«A él lo conocían de inmediato, tal como era, sin defensas, débil, un esclavo. Solo la libertad le interesaba ahora para manejar su soledad a su capricho, llevarla a un cine, encerrarse con ella en cualquier parte.»Mario Vargas Llosa, La ciudad y los perros (1962-1963)
Constitui um hábito arreigado a quem é obrigado a permanecer eternidades nas salas de trânsito dos aeroportos o visitar todas as duty & tax free shops postas à sua disposição. Não sou uma exceção. A minha predileção por todas aquelas que usam a etiqueta Relay é sabida. Frequento-as sem acalentar grandes esperanças de encontrar o tal livro de bolso mágico, numa língua conhecida, que me possa servir de companhia eficaz, para além desse período de espera inexoravelmente forçado. Um outro qualquer local de venda de histórias assentadas em papel, com o título da obra e o nome do autor, registados em carateres ampliados na capa protetora de cartão envernizado, também me serve à perfeição. Sou pouco esquisito neste tipo de lojas de ocasião. Este ano fui surpreendido por uma edição comemorativa do cinquentenário do romance inaugural de Mario Vargas Llosa, A cidade e os cães (1962-1963 | 2013), enquanto esperava o voo doméstico que me traria do Porto para Faro. Encontros felizes com promessas de leituras felizes. Assim foi.
Pouco haverá a dizer sobre um texto sobre o qual já se terá dito tudo (ou quase tudo) ao longo de mais de meio século de leituras sucessivas espalhadas pela aldeia global. A circunstância de ter acedido ao relato através duma tiragem especialmente preparada pela Real Academia Española e pela Asociación de Academias de la Lengua Española, revista pelo homenageado e com a colaboração duma dúzia de hispanistas, com estudos distribuídos pelo ensaio académico, recensão crítica, análise literária, revisão bibliográfica, filologia peruana e onomástica limenha, dificulta ainda mais a hipótese remota de se ser original no registo das anotações de percurso colhidas ao longo do trajeto. O melhor é mesmo saltar por cima dos comentários alheios e avançar com os pessoais. Arregaçar as mangas, ganhar coragem e pôr as mãos na massa. Abrir o diário-de-bordo, folheá-lo calmamente e deixá-lo revelar as confidências nele arrolado aquando da viagem de descoberta pelos universos da escrita do futuro nobel das letras. Sucintamente. Com conta, peso e medida. É que uma história nunca é contada duas vezes do mesmo modo ou ouvida por todos os ouvintes da mesma forma.
A estrutura bipartida do relato vem anunciada logo no título definitivo com que acabou por ser batizado: a cidade de Lima, capital do Peru, e os caloiros do Colégio Militar Leoncio Prado, a quem o calão estudantil local apostrofa pejorativamente de cães. Os episódios que o compõem oscilam assim num movimento pendular constante entre os dois espaços cénicos referidos. Os eixos temporais convocados pelos sucessivos discursos memorialistas acabam por ser repartidos pelos diversos atores chamados ao palco, atropelando-se uns aos outros num vaivém constante de diálogos/monólogos discursivos, que só a atenção extrema do leitor saberá ordenar e decifrar. A fragmentação caleidoscópica das instâncias diegéticas, a alternância sistemática entre a subjetividade das primeiras pessoas e a objetividade das terceiras, promovem um processo de invisibilidade e dissolução do narrador, entendido como um mero intermediário de vozes ouvidas como testemunhas de factos ocorridos num momento perfeitamente localizado do devir histórico recente.
Os rasgos autobiográficos detetados e confirmados ao longo de cerca de cinco centenas de páginas conferem ao romance um caráter documental precioso, convidando-nos a recordar as praxes, alcunhas, intimidações que um dia presenciámos de mais perto, como meros espetadores ou protagonistas ativos/passivos de práticas de abuso cobarde da força dos mais fortes sobre os mais fracos. Maldade, perversidade, prepotência, crueldade, violência, sadismo. Bullying se lhe chama agora com o anglicismo utlizado por todos os idiomas para qualificar o assédio físico e psicológico continuado e consentido nos meios juvenis como forma de demarcação irrefutada dum território conquistado e afirmação categórica duma virilidade triunfante. Num estabelecimento de ensino de matriz militar a noção de cobardia está excluída. A lealdade é exigida como um valor supremo. A mentira e a verdade são caldeadas à medida das circunstâncias e as exigências da honorabilidade castrense. Os fortes sobrevivem, os fracos soçobram. Lealdade e vingança digladiam-se. Amor e ódio confundem-se. Vida e morte dão corpo a este relato de heróis e vilões em formação. Flashes factuais de histórias verídicas são reveladas por agentes de ficção moldadas à dimensão humana. Lido o livro, pergunto-me como é possível que só agora tenha vindo ter comigo. É que a melhor literatura tanto se dá com os jornais, chocolates, tabaco e pastilhas dum quiosque local como com os best-sellers duma megalivraria multinacional. O segredo está em saber olhar o que se vê e agarrar muito bem o que se tem à mão. Nem mais nem menos.
Muito bom e muito interessante. Deste autor, de quem gosto muito, já li " A guerra do fim do mundo, Lituma nos Andes, Os cadernos de Don Rigoberto e A festa do chibo. Mas esta obra não.
ResponderEliminarSou fâ da escrita sul americana...
Este é só o primeiro romance dum grande autor que o conduziria ao Nobel cerca de meio século depois. Mario Vargas Llosa é um dos representantes da literatura sul-americana que também ocupa um lugar privilegiado nas minhas preferências.
ResponderEliminarO primeiro romance de Vargas Llosa que desconhecia totalmente... Mais uma sugestão interessante de leitura, tanto mais que o tema é atualmente recorrente e nos aflige pela violência que atinge em todos os tempos...
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