«Il n'y a pas de silence éternel des espaces infinis, car il n'y a en vérité ni silence, ni espace, ni vide. Le monde que nous connaissons, le monde que nous créons, le monde humain est rond, lisse, homogène et chaud comme un sein de femme.»Michel Houellebecq, Les particules élémentaires (1998)
Garante um velho mito grego que outrora a nossa natureza era diferente da atual. Para além do masculino e do feminino havia ainda o andrógino. Esta terceira espécie de proto-humanos era constituída pela associação das outras duas. Esses seres híbridos ter-se-iam extinguido por vontade expressa de Zeus, de forma a castigá-los pela arrogância manifestada ao longo da sua existência. A decisão de escalarem o céu e guerrearem os imortais foi travada de modo radical. O pai dos deuses dividiu-os em dois, tornando-os assim mais fracos e menos dados a ambições usurpadoras. Desde então, separados em homens e mulheres, esqueceram-se de conquistar os espaços olímpicos e passaram a perseguir-se uns aos outros sobre a terra, à procura da outra metade que haviam perdido, no intuito perseverante de se voltarem a fundir num só corpo. A história é contada por Aristófanes aos companheiros de simpósio, encontro de amigos/conhecidos que Platão reuniu nas páginas dialogadas d’O banquete ou do amor (c. 380 aec).
Esta tentativa de explicar de jeito divertido e exemplar o mistério fundamental da vida, resultante da associação consentida de dois seres sexualmente distintos sob os auspícios divinos de Eros, veio-me à memória quando percorri com olhar atento as imagens literárias registadas por Michel Houellebecq nas entrelinhas das mais de três centenas de páginas do seu segundo romance, As partículas elementares (1998). Fez-me companhia nos momentos de pausa forçada passados em alguns aeroportos europeus que me levaram numa incursão académica até Cracóvia. Ficou-me a vontade de revisitar o texto com mais calma após o regresso, intento que só consegui cumprir agora, dum fôlego, decorrido um bom par de anos. O prazer da leitura repetiu-se, intensamente, como se se tratasse duma estreia absoluta. O caráter controverso dos temas abordados e o tom provocatório com que o autor expõe os seus pontos de vista voltaram a exercer em mim um fascínio avassalador, perceção pessoal que nem todas os sentires estéticos conseguem entender ou aceitar de ânimo leve. A fluência do discurso é inegável e o domínio da língua total. As palavras valem o que valem, mesmo quando os dicionários mais conservadores, que as deveriam alojar e enquadrar no contexto para que foram criadas, teimam em ignorar ou marginalizar.
A velha historieta platónica, situada na fronteira da anedota e da etiologia, vem à baila por portas travessas neste relato do mais mediático escritor francês da atualidade. Entrou em cena quando voltei a seguir os percursos de vida trilhados por caminhos diametral-mente opostos pelos dois meios-irmãos que o protagonizam. Ambos procuram incessantemente a sua cara-metade e nunca a chegam a encontrar. Bruno envereda pela via do prazer e apercebe-se da sua incapacidade de amar. Michel opta pela via do amor e apercebe-se da sua impossibilidade de amar. O mundo absurdo do primeiro obtém um equivalente perfeito no mundo preciso do segundo. Um dedica-se à escrita o outro à ciência. Os traços biográficos do romancista surgem a cada passo. As oscilações entre o factual e o fictício são constantes. Coincidências episódicas empoladas certamente pela fábula, mas confirmadas pontualmente pela realidade exterior ao livro que as confronta. A ironia é convocada pelas instâncias narrativas e a sátira surge em termos duma caricatura grotesca das relações humanas, sobretudo das familiares estabelecidas entre uns e outros, de todas as gerações, sem distinções muito visíveis.
Dizem os exegetas que o título escolhido pode ser entendido como uma metáfora pedida emprestada à mecânica quântica, reenviando os leitores para o espírito rigoroso que atravessa o texto e à conce-ção dum espaço social onde os indivíduos que a formam se veem como meras partículas elementares dum todo universal. Aceito a tese sem pestanejar. A solução estaria na dissociação radical da reprodução do prazer, condição sine qua non da humanidade conhecer a verdadeira paz e o amor. A antecipação científica modelada à maneira de Aldous Huxley, referido mais do que uma ocasião, leva-nos até 2079, quando os seres humanos da antiga raça em extinção se confrontam com os representantes duma novíssima raça estável criada num ambiente laboratorial. O sonho da eternidade parece que se cumprirá lá para o final deste século. Sorte ou azar nosso que não testemunharemos a vinda desses entes imortais criados à imagem e semelhança dos deuses. Vingança dos filhos dos proto-humanos helénicos que a arte poética dum fabricante de heróis da imaginação converteu em autênticos neo-humanos edificadores das utopias do melhor dos mundos.
Leio "Ravelstein" do Prémio Nobel da Literatura de 1976, Saul Bellow, que refere o mito de Aristófanes (referindo que Platão o citou num discurso atribuído a Aristófanes), numa destas interessantes coincidências quânticas. O retratado nesta biografia narrada em tom coloquial é um cultor do amor sob todas as suas formas, incentivando todos à sua volta para encontrarem a sua "meia laranja". Um invertido convicto, que viveu intensamente a sua vida em todos os seus aspectos e que deixa no ar um cheiro a sentimento quando falece...
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