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BORRACHA DE APAGAR |
Sussurram-me amiúde memórias antigas que o tempo não borrou ter havido entre nós o costume de deitar janela fora os trastes velhos na Noite de São Silvestre. Lembro-me de nos meus verdíssimos anos há muito amadurecidos de menino e moço o ter feito em casa dos meus avós maternos. A rua estreita dita da mercearia do Swing ou da barbearia do Fala-Baixo ficava, então, pejada duma miríade infinda de fragmentos de vidro e de louça quebrada que os almeidas de serviço se viam obrigados a limpar nos dias seguintes.
Ao que parece, o ritual de despejar as inutilidades acumuladas em casa para a via pública também foi usual em terras italianas, como se pode ver numa cena levada ao grande ecrã por Giuseppe Tornatore no Cinema Paradiso (1988). Vá-se lá saber se terá resistido de pedra e cal à voragem dos tempos e não terá sido substituída por outras práticas mais ecológicas de celebrar a passagem do Ano Velho para o Ano Novo, que se deseja um Ano Bom. Bater tampas de tachos e panelas em vez de os lançar para o meio da rua.
Todo este folclore urbano passou à história. Os maus espíritos são agora espantados com fogos de artifício colossais e festivais de música estridente. As luzes e estrondos esvaem-se de vez e volta tudo ao que sempre foi. O render da guarda do que já foi para o que será é como a borracha escolar de duas cores. A vermelha apaga as marcas superficiais, a azul raspa o papel mas deixa sempre um vestígio indelével atrás de si. É que as palavras depois de ditas pela boca fora não se podem engolir para as fazer desaparecer.
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| TAMPAS DE BATER |


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