LEVANTAR-SE-Á?Gravura do Zé Povinho publicada pelo jornal O António Maria a 6 de janeiro de 1881 |
Uma das singularidades da produção trovadoresca portuguesa deve-se à sua origem matricial fortemente popular, dividida entre o amor inocente das cantigas de amigo e o humor trocista das cantigas de escárnio e maldizer. A jornada tem sido longa e árdua, os trilhos seguidos duros de pisar, mas o cunho andarilho lusitano tem-se sempre regido por essa capacidade bipolar de celebrar a vida. A vertente irónica tanto elegeu a fragilidade emotiva dos afetos para esboçar finos motejos galantes, como endereçou a chacota burlesca da caricatura para atingir alvos ideais de uma crítica mais cáustica e assertiva.
A mordacidade de Rafael Bordalo Pinheiro apostou na sátira social e política de um país que viu no Zé Povinho a sua imagem de marca mais expressiva. As páginas d’ A Lanterna Mágica abriram-se, a figura saltou para o exterior, confundiu-se com a realidade e passou a representar-nos a todos nós. Até hoje. Já lá vão 135 anos de continuadas cumplicidades e parece que tudo continua na mesma. Os Fontes Pereiras de Melos e Serpas Pimentéis serão outros, os Meninos D. Luíses e os Santo Antónios terão mudado, os chicotes dos comandantes da Guarda Municipal terão sido actualizados, só a eterna crise das finanças nacionais se mantém inalterada, de pedra e cal. Em 1875 ou em 2010, o nosso aniversariante estará sempre a abrir os cordões à bolsa e a resolver os problemas que os outros criaram. Por isso se tem mantido embasbacado, a coçar a cabeça, de fato coçado e sem prestar atenção aos últimos gritos da moda.
A personificação maior do ser coletivo nacional não possui a compleição anafada do John Bull inglês ou o perfil esbelto do Uncle Sam americano, os dois representantes por excelência duma burguesia endinheirada e bem sucedida no mundo dos negócios das duas margens atlânticas. O Zé Povinho português não partilha a aristocracia rural do Don Quijote castelhano. Quando muito, aproxima-se da lhaneza labrega do Sancho Panza, o escudeiro rústico do Cavaleiro da Triste Figura. Só que a criação bordalina não precisa da sombra de nenhum fidalgo cervantino de meia-tigela para traçar o seu próprio perfil. Apareceu esporadicamente ao lado da Maria da Paciência para logo de seguida optar pelo celibato militante ou pelo abandono deliberado da dúbia consorte.
Ao invés dos pícaros peninsulares, com quem partilha muitos infortúnios e adversidades, o ícone luso não está confinado a uma só região, aquela que lhe deu nome à falta de um apelido familiar condigno ou liberto de qualquer tipo de bastardia herdada ou de marginalidade conquistada. Não é um José, Josezinho ou Zezinho de um qualquer Tormes, Alfarache ou Segóvia portugueses. Ele é o filho legítimo da arraia-miúda que se habituou a tratá-lo por Zé & Povinho. Tout court. Uma associação única e irrepetível. A maior nobreza que uma nação pode conferir a um cidadão.
Madrid, com o habitual sentido de oportunidade, quis usufruir do prestígio que os séculos dourados do classicismo castelhano lhe outorgaram e ergueu na Plaza de España as estátuas do Don Quijote e do Sancho Panza, o par desenhado com palavras por Cervantes no universo fictício dum romance. Lisboa seria incapaz de prestar a mesma homenagem ao Zé Povinho de Bordalo. Um tal projeto seria sempre entendido como uma brincadeira de mau gosto. A alternativa, então, talvez possa consistir em desafiar as Caldas da Rainha, a cidade que tanto ajudou a criar a figura, meta mãos à obra e concretize a ideia. Criadores de talento nunca faltaram na capital da arte em Portugal...
NOTA
Texto publicado há cerca de meia década no suplemento «Zé Povinho no Pais das Maravilhas. 135 Anos», publicado na Gazeta das Caldas, a 26 de junho de 2010 (p. 9). Dou-lhe agora uma nova vida virtual com pequeníssimas atualizações de forma que não de conteúdo, numa altura em que a pertinência crítica da sua presença continua tão atual como à data do nascimento.
Pobre Zé Povinho, sempre besta de carga para os pesados encargos que os déspotas lhe infligem. Apesar de ter aprendido a mandá-los ao bar da esquina com o seu conhecido gesto, ainda não conseguiu livrar-se da canga que lhe pesa ao pescoço...
ResponderEliminarFeliz análise sobre a criatividade de Rafael Bordalo Pinheiro e a herança mordaz que nos legou para satirizar a sociedade em que vivemos, dando vida ao Zé que continua ingenuamente a esperar melhores dias. Assim vai sobrevivendo mas, como bem diz, Prof., sentimos todos que já suportámos demasiado na pele do Zé Povinho que nos habita. Sobrevive, sim, mas isso é viver de gatas à espera das migalhas. Só mesmo uma revolução para que os Zés Povinho consigam endireitar a coluna!
E o Zé Povinho, coitado, já assistiu a tantas revoluções libertadoras nestes 140 anos bem contados de vida, monárquicas e republicanas, democráticas e ditatoriais, pacíficas e sangrentas, que ainda se arrisca a perder a perseverança dum mundo melhor e ir fazer companhia à Maria Paciência. E ele lá continua a resistir, até aos nossos dias, com uma postura estoica de invejar, a enfrentar os infortúnios e adversidades que tem sido obrigado a enfrentar, deitado, mas com muita vontade de se levantar de vez e apagar definitivamente o diminutivo que leva consigo e transformar-se, como alguém propunha, num verdadeiro José Povo. Assim eu esteja presente para assistir à sua | nossa libertação…
ResponderEliminarGostei muito do que escreve sobe o nosso ZP e acho o desafio ainda melhor...
ResponderEliminarBelissimo texto .Prof...excelente dissertação ..referindo as diferenças entre o ..nosso Zé Povinho e os ....símbolos de outros paises...mais endinheirados.....
ResponderEliminarSeria muito ...interessante...até para a nossa cidade...que ouvissem ..lessem ...a mensagem !!!!
Que reflexão formidável! Que estupenda ideia! Gostei...
ResponderEliminarQue texto! Uou!
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