15 de novembro de 2015

Amin Maalouf, histórias do manuscrito de Samarcanda

«Sais-tu ce qui me fascine dans les sciences ? C'est que j'y trouve la poésie suprême : avec les mathématiques, le grisant vertige des nombres ; avec l'astronomie, l'énigmatique murmure de l'univers. Mais, de grâce, qu'on ne me parle pas de vérité !»
Amin Maalouf, Samarcande (1988)
Amin Maalouf resgatou em Samarcanda (1988) a lenda dos três amigos de Ispahan, antiga capital dos Seljúcidas, que marcaram, cada um à sua maneira, o início do segundo milénio da era comum. Reza a tradição registada em livro e propagada de boca em boca, ter sido o mundo observado por Omar Khayyam (1048-1131), governado por Nizam-el-Molk (1018-1092) e aterrorizado por Hassan Sabbah (1034-1124). O romance centra-se na primeira das personalidades referidas, reservando um papel bastante relativo aos restantes. O geómetra, algebrista, astrónomo-astrólogo, filósofo e poeta renomado, o versejador maldito dos Rubaiyat, toma conta da tessitura narrativa como ator principal, relegando os seus hipotéticos colegas de estudo em Nixapur para a órbita de figuras secundárias a pisarem o palco das ações representadas por palavras escritas.

O vizir persa é lembrado nos dias de hoje por ter sido o obreiro dum Tratado do governo, ensaio equivalente a O príncipe de Maquiavel. O Oriente muçulmano e o Ocidente cristão separados por hiato de quatro séculos de reflexão crítica sobre a arte de construir impérios de forma eficiente e sem olhar a meios para atingir os fins pretendidos. A ação do Velho da Montanha, o missionário fundamentalista que converteu o norte iraniano ao ismaelismo mais ortodoxo, ficou gravada na memória dos homens como a do fundador da Ordem dos Assassinos. Foi ele também o organizador da biblioteca de Alamut, posteriormente destruída pelos mongóis, em cujo espólio se encontraria o livro secreto do poeta do vinho, coletânea que reunia um número indeterminado de ruba’is, poemas de forma fixa compostos por estrofes de duas linhas, com dois hemistíquios cada, centrados na efemeridade da vida, no êxtase do amor e na transcendência humana.

O magnum opus e Prix des Maisons de la Presse 1988 é concebido como um texto de peregrinações incessantes pelas vastas extensões imperiais dos czares russos, xás persas e sultões otomanos, repartido pelo início do século xi e passagem do xix para o xx. Nas duas primeiras partes, traça-se o percurso de vida conhecido do arquiteto subversivo dos versos heréticos e ímpios compostos à luz do livre pensamento. Nos dois restantes, conjetura-se o destino aventuroso seguido pelo original perdido que terá registado com as próprias mãos e lhe concederiam uma celebridade crescente até aos nossos dias. Oitocentos anos de histórias com história dentro, unidos pelas deambulações do manuscrito de Samarcanda, o verdadeiro protagonista do relato. A cronologia dos acontecimentos é confiada a um narrador-interveniente, que se encarrega de informar o leitor, logo no primeiro período-parágrafo por si composto, repousar no fundo do Atlântico o livro cujo percurso acidentado se compromete a contar. Fá-lo abruptamente e sem contemplações. O naufrágio do Titanic, ocorrido na noite de 14 para 15 de abril de 1912, ao largo da Terra Nova, tê-lo-á levado consigo para as profundezas oceânicas. A imaginação ficcional diz-nos que um dia voltará ao seu convívio, esperança efémera que a realidade factual se encarrega de desfazer sem apelo nem agravo.

O desaparecimento sem rasto das mais paradigmáticas criações literárias produzidas pelo génio humano tem levado os fabricantes de sonhos impossíveis a fazê-las reaparecer, meteoricamente, nas obras de faz de conta. Veja-se, por exemplo, o segundo livro da Poética de Aristóteles, perdido na voragem impiedosa do tempo, a ser exumado por Umberto Eco nas páginas d’O nome da rosa, para, logo de seguida, ser devorado por um incêndio ateado muito a propósito na biblioteca abacial que o alojava. O romancista libanês e académico francês procede de modo semelhante com os Rubaiyat. A sensação de perda é tão grande que, neste caso concreto, a ação imoladora das chamas é substituída caridosamente pela ação mais benévola das águas. E os leitores passam a acreditar que a sua recuperação é possível. Entretanto, terão de se contentar com as múltiplas quadras que até nós chegaram em nome de Omar Khayyan. As canónicas e as apócrifas. Vá-se lá saber onde terminam umas e começam as outras. Os restos do grande paquete transoceânico foram descobertos há relativamente pouco tempo. A hipótese de encontrar o exemplar afogado mantém-se vivo. Um dia destes, saberemos pelos mass media ter o baú que o encerra sido encontrado entre os despojos já trazidos à superfície. Que belo momento seríamos então todos convidados a viver...

1 comentário:

  1. Amin Maalouf é para mim um escritor iluminado. O enredo deste livro, engenhosamente criativo como os demais que dele conheço, está sugestivamente analisado nesta resenha, apelando ao seu conhecimento. Facto que está mais ao meu alcance do que o manuscrito de Samarcanda que, mesmo dentro de um baú, deverá ter sofrido danos irreparáveis após 103 anos de afundamento marítimo. Seria bom que me enganasse redondamente...

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