Gil Vicente, Exortação da guerra. Lisboa: Edições Vercial, 2010 |
Oh, deixai de edificar | tantas câmaras dobradas, | mui pintadas e douradas, | que é gastar sem prestar! | Alabardas, alabardas! | Espingardas, espingardas! | Não queirais ser genoeses, | senão muito portugueses | e morar em casas pardas.Gil Vicente, Exortação da guerra (1513: III, clix, 404-412)
A dar crédito nas didascálias preparadas por Luís Vicente na Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente (1562), a tragicomédia Exortação da guerra teria sido representada ao mui alto e nobre rei D. Manuel I de Portugal, na cidade de Lisboa, por ocasião da partida para Azamor do ilustre e mui magnífico senhor D. Jaime I, duque de Bragança e Guimarães, corria então a era de 1514. Informação preciosa que nos permitiria celebrar, com toda a pompa e cerimónia exigidas, uma efeméride com meio milénio de existência. A história, todavia, apressa-se a afirmar que o embarque para a tomada de mais uma praça do reino do Algarve de além-mar em África se realizou a 15 de agosto de 1513, tendo a batalha sido travada a 28 e 29 seguintes e a entrada vitoriosa do conquistador ocorrido no primeiro dia do mês de setembro. Pequena incorreção que o filho do dramaturgo terá cometido à distância dos anos e que as edições modernas da obra têm vindo a retificar, sem dar grandes explicações sobre o facto.
Maria Velho da Costa deixa de parte o argumento da peça quinhentista e apropria-se duma das suas estâncias mais conhecidas para dar o título a um romance, as Casas pardas (1977). Os nove versos selecionados são ainda transcritos na íntegra em forma de epígrafe inicial na ficção, mas identifica-os como tendo sido pronunciados por uma qualquer personagem vicentina do Auto da Lusitânia (1532). O criador do teatro português volta a ser vítima dum trato de polé descarado. Aquele que transforma um incitamento à guerra patriótica contra os mouros numa farsa palaciana composta para celebrar o nascimento do príncipe D. Manuel, malogrado herdeiro de D. João III de Portugal e de D. Catarina de Áustria. Para a compreensão do texto mais recente, pouca importância têm as coordenadas exatas da fonte revelada. As guerras são outras. Fala-nos dos últimos momentos de vida do império fundado pelos soberanos da Casa de Avis e em queda livre nos tempos ditatoriais do apregoado Estado Novo. Os claros-escuros de luminosidade ondulante fundem-se num cinzento absoluto para descrever o país dos brandos costumes, o tal reino cadaveroso de paz podre no terrunho natal e de pelejas perdidas em terra alheia.
José Saramago também se deixa contaminar pela força das armas documentadas na estância vicentina em apreço, para dar nome a um outro romance. Inspira-se para tal nos versos centrais da mesma e envereda por um compósito e sugestivo Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas. Compôs uma escassa vintena de páginas, tomou notas sobre a trama a desenvolver e um dia deixou de escrever e não falou mais no assunto. Terá legado à imaginação dos leitores o acabamento da história. Quem sabe. As últimas palavras manuscritas do escritor já foram transformadas em forma de letra impressa. Dizem os mass media nacionais que a edição portuguesa passou a ocupar o lugar em todas as livrarias do país. Hoje, dia 23 de setembro de 2014. Nem mais nem menos. Falta-me confirmar a veracidade da notícia. Dentro de muito pouco tempo vou tirar a prova dos nove. Resisti à tentação de ler os parágrafos iniciais da obra inconclusa, publicadas na imprensa como rastilho publicitário de pré-lançamento. Sei mesmo assim tratar-se dum ensaio antibélico e que o protagonista se chama artur qualquer coisa. Um dia destes ainda regresso aqui para tirar as dúvidas a limpo e dizer um pouco de minha justiça. Vontade não me falta.
Confirmo que o romance incompleto de Saramago lá estava à minha espera na primeira livraria que encontrei pelo caminho. Tudo leva a crer que o mesmo se tenha passado um pouco por toda a parte. A edição é acompanhada por textos por Fernando Gómez Aguilera e Roberto Saviano. Um espanhol e um italiano a demonstrarem a universalidade do escultor português de palavras. É ainda profusamente ilustrado por Günter Grass, intelectual, romancista, dramaturgo, poeta e artista plástico alemão. Assim reza a entrada a Wikipedia, sempre pronta a ajudar uma pesquisa imediata e sem grandes exigências académicas. Parte das alabardas e a totalidade das espingardas desaparece da capa para depois reaparecerem nas páginas interiores do livro, respeitando assim a vontade expressa pelo autor nas notas do caderno que lá foi compondo enquanto pôde e são agora confiadas aos leitores. O protagonista dá pelo nome de artur paz semedo, registado com minúsculas na primeira frase da fábula e em maiúscula na contracapa do volume que a alberga. A leitura atenta das Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas (2010 | 2014) segue já de seguida.
ResponderEliminarRomances que se vão acumulando na minha lista até ter a oportunidade de os ler... Entretanto, o facto de se tratar de um ensaio antibélico aguça mais a minha curiosidade. Isto porque a característica humana de andar sempre em guerra contra o seu próximo, antanho para conquista de terras fronteiras ou longínquas na posse de outras raças, hoje por questões de poderio económico e/ou religioso, mas sempre por questões de domínio político-económico, me causam um mal estar bem agudo... É inegável que o caos impera entre os humanos - e as notícias atuais atiram-nos com ele na cara todos dias! -, mas teima a esperança de um mundo melhor, sem violências gratuitas, já que outras soluções haveria... Utopia, quiçá, mas é o sonho que comanda a vida!
ResponderEliminarVou ler de certeza. Esta semana comecei a ler «As Intermitências da Morte» e já se está a candidatar a um dos meus favoritos. A ironia do Saramago é um bálsamo.
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