5 de dezembro de 2025

Almeida Garrett no rasto bibliográfico de Luís de Camões

«A índole deste poema é absolutamente nova; e assim não tive exemplar a que me arrimasse, nem norte que me seguisse Por mares nunca d'antes navegados

«Onde jaz, Portugueses, o moimento
Que do imortal cantor as cinzas guarda?
Homenagem tardia lhe pagastes
No sepulcro sequer... Raça d’ingratos!
Nem isso! nem um túmulo, uma pedra,
Uma letra singela! - A vós meu canto,
Canto de indignação, último acento
Que jamais sairá da minha lira,
A vós, ó povos do universo, o envio.
Ergo-me a delatar tamanho crime,
E eterna a voz me gelará nos lábios.
Lira da minha pátria onde hei cantado
O lusitano - envilecido - nome,
Antes que nesse escolho, em praia estranha,
Quebrada te abandone, este só brado
Alevanta final e derradeiro:
Nem o humilde lugar onde repoisam
As cinzas de Camões, conhece o Luso.»

Dizem os manuais literários ter o Romantismo sido introduzido entre nós precisamente 200 anos. O feito é atribuído a Almeida Garrett, ao publicar anonimamente, na Livraria Nacional e Estrangeira de Paris, o poema lírico-narrativo de feição anticlássica CamõesO grande vulto das letras portuguesas oitocentistas encontrava-se à data exilado na capital francesa, perseguido pelo regime absolutista então vigente no país, explicando assim o caráter assumidamente clandestino da editio princepsvendida por subscrição pública, como sendo uma obra proibida dum autor proscrito. O prefácio que a acompanhava referia ter sido redigida em janeiro do ano anterior, impressa nos dois meses seguintes e saído dos prelos em forma de livro a 22 de fevereiro de 1525. Todavia, a visibilidade dos dez cantos em verso branco e notas clarificadoras, inspirados na etapa final de vida do aedo épico d'Os Lusíadas, só seria alcançada em datas  posteriores, correspondentes às reedições de 1839, 1844 e 1854, todas elas revistas e alteradas profusamente pelo seu criador.   

«A ação do poema é a composição e publicação dos Lusíadas; os outros sucessos que ocorrem são de facto episódicos, mas fiz por os ligar com a principal ação»Assim resume o jovem bardo em poucas palavras preambulares o tecido diegético orientador da sua crónica camoniana. Poucas mais poderíamos registar sem correr o risco de entrar abusivamente no corpo poético do testemunho prestado ao urdidor do livro matricial maior das letras nacionais. Digamos, mesmo assim, tratar-se de duas histórias paralelas, fautora da aproximação simbólica do destino nefasto de Camões do de Garrett. O primeiro, ao regressar pobre a um país em crise profunda, em via de se perder na aventura insana de Dom Sebastião em Alcácer-Quibir (1578). O segundo, na condição de exilado na Europa, por motivos políticos provocados pela Vilafrancada (1823), a insurreição liderada pelo infante rebelde Dom Miguel.

Continuando sem abusar do transcrição de extratos mais ou menos longos de Garrett, é difícil de evitar a transcrição da declaração de princípios genéricos documentada na prefação à edição inaugural da obra, quando averte os potenciais leitores: «Não sou clássico nem romântico; de mim digo que não tenho seita nem partido em poesia (assim como em coisa nenhuma) e por isso me deixo levam minhas ideias boas ou más...». E assim terá feito, quando substitui o número fixo de versos por estrofe pelo variável do chamado parágrafo poético. A revolta individual do versejador contra as regras típicas do nova escola literária marca assim a sua presença não se inibindo, porém, de seguir o princípio isométrico da sucessão regular de decassílabos heroicos não rimados. Neste compromisso de conciliar a tradição greco-latina desenvolvida n'Os Lusíadas com as nascentes tendências europeias ensaiadas no Camões, o seu arquiteto imprime ao Poema o aspeto formal duma epopeia clássica com um conteúdo nacional romântico.

Entre as muitas tiradas pessoais dum eu enunciativo, proferidas por um narrador extradiegético identificado com o próprio autor, e um outro eu poético atribuído ao herói épico ficcionado, a evocação das vidas similares dum e doutro, conduz-nos do primeiro ao derradeiro verso do texto semifactual/semifantasista, com um relevo muito especial para todos as prefações e notas de rodapé e final de livro. No ano em que se celebram os 500 anos do nascimento de Luís de Camões, não deixa de ser curioso associá-lo ao bicentenário da publicação da obra que abriu as portas ao Romantismo literário no nosso país. Almeida Garrett não deixou nenhum escrito explícito a assinalar a coincidência destes dois eventos, a vinda ao mundo do Poeta em 1525 e a publicação do Poema a si dedicado em 1825. Mas, mesmo assim, não será demais assinalá-la agora, quando mais não seja para relembrar, através das letras, a memória de ambos, e enviá-la depois lá para o Parnaso, onde residem com toda a honra e glória merecidas.       

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