29 de setembro de 2015

As lições de Artérix, Obélix & C.ª

René Goscinny & Albert Uderzo, Astérix le Gaulois
Pratiquei grande parte da minha fluência escrita e oral em francês através das aventuras exemplares de Astérix le Gaulois, Obélix & Compagnie, contadas e desenhadas aos quadradinhos por Gosciny e Uderzo. Em certos momentos do meu percurso académico, também fui convidado a ler algumas dessas histórias em latim restaurado ou kikerista. Aprendi ainda o sentido que podia ter a palavra resistência, consubstanciado nas lutas sempre vitoriosas da minúscula Gália Armoricana contra a desmedida Roma Imperial.

Mais tarde fiz uso da versão portuguesa destes e doutros álbuns da escola franco-belga para explorar os sentidos das onomatopeias e metáforas visuais, contidas numa simples vinheta de BD. Com um simples PAF!, meia dúzia de estrelas e outros tantos sinais dinâmicos de basta já, põe-te na alheta, que já estás aqui a mais, se constrói uma cena completa de significações. Passava-se isso nos tempos áureos em que abracei os universos pedagógicos da literatura infantil dirigida a um público global sem idade definida.

A imitação dos sons para verbalizar sentidos pode coincidir uma ou outra vez com com a leitura das letras iniciais duma sequência de palavras. A força simbólica da onomatopeia sobrepõe-se à do acrónimo e o jogo de sentidos entra em cena. Entrando na arte de governar os destinos da Lusitanian gentem, os heróis gauleses da banda desenhada são chamados ao palco e o PAF! desenhado dá uma surra monumental no PàF coligado. Infestis pilis cum illis! Fora com eles!. Ça y est!. Alea jacta est. Assim seja e já está...

27 de setembro de 2015

O meteorito, o cubo e o croissant

Croissant Otomano

Artwork by Marco Rosella for Essen©

E uma bola em chamas desceu do céu. No local onde caiu, os homens encontraram uma pedra oval ainda fumegante. Erigiram um templo em forma de cubo para alojá-la. Dedicaram-no a Hubal, o deus lunar do quarto crescente, parceiro de Attal, a deusa solar da luz plena. A dádiva divina foi reservada ao culto de al-Uzza, a estrela da manhã, a irmã luciferina de al-Lat e de al-Manat, a lua cheia e o quarto minguante. Uma tríada de divindades femininas secundárias, as Banat al-Lah ou filhas de al-Lah.

Mais tarde chegou um ser alado das alturas trazer a mensagem do ser supremo ao seu profeta. E Muhammad ibn Abdallah começou a recitar os versículos da Submissão por toda a cidade de Meca. Depois mudou-se para Medina, para formar uma irmandade de submissos à nova fé. Um dia resolveu regressar ao ponto de partida. Pelo caminho, aproveitou para destruir todos os ídolos que encontrou pela frente. Pelo sim pelo não, poupou o meteorito sagrado guardado na Caaba desde o princípio dos tempos.

O poeta que se dizia profeta deixou atrás de si um império em construção. As quatro gerações que se lhe seguiram submeteram meio mundo a ferro e fogo. A Europa é ameaçada a nascente e a poente. Até que começaram a ser travados. As terras banhadas pela margem norte do Mediterrâneo empurraram-nos para a margem sul. Viena resistiu ao assédio otomano. Diz a tradição que se terá então inventado o croissant pasteleiro. E assim o mito lunar politeísta se transformou em contramito pantagruélico pagão.

Feitas as contas e arredondados os números, os adoradores da Pedra Negra continuam a rodopiar nos nossos dias em torno do nicho que a aloja. Sete voltas completas como uma mudança de fase do nosso satélite natural. A Lua em quarto crescente, o Sol em forma de estrela e as três filhas de Deus alinhadas em esferas planetárias continuam a encimar as cúpulas das mesquitas pelos quatro cantos da terra. Símbolos singulares dum monoteísmo iconoclasta. Os fantasmas das origens a macularem o porvir.

23 de setembro de 2015

Filmes, livros & maratonas

Lisa Iglesias, La Sonnambula (2010)
[They shoot horses, don't they?]


No início dos anos 70, a fachada monumental do cinema Império em Lisboa estava completamente coberta pela ampliação fotográfica gi-gante duma cena do filme então em exibição. Um puro sangue árabe em pleno galope, negro azeviche, crinas ao vento, majestoso, pujan-te, altivo, vistoso, indomável, o ícone acabado da alegria de viver. Dava pelo nome sugestivo de Os cavalos também se abatem. Fui incapaz de resistir ao apelo do cartaz e do título e entrei para ver como era, apoiado ainda no facto de ter sido realizado por Sydney Pollack e protagonizado por Jane Fonda e Michael Sarrazin.

Durante os 120 minutos da projeção, o desconforto causado pela crueza das imagens em movimento instalou-se num crescendo cons-tante. Opressivas, angustiantes, repressivas. Detestei estar ali dentro. Desejei sair dali para fora. Rapidamente. Aquela maratona de dança infindável produzida pela Grande Depressão americana dos anos 30 fugia em tudo ao que ingenuamente imaginara. A chave-mestra para a leitura global da história contada no grande ecrã só seria revelada na última fala proferida em forma de interrogação retórica: «Os cavalos também se abatem, não é verdade?».

O ar fresco daquela noite de inverno arejou-me as ideias. Dei-me con-ta da força dramática contida em duas horas de registo cinemato-gráfico ininterrupto. A metáfora da morte ganhou sentido. O tiro desferido no cavalo de corrida e na protagonista da fita. Glória é abatida no final duma corrida sem meta à vista. Ironia trágica gra-vada em celuloide. É quando perde o combate que a maratonista ganha a batalha. A anti-heroína sai de pista de dança e a heroína perfila-se no horizonte. Livre. Nesse preciso momento resolvi voltar a visionar o filme. Olhá-lo com outros olhos. Fi-lo no dia seguinte.

A experiência repetiu-se algumas vezes mais no pequeno ecrã. A última ocorreu há dias. Passou na TVC2, no canal 51 por Cabo. Assisti a esse reality show de salão de baile, em busca de audiências num tempo de entre guerras. Veio-me então à memória possuir um exemplar do romance em formato de bolso. Resgatei-o da estante e li-o pela primeira vez, 60 anos após ter sido escrito por Horace MacCoy. A maratona de dança voltou a dançar-se nas páginas do livro. Implacável. Sempre a rodopiar até ao disparo final. Afinal, como dirá o anti-herói/herói: They shoot horses, don't they?

21 de setembro de 2015

Uma tisana com serpentes


Duas serpentes

Pintura mural de Pompeia (séc. I EC)

TISANA 12
Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. Um dia encontraram-se num caminho muito estreito e como não gostavam uma da outra devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra não ficou nada. Esta história tradicional demonstra que se deve amar o próximo ou então ter muito cuidado com o que se come (sic!).
Ana Hatherly, 351 Tisanas. Lisboa: Quimera (1997)

16 de setembro de 2015

A arte de saber contar

 ANDERE ANSICHT DER WELTKARTE
Daniel F., Arschkarte (2011)
Conta-se que no período quente da guerra fria se realizou uma corrida entre Kennedy e Khruschev. A crise dos mísseis cubanos estava ao rubro. Os ânimos assanhados. Os nervos à flor da pele. Os dois hemisférios separados pela cortina de ferro pretendiam saber quem era de facto o senhor do mundo.

Dizem os anais desportivos da época que o presidente dos EUA foi o primeiro a cortar a meta e o da URSS o segundo. A diferença de idades de quase um quarto de século entre um e outro terá estado na origem da vitória do mais jovem. Os mass media dos dois países reagiram todavia de modo distinto.

Para os norte americanos, a prova fora vencida pelo locatário da Casa Branca, tendo o inquilino do Kremlin sido o derrotado. Para os soviéticos, o camarada-presidente obtivera um heroico segundo lugar, enquanto o chefe do imperialismo internacional fora relegado para um humilhante penúltimo lugar.

As palavras e os números valem o que valem. Nos jogos de azar da política só há vencedores. Os empates técnicos miragens. As sondagens balelas. Duram enquanto duram. Saem mais depressa de cena do que entraram. Até que a roda da sorte volte à ribalta e a banha da cobra se volte a vender.

14 de setembro de 2015

Michel Houellebecq, a plataforma dos prazeres exóticos

«Dès qu'ils ont quelques jours de liberté les habitants d'Europe occidentale se précipitent à l'autre bout du monde, ils traversent la moitié du monde en avion, ils se comportent littéralement comme des évadés de prison. Je ne les en blâme pas ; je me prépare à agir de la même manière.»
Michel Houellebecq, Plateforme (2001)
A descoberta faseada do universo narrativo de Michel Houellebecq prossegue no meu plano de leituras gizado desde que ouvi pronunciar o seu nome pela primeira vez. A fonte era segura e os argumentos suficientemente fortes para me impedirem de resistir à tentação da descoberta. Era um mestre da língua, um recreador da arte de escrever romances, um provocador nato dos frequentadores mais pacatos da república das letras, uma pedrada no charco do panorama editorial contemporâneo. Registei a afirmação bombástica de que teria colocado metade da França a discutir com a outra metade. Gostei deste anúncio de guerra verbal travada em torno duma obra de ficção. A avaliação foi efetuada por uma entidade ligada ao mercado livreiro, pelo que fiquei com a pulga atrás da orelha, depois de ter procedido a um desconto habitual aos encómios produzidos nestes casos especiais. Curiosamente, ainda não li o tal caso concreto que motivou todo elogio rasgado a um autor de nome bizarro que a partir daí me habituei a pronunciar. Tenho-o na estante à espera de vez. Por agora fico-me com a Plataforma (2001), um relato dos nossos dias que promove uma incursão desapiedada pelos labirintos do turismo sexual praticado por uma certa camada da população ocidental nas utopias orientais do prazer imediato, exótico e a low cost.

A palavra polémica tantas vezes repetida instala-se mal abrimos o livro e avançamos pelos parágrafos iniciais. Situação a que já me habituei sem pestanejar. A tal ponto que passei a considerar esse cenário como perfeitamente expectável. Tornou-se uma banalidade. O alvo da verdadeira controvérsia chamada à colação dos leitores está ancorado nas temáticas tratadas e não nas histórias contadas pelo escritor. Trata-se duma questão de conteúdo e não de forma. Depois, a descrição exaustiva e continuada dos contactos físicos efetuados pelas personagens, mais ou menos íntimos, a solo, a dois ou a muitos, não ultrapassa em nada aquilo que as pessoas estabelecem entre si dentro da mais perfeita normalidade prevista pela natureza humana. O pudor imperante nestas situações é que costuma transformar o possível em interdito, o incómodo em tabu, o prazer em pecado, o erotismo em pornografia. O fabulador externo estabelece uma cumplicidade estreita com o interno e assim a fábula se vai fazendo. O narrador e o autor confundem-se no nome dado ao protagonista, Michel, a quem é confiada a missão de pôr em crónica os factos. As notas biográficas espalhadas um pouco por todo o lado voltam a ganhar uma visibilidade inequívoca.

O percurso discursivo do relator de serviço distribui-se por três centenas e meia de páginas agrupadas em três partes ou etapas, cada uma delas ancorada num destino viageiro distinto. A Tailândia-Cuba-Tailândia dos circuitos propostos desde Paris pelas Nouvelles Frontières e explicados pelos guias do Routard e Michelin. Pelo meio ocorre uma história de amor-morte a pontuar o encontro-desencontro de culturas situadas nos antípodas deste nosso mundo globalizado. Imenso expositor das imagens de marca postas à veneração de todos. Rolex, Nike, BMW, Yves Saint Laurent, Gucci, Kenzo, Prada, Adidas, Arnani, Vuitton, Lacoste. Ídolos duma nova religião imposta aos quatro cantos da terra. Omnipotente, omnipresente, omnisciente. Ironia trágica dum devir planetário atual cada vez mais à deriva sem uma tábua de salvação à vista. Os atentados entram em cena. Nos mass media, as vítimas passam a culpadas. A hipocrisia instala-se e toma conta do drama. Os paraísos edénicos transformam-se num piscar de olhos em infernos dantescos, o locus amœnus em locus horrendus, o sonho em pesadelo, a eutopia em distopia. A plataforma programática para a partilha do mundo, qual tratado de Tordesilhas do terceiro milénio, é abandonado. O projeto Afrodite sai derrotado pela ação bélica de Ares, a divindade olímpica da brutalidade, da violência e da matança personificadas.

Polémicas e controvérsias à parte, ultrapassado o impacto causado pela linguagem nua e crua convocada pelo discurso, transpostas as fronteiras do politicamente correto, somos obrigados a render-nos à força telúrica das palavras selecionadas para contar uma experiência pessoal de vida. O anti-herói da fábula esquece-se por vezes da história que está a escrever e põe-se a resumir as histórias escritas pelos outros. Umas e outras campeãs de venda nos free shop dos aeroportos pisados nas suas viagens por três continentes. Autocrítica indireta registada no próprio romance que os analistas encartados só poderão empregar a posteriori. Riso sarcástico dum mestre da pantomina. O escárnio e o maldizer no seu melhor como só os melhores sabem fazer.

12 de setembro de 2015

O nariz de Pinóquio

Il burattino Pinocchio e il Grillo Parlante

No espantoso mundo encantado do faz-de-conta infantil, os bons são sempre premiados e os maus castigados. Exemplarmente. Abençoado maniqueísmo mágico que até nos chega a convencer que as fadas-madrinhas existem mesmo. Que há um Paraíso para os cumpridores e um Inferno para os prevaricadores.

Carlo Collodi imaginou em Le avventure di Pinocchio: storia di un bu-rattino (1881), o romance dum boneco de madeira que queria ser um menino de carne e osso. Perdidamente. Depois de muito penar conseguiu essa metamorfose, à custa de ter vencido esse vil vício da mentira. Passou a falar verdade e o nariz deixou de lhe crescer.

No vulgar mundo banal do dia a dia adulto, o mentiroso está sempre condenado a mentir. Irrevogavelmente. Mente com quantos dentes têm na boca sem nunca lhe crescer o nariz. Como diria Pessoa, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente. Malabarismos da língua de poetas e mentirosos.

Clifford A. Pickover ignorou no The Math Book (2009) o Paradoxo de Epimédides, que nos diz que uma frase falsa tem de ser falsa se for verdadeira e verdadeira se for falsa. Inexoravelmente. A ciência da manipulação dos números preferiu ficar à margem dos labirintos da verdade-mentira. As letras que o façam se quiserem ou souberem.

10 de setembro de 2015

Pedinchas & Promessas

José Malhoa - As promessas, 1933
[Museu José Malhoa - Caldas da Rainha]

Em tempo de promessas, valham-nos as do José Malhoa. Foram pintadas a óleo, retratam uma cena real dum país aldeão, de entre guerras, confiante no poder miraculoso dos intermediários do além. Ofereço-te uma vela se fizeres o que eu te peço. Até vou à tua capelinha a pé. Arrasto-me de joelhos. Só tens de cumprir a tua parte no contrato. Caso contrário nada feito. Viro-me para outra freguesia. Pedir não custa e há sempre um santinho padroeiro dos aflitos em cadeia à mão de semear. 

Em tempo de botar votos, as promessas andam no ar. São proferidas a torto e a direito por aquela palha. Ciclicamente. O pudor que se cuide. Dou-te isto e aquilo a troco de quase nada. Só te peço uma cruz no quadradinho. A árvore das patacas à mão de semear. As palavras de ordem são gritadas aos quatro ventos. A boa nova espalhada pelas sete partidas deste nosso mundo de desejos por cumprir. Prometer não custa é há sempre um tolo dos quatro costados postado ao virar da esquina.

7 de setembro de 2015

Salman Rushdie, as maldições dos versículos satânicos

«“It was the Devil”, he says aloud to the empty air, making it true by giving it voice. “The last time, it was Shaitan.” This is what he has heard in his listening, that he has been tricked, that the Devil came to him in the guise of the archangel, so that the verses he memorized, the ones he recited in the poetry tent, were not the real thing but its diabolic opposite, not godly, but satanic.»
Salman Rushdie, The Satanic Verses (1988)
Quando já se esgotou o espaço visível nas estantes pessoais dum leitor compulsivo para alojar novas aquisições, a solução mais sensata é voltar a visitar os hóspedes que ali habitam há vários anos, mudos e quedos, como se tivessem deixado de existir. Sobretudo aqueles que por motivos vários não conseguiram despertar em nós um entusiasmo estético particular ao percorrê-los, a ponto de poderem ocupar a tal lista dos livros duma vida. Resgatei estas férias de verão alguns deles, entre os quais se conta a mais polémica criação de Salman Rushdie, Os versículos satânicos (1988). Na altura do primeiro encontro não entendi muito bem o porquê duma tal sanha persecutória contra uma obra de ficção, que então coloquei na categoria pouco abonatória das banalidades literárias sem futuro previsível à vista. 

Reencontrei três histórias nucleares entrelaçadas num romance de prodígios incontáveis. Tudo começa com a queda de dois indianos dum avião em chamas por ter sido atacado por um grupo de separatistas sikhs. Conseguem sobreviver ao embate nas águas inglesas do canal da Mancha. Um deles ganha as caraterísticas dum anjo e o outro a aparência dum diabo. Depois há o caso duma menina indiana, bela e pobre, que encabeça uma peregrinação de camponeses muçulmanos a Meca. São guiados por um bando de borboletas até ao mar da Arábia onde se afogam. As águas recusaram abrir-se à sua passagem, engolindo todos no seu interior. O remate chega-nos com um profeta fundador duma nova religião no deserto, em tudo idêntica a uma outra bem conhecida. Inclusive na tentativa demoníaca de contaminar os versículos celestiais da nova fé com outros oriundos das profundezas infernais. A polémica instala-se fora da ficção, no seio do fundamentalismo islâmico. O autor foi condenado à morte pelo aiatola Khomeini e a obra transformou-se num bestseller instantâneo no mundo livre. 

É frequente encontrar este relato associado ao realismo mágico latino-americano. Prefiro integrá-lo no universo genérico teorizado por Tzvetan Todorov*. A interpretação dos sucessivos casos de insólito obrigam-nos a saltitar sem descanso das categorias do estranho para as do maravilhoso. De permeio fica ainda a hesitação constante exigida pelo fantástico puro. Aquele que se encontra situado a meio caminho da explicação racional do natural e a aceitação tácita do sobrenatural. O incrível, o raro, o extraordinário, o chocante, o singular, o esquisito, o desusado e o invulgar de algumas das situações narradas tanto se podem enquadrar na gramática da literatura de horror, quiçá policial, como serem interpretadas ao abrigo da dicotomia real-imaginário atualizada pelo sonho, loucura ou droga. A referência às perturbações mentais dos protagonistas, ao caráter onírico de algumas sequências por si relatadas, aos projetos cinematográficos ou radiofónicos que os unem, ajudam a desenhar um cenário perfeitamente plausível à luz do bom senso exigido pela incredulidade dos nossos dias. Até nos esquecemos de todos aqueles episódios que só se podem explicar através da alotopia referida por Umberto Eco**. Admitir que a subjetividade que habita em nós possa ser muito diferente da objetividade que nos rodeia e abriga. Aceitar sem rebuços e duma vez por todas a máxima de que tudo o que o homem imagina é real. 

O romance maldito de Rushdie, esses versículos satânicos que tanta tinta têm feito correr ao longo dos anos, é tudo aquilo que nós quisermos que seja. Uma alegoria aos nossos tempos. Agora mais do que nunca. As notícias com que os mass media nos invadem o quotidiano são uma prova cabal disso. A intolerância anda no ar. Os fundamentalismos não descansam. O livre arbítrio humano é cerceado pela predestinação divina. Temos de ser aquilo que os mensageiros iluminados do além nos ordenam. Submissos. Eleger o bem e afastar o mal. Ignorar que o angélico e o diabólico são as duas faces duma mesma moeda. Coexistem desde sempre na natureza humana que nos define como seres viventes. Só assim se pode entender que onde não há crença não há blasfémia possível. A verdadeira esquizofrenia está em pensar precisamente o contrário. A releitura do relato que incendiou meio mundo terminou. O exemplar que me acompanhou na viagem já voltou à estante caseira de guardar livros. Um dia destes ainda volto a visitá-lo. A lição dos textos é insaciável nos seus ensinamentos. Aproveitemos o privilégio da sua companhia preciosa, da sua solidariedade absoluta, da sua sabedoria incondicional. 

NOTAS
(*) Tzvetan Todorov, Introdução à literatura fantástica. Lisboa: Moraes Editores, 1977.
(**) Umberto Eco, «Os mundos da ficção científica», IN Sobre os espelhos e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.

6 de setembro de 2015

Navegações em contracorrente

 
Sed fugit interea, fugit irreparabile tempus, singula dum capti circumuectamur amore...
Vergilius, Georgicon, (29 AEC: III-a, 284-285)
Os blogues passaram de moda. Deixaram de existir como entidades autónomas. Foram substituídos pelas redes sociais que os divulgam como forma de resistência às mudanças do mundo.

As Histórias d'Arthur d'Algarbe nasceram há um ano. Sobreviveram à conta-corrente do tempo. O primeiro ciclo de vida cumpriu-se. As navegações em contracorrente venceram ventos e marés.

As visitas a bordo são recebidas pelo capitão-mor de braços abertos. O verbo é raro. No livro das caras as palavras são mais fáceis. Trago- -as emprestadas para aqui. E assim a rota se vai traçando.

2 de setembro de 2015

Fitas & Livros

«O caos é uma ordem por decifrar. Livro dos contrários»
José Saramago, O homem duplicado (2002)

Um zapping rotineiro pelas três centenas e picos de canais da televisão por cabo levou-me até ao TVC1 50. No curto espaço dum flash permitido pelo saltitar apressado de proposta em proposta, deparei-me com uma grande aranha a ser esmagada por uma mulher num ambiente de cabaret. Achei a cena particularmente bizarra e recuei um pouco na gravação para visualizar o início do filme. O genérico informou-me tratar-se duma adaptação cinema-tográfica dum dos mais estranhos e tardios romances de José Saramago, O homem duplicado (2002), protagonizada por Jake Gyllenhaal. A liberdade criativa do realizador canadiano Denis Villeneuve permitira-lhe retocar um pouco o texto do Nobel portu-guês e intitular o resultado final de Enemy (2013). Vá-se lá saber porquê. Escuso-me a resumir o argumento das duas versões, com a indicação da fidelidade/divergência entre o realismo mágico da diégesis e a expectativa psicológica do thriller. Deixo também em paz a interpretação simbólica da enigmática tarântula, que voltará a marcar presença no final da película. Teias que o destino teceu no ecrã e os cartazes publicitários gravaram para a eternidade.

As ordens por decifrar do homem duplicado da fábula pode ser explicada através das teorias do caos e das probabilidades. O diálogo entre as letras e os números é-nos fornecida pelo narrador da história escrita, quando afirma que em subtilezas e matizes a literatura é quase como a matemática. Lá terá as suas razões que as histórias contadas fora dos livros por vezes se encarregam de confirmar. Vem a talho de foice recordar que no início da década de 70 me confrontei com a representação dum sósia meu numa das páginas das Selecções do Readers Digest. A semelhança foi notada por uma amiga que me ofereceu a revista. Na altura achei curiosa a coincidência e guardei o exemplar num local seguro. Acabei por me esquecer do episódio e perdi o paradeiro da foto. E assim se foi a imagem cristalizada dum tempo em que me vestia de branco, usava o cabelo pelos ombros, me sentava no chão e andava de pé descalço. Um dia destes ainda me cruzo por aí com o meu duplicado. Acasos possíveis com que o dia-a-dia nos surpreende para mostrar um pouco da sua graça e criar a ilusão de que a nossa vida dava um filme e cabia nas páginas dum romance.