«E muitas vezes relembrava o episódio do grande chefe jaga cujo machado tinha um punho com ouro apanhado a sul de uma baía chamada da Torre ou das Vacas. Aí não havia brancos nem caçadores de escravos. Mas como chegar tão longe? | Há visões que entram na cabeça das pessoas, inadvertidamente. | Foi como a de uma baía larga de mato rasteiro e calmas águas, dominada por um morro com forma de chapéu largo, um sombreiro.»Pepetela, A sul. O sombreiro (2011)
O romance histórico está na moda. Parece que os demiurgos de tramas virtuais necessitam da ajuda de tramas reais para urdirem as raias ideais do verosímil. As personalidades de que a memória guardou um registo coletivo são revestidas com a máscara dramá-tica da fantasia e travestidas em personagens de faz-de-conta. Hipócritas lhes chamavam os gregos e lá teriam as suas razões. Pepetela pega numa mão cheia de vultos sonantes dos anais oficiais regidos pela musa Clio, põe-nos a contracenar com a outra mão repleta de figurantes anónimos de existência plausível e brinda-nos com um A sul. O sombreiro (2011), título algo obscuro para narrar partes da vida de Manuel Cerveira Pereira, o conquistador de Benguela, considerado desde a primeira frase como um filho de puta, o maior que alguma vez terá pisado aquele solo. Opiniões não se discutem e as palavras têm afinal o peso que lhes quisermos atribuir, convencionais todas elas e feitas à medida do ocasião.
Independentemente da opinião que os povos tenham erigido em torno da figura controversa do antigo capitão-general do Reino de Angola, dos seus antecessores e sucessores imediatos no cargo, heróis ou anti-heróis encartados, bem como doutros figurões mais que as crónicas seiscentistas tiveram o cuidado de preservar ou esquecer para sempre, convém averbar que o relato se ocupa de muitas outras minudências, ancoradas nos pretéritos tempos da Monarquia Dual ibérica luso-castelhana. Reinava então entre nós Filipe II de Portugal e III das Espanhas, soberano todo-poderoso do primeiro império global. O tal onde o sol nunca se punha. A ação decorre no litoral oceânico da então designada Etiópia Ocidental, situada entre o senhorio da Guiné e os reinos do Loango, Kongo e Ngola. Os eventos convocados estão focados nos sucessos protagonizados por africanos, brasileiros e europeus, por brancos, negros e mulatos, uma mescla de cores, etnias e convicções religiosas, todos eles encarniçados na criação das fronteiras duma nova ordem mundial, aquela que volvidas quatro centúrias chegou até aos nossos dias e ainda anda por aí a experimentar soluções definitivas sempre adiadas.
Os eventos evocados são exibidos a várias vozes, umas mais audíveis do que outras, como costuma acontecer numa acalorada cavaqueira de indivíduos ansiosos com palavras urgentes para dizer. Encontro de culturas e debate de ideias. A revelarem que nas relações humanas o bem e o mal são inseparáveis, como o verso e o reverso duma mesma moeda. Os modelos perfeitos pertencem ao universo da utopia. As tradições seculares fabricadas em espaços e tempos desencontrados é que erguem as balizas intransponíveis entre o certo e o errado. Paraísos e infernos terrestres sem lugar a purgatórios celestiais. Só quando as olhamos de perto nos damos conta que as intrigas, vinganças e violências são universais. O imperialismo, a escravatura e o racismo fazem parte da natureza do homem na sua totalidade. O hipotético descendente mestiço de Diogo Cão é tido como um negro com trajes de branco. O governador português é dado como um branco vestido de preto. O hábito lá vai fazendo o monge de quando em vez, a ponto dum nativo africano educado por colonos europeus ser visto como um branco de cor preta. As botas altas e um chapéu de abas largas ditaram-lhe a cor efetiva com que é esguardado pelos outros.
O tráfico de gentes, armas e minas atravessam o senhorio da conquista, navegação e comércio do triângulo atlântico do mar oceano português. E nestas travessias geoestratégicas entre três continentes, neste vai-e-vem incessantemente repetido, brotou, medrou e finou um império. Sobreviveu, todavia, uma língua comum, reinventada todos os dias há mais de oitocentos anos, quinhentos dos quais a nível planetário. Pepetela atualiza-a nesta crónica atual de eventos pretéritos, nesta ficção de feitos centrados numa cidade meridional com pretensão a reino, dominada por um morro com forma de chapéu largo ou sombreiro. Fá-lo à sua maneira. Com aquele aroma exótico e sabores desconhecidos, temperado com iguarias nunca vistas ou tocadas. Sinestesias verbais em forma de rimance. O novo mundo descoberto a sugerir percursos alternativos ao velho mundo a descobrir. Poesia em prosa. Origem, raiz e pátria deste nosso tagarelar quotidiano. Uma lufada de ar fresco espalhado pelos quatro cantos da terra.
Gostei imenso deste romance de Pepetela, cuja escrita me seduz pela frescura tropical que percorre as suas páginas. Gosto de romances históricos pois trazem-nos factos reais ignorados, esquecidos em arquivos cobertos de pó, e pelo reinventar de histórias sobre os feitos de homens bons e maus, numa mescla que o caos que rege a humanidade produz. Pepetela é um autor profícuo que domina a língua portuguesa, que apimenta com o léxico angolano numa simbiose sedutora. Escreve sobre temas variados, como os costumes do povo angolano e a guerra civil no seu país natal.
ResponderEliminar"..a fronteira entre a verdade e a mentira é um caminho no deserto", escreve Pepetela no final de Mayombe. Concordo com ele, pelo que, na impossibilidade de conhecer a veracidade das relações humanas, mormente ao nível superior de raças, me fico pelo deslumbramento da leitura das suas histórias tão bem engendradas.