Esta visão incompleta reside no facto da editora se ter limitado a publicar em dois tomos os 33 capítulos da Parte I do texto, designado «Esplendor», sem clarificar se estará ou não previsto nos seus projetos imediatos dar à estampa os 21 capítulos remanescentes da Parte II, constitutivos da apelidada «Impermanência» e dos «Livros de Uji». Seria uma boa iniciativa editorial, a fim de termos um conhecimento integral de todos os pormenores do percurso existencial do Hikaru Genji, o Príncipe Brilhante, e da linhagem por si gerada, bem como da totalidade das 795 waka, poemas de 31 sílabas, adaptados à poética portuguesa distribuídos predominantemente por estrofes de cinco versos de redondilhas menores/maiores, numa aproximação vizinha da métrica originalPedir um pouco mais, seria ainda incluir algumas das 80 ilustrações resistentes à voragem dos anos alusivas aos eventos abordados neste imenso prosímetro de intrigas políticas, aventuras amorosas, a sensualidade e o refinamento duma escrita feminina produzida num ambiente cortesão de ócio generalizado.

Um passar de olhos rápido pela estrutura deste «romance» nipónico permite-nos observar, ato contínuo, o quanto se afasta da tessitura narrativa helénica estabelecida mil e tal anos antes por Cáriton de Afrodísias no Quéreas e Calirroe (séc. I EC), este, sim, o mais antigo relato romanesco completo que até nós chegou, precedido dos fragmentos dispersos de muitos mais. De facto, se cotejarmos os amores constantes e aventuras peregrinas vividos pelo jovem casal de protagonistas gregos do período alexandrino, apercebemo-nos de imediato o quão distantes se encontram dos amores fugazes, frívolos e inconstantes do herói central da efabulação japonesa, fruto das fartas paixões efémeras, libertinas, volúveis, irrefletidas, adstritas aos padrões tolerados pelo clã Fugiwara, cujos membros se haviam tornado nos autênticos senhores do país. No contexto histórico em que são plasmados os factos reais/imaginários convocados, tanto no modelo ocidental como no oriental, permite-nos aceitá-los como naturais, que culturas diametralmente opostas poderiam gerar testemunhos logicamente distintos.

Malgrado o caráter inacabado já referido desta versão, assinale-se o cuidado tido na sua tradução e lançamento no mercado para um público comum, pouco familiarizado com um universo de referências civilizacionais tão distante do nosso. Nestes termos, destaque-se a importância crucial desempenhada pelo prefácio, anexos e notas, para entender melhor os sentidos obscuros deste monogatari, i.e., desta «narrativa de coisas», vertido por comodidade verbal no termo romance registado no título do livro. É através destes auxiliares de leitura ou guias de viagem pelo entorno histórico de imperadores e imperatrizes, de príncipes e princesas, de altos dignitários, de damas e cortesãos, que penetramos neste macrocosmo sofisticado de subtis perfumes, refinados trajes, singulares cores, de festas, certames, festivais, cerimónias e ritos mil, onde o gosto pela pintura, poesia, música, dança, literatura, arquitetura, educação e religião se estiram ao longo dum número desmedido de manuscritos elegantemente caligrafados para o porvir. A história do Genji, a apelação honorífica atribuída ao filho dum soberano, a quem é recusado o estatuto de shinnô ou Príncipe de Sangue. Este o tal romance que relata a saga do fundador (gen) duma nova linhagem (ji) de senhores, súbditos e descendentes do clã (uji), iniciado pelo herói central desta crónica medieval nipónica milenar.


EPÍGRAFE
«Houve uma pessoa que foi favorecida por Deus. Desde o início, ela confiou em si mesma e no poder dos pais e irmãos, e as senhoras que entraram na corte invejaram-na por ser uma mulher desrespeitosa. Não havia como as outras pessoas que estavam no mesmo nível daquela pessoa, ou até mesmo em status inferior, não sentirem as chamas do ciúme. Pela manhã, quando se retirou do serviço noturno no palácio, e na noite em que foi o único a ser convocado, muitos deles voltaram para a casa dos pais, com o corpo enfraquecido pelo rancor que ouvira com os olhos e ouvidos, e o coração enfraquecendo. Quando se trata de pessoas que tendem a curvar-se, o Imperador parece estar completamente atraído por essa pessoa, e não importa o quanto as pessoas o critiquem, ele não se consegue conter. A situação chegou a um ponto em que existe a possibilidade de que permaneça uma sombra escura na história que transmite as virtudes sagradas. Ele era tão querido que os altos funcionários e altos funcionários ficaram preocupados e decidiram fechar os olhos por enquanto, esperando que ele acordasse. Diz-se a portas fechadas que mesmo na Dinastia Tang, o aparecimento deste tipo de princesa favorita, uma mulher da família Yang, causou uma rebelião. Esta mulher passou a ser considerada o pior incómodo do mundo. A Estação Mabeng pode ser recriada a qualquer momento.»
Murasaki Shikibu, O romance do Gengi (c. 1005-1014)

6 de setembro de 2025

Silêncios em contracorrente

Joseph Ducreux, Le silence (1790)
[Nationalmuseum, Stockholm]

O n . z e . n á . r i . O

A palavra é de prata, o silêncio é de ouro...

Grito em silêncio histórias discretas para serem ouvidas no mais absoluto sossego por um ouvinte avaro de frases ditas ou escritas.  

Registo pausas entre notas musicais para serem sentidas em silêncio nas entrelinhas duma partitura composta num qualquer andamento.

Persigo os claro-escuros barrocos das palavras lidas ou olhadas em silêncio no jogo dinâmico das sombras e luzes que lhes dão vida.

Desenho com abertos e fechados a rede infinda numa constante magia tecida em silêncio na divisa indelével entre o tudo e o nada.

Digitalizo no intervalo dos dias e das noites um anuário contido de mutismos vozeados e calados em contracorrente até ao silêncio final.

Joseph Ducreux, Le discret, 1790

2 de setembro de 2025

Gustave Flaubert, três histórias noveladas em forma de conto

« Il s'appelait Loulou. Son corps était vert, le bout de ses ailes rose, son front bleu, et sa gorge dorée. » Un cœur simple
« "Maudit ! maudit ! maudit ! Un jour, cœur féroce, tu assassineras ton père et ta mère !" » La légende Saint Julien l'Hospitalier
« "Je veux que tu me donnes dans un plat... la tête... " Elle avait oublié le non, mais reprit en sourriant : " La tête de Iaokanann !" » Hérodias
Gustave Flaubert, Trois contes (1877)

Quando um papagaio serve de ponto de partida para compor um romance-ensaio sobre um dos autores-charneira mais significativos do romantismo/realismo europeu, as expetativas criadas serão no mínimo singulares. Julian Barnes deveria saber que a leitura do Flaubert's' Parrot (1984), publicado em inglês na reta final do século passado, nos remeteria para a obra maior do ficcionista-ficcionado dada à luz em francês pelo biografado na segunda metade da centúria anterior. Falo por mim, que dei uma vista de olhos por toda e já comentei aqui uma delas. Preparo-me agora para fazer o mesmo com uma outra, repartida por Trois contes (1877) e lançada por vezes como uma nouvelle de Gustave Flaubert: «Un cœur simple», «La légende de Saint Julien l'Hospitalier» e «Hérodias».

O painel inicial do tríptico novelesco abre com a história de Félice, obrigada a trabalhar como assalariada nas quintas do país natal, por ter perdido os pais muito cedo e as irmãs não terem meios para a sustentar. Depois de algumas experiências pouco felizes em duas quintas da região, acaba por se instalar como criada para todo o serviço em casa de Mme Aubain, uma viúva da pequena burguesia rural normanda de Pont l'Évêque, onde permanece meio século até à morte. A banalidade deste longo percurso existencial subalterno tem poucos episódios particularmente extraordinários para serem trazidos aqui. A sua leitura nas páginas originais deste Coração Simples fá-lo-ão naturalmente dum modo muito melhor. Excetuo a referência a Loulou, o tal papagaio que trouxe até à descoberta feliz desta coleção.

A tela central troca a época contemporânea do autor pela medieval geradora da Lenda de São Julião Hospitaleiro, um santo de origem duvidosa, nado em data incerta e local impreciso. O realismo ubíquo no conto anterior é trocado pela liberdade fantasiosa do maravilhoso puro, próprio do imaginário católico com raízes fundas no cristianismo primitivo. Os oráculos/previsões saídos dos sonhos, alucinações e visões referidos na tessitura narrativa, experenciados pelos pais do biografado e protagonista do relato, contribuem para desenhar essa conexão genérica. O cenário propício à presença do milagre com direito a canonização popular materializa-se na conversão penosa dum grande senhor criado num castelo, no meio dos bosques, na encosta duma colina, a um pobre mendigo sem poiso certo onde ficar ou pernoitar num qualquer casebre encontrado no meio da natureza, sempre preparado para dar prestar os seus préstimos hospitaleiros sempre que alguém o necessitasse.

A cabeira tábua pintada com palavras recua até aos tempos bíblicos em que Herodes Antipas exercia o poder na Palestina como tetrarca da Galileia e da Pereia. O episódio ficcionado está ancorado na esfera histórica que levou à decapitação de Iaokanann, o nosso São João Batista, a pedido de Salomé, a filha de Herodes Agripa I, rei da Judeia, e de Herodíade, a instigadora da execução e doadora do nome ao conto. As críticas cerradas do primo martirizado de Jesus de Nazaré, a complexidade do quadro geopolítico judaico-romano que então se vivia e as intrigas palacianas de partilha do poder nutrida na citadela de Macareus conferem os ingredientes necessários para urdir uma trama suficientemente densa para dar corpo à exposição diegética e rematar a novela tripartida de contos.

Lidos os romances, contos/novelas e ensaios, fica-se com a vontade de visitar os locais de peregrinação literária focados nos livros. Voltar a atravessar a Normandia para olhar com olhos de ver todo o pays pontépiscopien, por onde Flaubert passou grande parte da vida e transferiu para as páginas do coração simples parcelas relevantes da sua própria existência. Nesse percurso, passaria forçosamente pela igreja de Caudebec-en-Caux e pela catedral de Rouen, para admirar os vitrais do lendário São Julião Hospitaleiro, inspiradoras do relato intermédio da coletânea. Nessa vontade de viajar pelos cenários revelados pela literatura, dar um pulo às ruínas da fortaleza de Macareus, erigida nas costa oriental do Mar Morto, se o clima de paz por ora inexistente o permitisse. Projetos viáveis à espera dum plano eficaz para os realizar. Que fiquem entretanto os itinerários reais sugeridos pelos heróis da imaginação.