Natureza viva...
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Nada melhor do que escolher o último dia de férias para falar das
leituras de férias. Colocar três delas lado a lado e fazer a conta-corrente das
impressões de viagem que o seu convívio de semanas me proporcionou. Exóticas no
seu todo. A cheirar a terra e a mar. Pejadas de história com histórias dentro. Ecos
multisseculares de convívio musculado. Aguerrido, quezilento, brigão. Um trato
revelado na língua comum mais falada no hemisfério sul.
Passamos
o olhar pelas palavras feitas de letras e ouvimos os heróis que as povoam a
contar-nos as suas vidas como se nos conhecêssemos há uma eternidade. Esse o
principal segredo da literatura. Fazer de cada leitor um confidente de
histórias fingidas como se fossem verdadeiras. Um cúmplice incondicional. As
estremas entre umas e outras desaparecem do horizonte e deixam campo livre à
imaginação.
Depois
as páginas que nos falam aos ouvidos chegam ao final do seu percurso e
obrigam-nos a travar um diálogo silencioso com os amigos que vimos partir e
ainda mantemos entre mãos. Até podemos partilhar com os outros essas tais
emoções de trajeto mas o efeito do primeiro contacto desfaz-se. Ninguém lê um
livro da mesma maneira. Ninguém vê o mundo do mesmo modo. As subjetividades
envolvidas impedem-no.
Os
três autores convocados lidam com a língua portuguesa como poucos. Todavia
fazem-no de modo distinto. Os registos angolanos de Pepetela e de José Eduardo Agualusa não se confundem com
os brasileiros de João Ubaldo Ribeiro. Cada um deles estabeleceu relações muito estreitas com a realidade
portuguesa. A colonial e a dos nossos dias. Em nada se confundem com o linguajar
europeu que conhecemos e praticamos no nosso dia-a-dia coloquial.
A lusofonia tem destas coisas espantosas. Une-nos a todos na diversidade
e divide-nos na unidade. Pena é que um manancial tão auspicioso nos ponha de
costas voltadas quando à nossa realidade cultural. Fazemos gala em ignorar-nos
uns aos outros. Como se o outro fosse o inimigo. Malhas que o império ainda
hoje tece aos meninos de sua mãe, que somos todos nós. O poeta que tinha no
português a sua pátria lá continua a ter as suas razões…
Três autores que muito me têm deliciado com as suas histórias bem originais escritas com palavras em ritmo tropical, numa recriação dialética sedutora. Palavras na língua de Camões e de Fernando Pessoa, na língua a que Amílcar Cabral se referiu como "a melhor herança do colonialismo”, defendendo que “a língua não é a prova de mais nada senão a prova dos homens se relacionarem”.
ResponderEliminarFolgo muito que te tenhas rendido à literatura africana de língua portuguesa, esperando que tenhas a oportunidade de ler brevemente o angolano Mia Couto, um humanista que muito nos toca com a sua sensibilidade, e o cabo-verdiano Germano de Almeida, um feliz contador de histórias crioulas, para citar apenas dois outros exemplos, uma vez que existem outros já galardoados em Portugal e no estrangeiro.
"Natureza viva" foi um sub-título inspirado... basta ler estes autores para sentir na pele a vida contida nas suas histórias, escritas com a paixão que nos apimenta a rotina dos dias.
O Mia Couto e o Germano de Almeida também virão um dia. Esses e muitos outros, que a língua comum de tantos povos tem sido pródiga na criação dos seus arautos. Mais de oitocentos anos de constante linguajar têm sabido inspirar várias mãos-cheias de escultores da palavra escrita e pintores da palavra dita. Agora ando no trilho dos memoráveis que andaram por aí a semear flores nos canos das espingardas e a dar qua falar ao mundo. Estou na companhia duma velha amiga nos livros de muitos anos. A lembrar-me que que todo começou com os prodígios dum sonho de futuros esperançosos. Estou a falar na Lídia Jorge, uma candidata de peso ao prémio Camões, se os académicos entendidos nessas lidas assim o entenderem. Já ia sendo tempo. A lusofonia, que ela cultiva como poucos, só teria a ganhar.
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