23 de setembro de 2015

Filmes, livros & maratonas

Lisa Iglesias, La Sonnambula (2010)
[They shoot horses, don't they?]


No início dos anos 70, a fachada monumental do cinema Império em Lisboa estava completamente coberta pela ampliação fotográfica gi-gante duma cena do filme então em exibição. Um puro sangue árabe em pleno galope, negro azeviche, crinas ao vento, majestoso, pujan-te, altivo, vistoso, indomável, o ícone acabado da alegria de viver. Dava pelo nome sugestivo de Os cavalos também se abatem. Fui incapaz de resistir ao apelo do cartaz e do título e entrei para ver como era, apoiado ainda no facto de ter sido realizado por Sydney Pollack e protagonizado por Jane Fonda e Michael Sarrazin.

Durante os 120 minutos da projeção, o desconforto causado pela crueza das imagens em movimento instalou-se num crescendo cons-tante. Opressivas, angustiantes, repressivas. Detestei estar ali dentro. Desejei sair dali para fora. Rapidamente. Aquela maratona de dança infindável produzida pela Grande Depressão americana dos anos 30 fugia em tudo ao que ingenuamente imaginara. A chave-mestra para a leitura global da história contada no grande ecrã só seria revelada na última fala proferida em forma de interrogação retórica: «Os cavalos também se abatem, não é verdade?».

O ar fresco daquela noite de inverno arejou-me as ideias. Dei-me con-ta da força dramática contida em duas horas de registo cinemato-gráfico ininterrupto. A metáfora da morte ganhou sentido. O tiro desferido no cavalo de corrida e na protagonista da fita. Glória é abatida no final duma corrida sem meta à vista. Ironia trágica gra-vada em celuloide. É quando perde o combate que a maratonista ganha a batalha. A anti-heroína sai de pista de dança e a heroína perfila-se no horizonte. Livre. Nesse preciso momento resolvi voltar a visionar o filme. Olhá-lo com outros olhos. Fi-lo no dia seguinte.

A experiência repetiu-se algumas vezes mais no pequeno ecrã. A última ocorreu há dias. Passou na TVC2, no canal 51 por Cabo. Assisti a esse reality show de salão de baile, em busca de audiências num tempo de entre guerras. Veio-me então à memória possuir um exemplar do romance em formato de bolso. Resgatei-o da estante e li-o pela primeira vez, 60 anos após ter sido escrito por Horace MacCoy. A maratona de dança voltou a dançar-se nas páginas do livro. Implacável. Sempre a rodopiar até ao disparo final. Afinal, como dirá o anti-herói/herói: They shoot horses, don't they?

2 comentários:

  1. A começar pelas memórias do outrora grandioso cinema e café Império, com salas amplas e modernas, e terminando no filme, que tenho ideia de já ter visto, gostei muito do texto!

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  2. Uma história e uma interpretação avassaladoras. Lembro-me bem de o ver no Império e de ter andado com ele na "cabeça" durante muito tempo. E relembrei-o mais uma vez, recentemente, com as imagens de milhares de pessoas precisadas a caminharem através da Europa na tentativa de alcançarem a Paz e sobreviverem...

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