2 de janeiro de 2015

Descidas épicas aos infernos

SANDRO BOTTICELLI
La mappa dell'Inferno di Dante (c. 1480-1490)
[Bibllioteca Apostolica Vaticana]

No término da sua longa viagem de regresso a casa pelas águas mediterrânicas, Ulisses desce às profundezas subterrâneas do Hades, para consultar o adivinho Tirésias e visitar as sombras dos companheiros já embarcados na barca de Caronte (Homero, Odisseia: XI). A catábase helénica promove deste modo simbólico a ligação entre os tempos pretéritos e os vindouros, para assim enfrentar com maior clareza os desafios do dia-a-dia.

O troiano Eneias segue o exemplo heroico do seu inimigo aqueu e desce ao Infernum latino para visitar o pai Anquises, já recebido por Plutão no reino dos mortos, que lhe vaticina as glórias a realizar no porvir pela augusta família imperial romana (Virgílio, Eneida: VI). Faz-se acompanhar da sibila de Cumas, que o guia nesse labirinto soturno de tristeza plena e lhe permite uma saída segura desse espaço cavernoso normalmente sem retorno.

Uma das viragens poéticas do mundo antigo para o moderno é feita pela visão renascentista de Dante. Escolhe Virgílio para visitar o Inferno e o Purgatório e Beatriz para subir ao Paraíso. Nesta pere-grinação ao outro lado da existência humana, às esferas do trans-cendente católico do pós-morte e além-vida, o arquiteto da Divina Comédia arroga-se o direito de julgar o mundo que lhe era hostil, arrumar a casa e preparar-se para as batalhas ainda por travar.

Os fogos de artifício dedicados a Ianus, o deus latino das passagens, já se extinguiram como efémeros que eram. Iluminaram o mundo nos primeiros minutos do ano novo. Depois a noite voltou tão negra como havia sido no ano antigo. As premonições da taróloga Maya pairam indecisas no ar. A descida aos infernos da vida real regressa, enquanto a subida aos paraísos ilusórios dum ano bom esperam impacientes por mais uma final/início de ciclo redentor.

2 comentários:

  1. Coitados de nós, simples mortais, que somos obrigados a mergulhar no inferno dos dias de crise profunda provocada pelos anti-heróis, os déspotas que se tornam cegos ao caos onde sofrem os desprotegidos... Deveriam eles ser mergulhados no inferno, numa descida lenta que os ensinasse a ser Humanos!

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  2. Descida real a nossa a esses infernos da vida que corre. Ascensão sem limites desses abutres às esferas celestiais da impunidade. Até quando estes abismos criados entre uns e outros, dá vontade de perguntar ou de eliminar duma vez por todas...

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