«O sentir humano é uma espécie de calidoscópio instável [...] Burilar a frase é o mais importante nas comunicações entre os humanos.»
José Saramago, Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas (2014)
Foi publicado no passado mês de setembro o derradeiro romance de José Saramago, Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas (2014) e eu já o li todo. Levei algum tempo a fazê-lo, para assim adiar um pouco mais o momento inevitável de vislumbrar o definitivo ponto final do relato. É que, como foi noticiado pelos herdeiros e gestores do espólio literário do prémio Nobel português, trata-se da última ficção que ainda perdurava inédita. Agora só nos resta reler com olhos de ver a obra completa que nos legou, repartida pelos principais géneros dos universos da escrita.
Chegou inacabado, reduzido a três únicos capítulos e a cerca de cinquenta e seis páginas impressas em livro, generosamente ilustrado com desenhos de Günter Grass e acompanhado com dois ensaios de Fernando Gómez Aguilera e Roberto Saviano. É completado com um punhado de notas soltas registadas no caderno pessoal do autor, espaço privilegiado para delinear muito sucintamente as etapas de escrita a seguir no projeto de criação artística a que se propusera dar corpo e alma se a saúde lhe não faltasse, como acabou por faltar.
A história que até nós chegou é fácil de resumir. Aborda a temática do armamento, já anunciada no título selecionado, inspirado na tragicomédia de Gil Vicente Exortação da guerra. O belicista Artur Paz Semedo, contabilista na fábrica de material bélico Produções Belona SA, é incitado pela ex-mulher, a pacifista Berta/Felícia, a desenvolver um estudo comparativo dos negócios da empresa com a indústria da guerra durante os anos trinta do século xx e os atuais. A investigação preparatória é iniciada com sucesso mas os resultados ficam a meio. A tarefa de entrelaçar os fios da trama com os fios da urdidura é abandonada no tear e o remate da tapeçaria feita de palavras é entregue à imaginação dos leitores.
Lido o livro, deparamo-nos com uma epopeia em prosa lacunar que dispensa o maravilhoso explícito ou o realismo mágico. Está ancorado nas políticas vigentes patrocinadas pela deusa Belona, muito pouco interessadas em serem substituídas pelas políticas emergentes defendidas pela deusa Concórdia. Os conflitos armados mais marcantes da humanidade são convocados pelas instâncias narrativas e tomam conta da tessitura discursiva. As duas guerras mundiais, as guerras europeias dos 30 e dos 100 anos, os conflitos fratricidas travados entre israelitas e palestinianos, italianos e abissínios, bolivianos e paraguaios. E mais exemplos houvera se mais fábula houvera.
O pano de fundo da peça em cena é desenhado com os usuais catálogos épicos pensados à maneira homérica, mas em que os heróis aparentados com os deuses olímpicos é permutado pelos anti-heróis apadrinhados pelos deuses infernais. Nomes de ditadores e de atores, títulos de filmes e de vídeos, tipos de armas e de documentos, grupos de agressores e de agredidos. Questiona-se o porquê de nunca ter havido uma greve numa fábrica de armas. Referem-se casos de bombas que não chegaram a deflagrar e de operários fuzilados por terem sabotado obuses.
Visitam-nos a cada passo as memórias sangrentas da guerra civil espanhola d’O Ano da morte de Ricardo Reis (1984), a falta de visão global denunciada no Ensaio sobre a cegueira (1995), os ecos distantes dos arquivos carregados de morte de Todos os nomes (1997), os odores peculiares dos subterrâneos secretos d’A caverna (2000), a busca de pistas singulares investigadas n’O homem duplicado (2002). Gestas coletivas ou reflexões identitárias a caminharem lado a lado. Os ciclos da estátua e da pedra ligados duma assentada num mesmo texto, num mesmo propósito irónico de dar unidade poética ao corpus romanesco produzido.
O debate ideológico imaginado para ser travado pelos dois cônjuges desavindos ficou reduzido a um mero esboço de intenções anotadas no computador portátil do escritor. Sabemos que seria um relato de encontros falhados e desencontros firmados a que nem faltaria um remate exemplar. O livro terminaria com um sonoro «Vai à merda», desabafo imperativo da ex-mulher quando o ex-marido é posto a chefiar uma secção de armas pesadas. História humana lhe chama Saramago. História de corrupção lhe chamamos nós. História paradigmática dos nossos dias. Compra e venda vil de interesses. Lei desenfreada da oferta e da procura. O salve-se quem puder baseada na falência dos valores elementares que deveriam reger uma sociedade e não regem.
Li o livro de uma assentada, já que a trama me fazia presente a ironia fina do Saramago e o dedo de novo bem impresso sobre as idiossincrasias humanas. Este romance seria um dos que me encheriam as medidas, devido à denúncia de um tema pouco debatido pelos autores. Fiquei a imaginar o desenvolver do enredo, o mergulho na pesquisa que o autor nos revelaria sobre o mercado de armamento e a vil entrega dos humanos aos deus dinheiro. Lembrou-me imediatamente "Todos os nomes" e "O ensaio sobre a cegueira" e, afinal, encheu.me mesmo as medidas pois trouxe-me Saramago no seu melhor!
ResponderEliminarObrigada, Prof., por mais esta brilhante recensão, bem pedagógica!
Ainda não o li, mas anda na minha cabeça fazê-lo... Há pouco tempo, durante uma visita guiada à Universidade de Coimbra, uma das salas tinha uma parede decorada com uma colecção de alabardas... Lembrei-me logo de Saramago...
ResponderEliminarTenho o livro desde que saiu...Ainda não li ..pois para mim Saramago tem que ser lido...com tempo...e atenção. ..para não me perder e ter que voltar atrás. ..Mesmo assim acontece...mas não desisto...
ResponderEliminarSaramago como romancista de um livro com poucas páginas, inacabado, legando à imaginação dos leitores os acontecimentos finais da história e obrigando-os, como sempre, a reflexões profundas sobre a temática abordada, são tudo razões para me aguçarem a curiosidade de o ler.
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