7 de setembro de 2014

Língua comum

Natureza viva...
Nada melhor do que escolher o último dia de férias para falar das leituras de férias. Colocar três delas lado a lado e fazer a conta-corrente das impressões de viagem que o seu convívio de semanas me proporcionou. Exóticas no seu todo. A cheirar a terra e a mar. Pejadas de história com histórias dentro. Ecos multisseculares de convívio musculado. Aguerrido, quezilento, brigão. Um trato revelado na língua comum mais falada no hemisfério sul.

Passamos o olhar pelas palavras feitas de letras e ouvimos os heróis que as povoam a contar-nos as suas vidas como se nos conhecêssemos há uma eternidade. Esse o principal segredo da literatura. Fazer de cada leitor um confidente de histórias fingidas como se fossem verdadeiras. Um cúmplice incondicional. As estremas entre umas e outras desaparecem do horizonte e deixam campo livre à imaginação.

Depois as páginas que nos falam aos ouvidos chegam ao final do seu percurso e obrigam-nos a travar um diálogo silencioso com os amigos que vimos partir e ainda mantemos entre mãos. Até podemos partilhar com os outros essas tais emoções de trajeto mas o efeito do primeiro contacto desfaz-se. Ninguém lê um livro da mesma maneira. Ninguém vê o mundo do mesmo modo. As subjetividades envolvidas impedem-no.

Os três autores convocados lidam com a língua portuguesa como poucos. Todavia fazem-no de modo distinto. Os registos angolanos de Pepetela e de José Eduardo Agualusa não se confundem com os brasileiros de João Ubaldo Ribeiro. Cada um deles estabeleceu relações muito estreitas com a realidade portuguesa. A colonial e a dos nossos dias. Em nada se confundem com o linguajar europeu que conhecemos e praticamos no nosso dia-a-dia coloquial.

A lusofonia tem destas coisas espantosas. Une-nos a todos na diversidade e divide-nos na unidade. Pena é que um manancial tão auspicioso nos ponha de costas voltadas quando à nossa realidade cultural. Fazemos gala em ignorar-nos uns aos outros. Como se o outro fosse o inimigo. Malhas que o império ainda hoje tece aos meninos de sua mãe, que somos todos nós. O poeta que tinha no português a sua pátria lá continua a ter as suas razões…

2 comentários:

  1. Três autores que muito me têm deliciado com as suas histórias bem originais escritas com palavras em ritmo tropical, numa recriação dialética sedutora. Palavras na língua de Camões e de Fernando Pessoa, na língua a que Amílcar Cabral se referiu como "a melhor herança do colonialismo”, defendendo que “a língua não é a prova de mais nada senão a prova dos homens se relacionarem”.
    Folgo muito que te tenhas rendido à literatura africana de língua portuguesa, esperando que tenhas a oportunidade de ler brevemente o angolano Mia Couto, um humanista que muito nos toca com a sua sensibilidade, e o cabo-verdiano Germano de Almeida, um feliz contador de histórias crioulas, para citar apenas dois outros exemplos, uma vez que existem outros já galardoados em Portugal e no estrangeiro.
    "Natureza viva" foi um sub-título inspirado... basta ler estes autores para sentir na pele a vida contida nas suas histórias, escritas com a paixão que nos apimenta a rotina dos dias.

    ResponderEliminar
  2. O Mia Couto e o Germano de Almeida também virão um dia. Esses e muitos outros, que a língua comum de tantos povos tem sido pródiga na criação dos seus arautos. Mais de oitocentos anos de constante linguajar têm sabido inspirar várias mãos-cheias de escultores da palavra escrita e pintores da palavra dita. Agora ando no trilho dos memoráveis que andaram por aí a semear flores nos canos das espingardas e a dar qua falar ao mundo. Estou na companhia duma velha amiga nos livros de muitos anos. A lembrar-me que que todo começou com os prodígios dum sonho de futuros esperançosos. Estou a falar na Lídia Jorge, uma candidata de peso ao prémio Camões, se os académicos entendidos nessas lidas assim o entenderem. Já ia sendo tempo. A lusofonia, que ela cultiva como poucos, só teria a ganhar.

    ResponderEliminar