J. Bosch, Tentações de Santo Antão (pormenor) c. 1500, [MNAA. Fotografia: DGPC/ADF/Luísa Oliveira] |
Em tempos que já lá vão, amadurecia eu então os meus verdes anos na Estremadura, a que agora chamam com todas as letras Oeste, costumava celebrar o pão-por-deus com toda a pompa e circunstância exigida pela tradição. Todas as manhãs do primeiro dia de novembro, aquele que a crença popular dedicava a todos-os-santos, conhecidos ou desconhecidos. Toda a criançada da rua partia em bando, a bater à porta da vizinhança, na expectativa de encher o pequeno saco de chita com que cada um se havia munido com uma guloseima teoricamente destinada aos fiéis defuntos.
Recordo-me também do cerimonial que celebrava na véspera com o meu irmão em casa da nossa avó materna. Depois de termos escolhido uma abóbora amarela bem redonda, começávamos a talhar uma caveira tenebrosa. Cortávamos com uma faca de bico quatro orifícios bem desenhados: dois redondos para os olhos, um triangular para o nariz e um recortado para a boca meio desdentada. Extraíamos as sementes com todo o cuidado. No interior colocávamos uma vela de cera que seria acesa no final do dia e iluminaria a noite dita das bruxas num dos muros do quintal.
Perdi o contacto com os cenários da minha infância. Desconheço se o costume ancestral se mantém. Duvido que assim seja. Em terras algarvias de cultura urbana nunca vi em nenhuma janela enfeitada com uma cabeça de bruxa ou um saco de pão-por-deus pendurado na mão de nenhuma criança. Como diz o rifão popular: cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso. Diz-me aquele dedo que adivinha andar o país inteiro a imitar a prática anglo-saxónica do Halloween das «doçuras ou travessuras». Digam-me que estou enganado e que a identidade cultural ainda conta...
Lembro-me da avó Cristina, tal como nós, estar completamente dedicada a preparar a abóbora na cozinha tal como descreveste e eu depois da obra acabada ficar ali na janela da sala a espreitar a dita virada bruxa. Para mim era mesmo uma bruxa porque tinha medo de a ver ali no muro a deitar luz (creio que nunca o disse mas arrepiava-me todo).
ResponderEliminarAdquirir a abóbora era também um ritual.
Íamos ao pinhal lá longe fazer um piquenique ou pelos menos uma boa caminhada, e no regresso, naqueles baixios encostados ao Rio Grande era um encanto ver as abóboras ali ao sol no lugar onde nasceram.
Uma viria a ser uns tempos mais tarde a nossa bruxa.
A tradição já não é o que era aqui por esta Estremadura extinta por decreto, mas ainda dá gosto ver miúdos andarem de saco na mão a bater às portas a divertirem-se e ainda a dizerem "pão-por-Deus"
Fico satisfeito por saber que ainda há meninos aí nessa região de além-Douro ou Estremadura celebrar o dia de todos-os-santos com o ritual do pão-por-deus, dá-me a satisfação de comprovar que a identidade cultural ainda tem alguns praticantes empenhados...
ResponderEliminarNo meu caso, nascida na freguesia de Sta Justa e criada na freguesia de Sta Maria dos Olivais, em Lisboa, o único ritual que presenciei neste dia foi a ida ao cemitério depositar flores nas campas dos entes queridos. Quanto ao ritual do pão por Deus, só o vim testemunhar aqui na Madeira, quando os meus filhos ingressaram na escola primária.
ResponderEliminarQuanto ao Halloween, foi nos anos oitenta no Bairro Alto que tomei contacto com ele.
É sempre interessante ler as tuas lembranças de infância sobre costumes antigos que ficaram um pouco esquecidos na esteira do comércio selvagem. Este teu exemplo de partilha é repetida por muitos, que se referem ao Pão por Deus quando tropeçam nestes festejos, pelo que os costumes ancestrais acabarão por ficar registados para a posteridade.
ResponderEliminarNão por experiência própria mas por ter ouvido, tantas e tantas vezes, histórias de infância da minha Avó materna, Mãe e suas Irmãs, sobre estes festejos e outros da sua aldeia na Beira-Alta, encanta-me ouvir este seu relato e outros. Fico feliz e a minha imaginação voa...
ResponderEliminarÉ tão bom ler o seu texto, pois explica tão bem as semelhanças, que afinal há, entre os nossos rituais e os do Halloween, Professor. É a noite em que estamos mais próximos dos nossos defuntos para os Celtas e o dia de todos os santos para os Cristãos. O pão de Deus, também já, na sua altura, podia ser substituído por uma doçura! Aqui, no Norte, só me lembro dessa tradição contada pela minha Mãe. Quanto à decoração da abóbora, que agora também faço com os meus filhos e alunos, desconhecia que era prática habitual por terras lusas nos seus "verdes anos"! Uma forma de celebração das colheitas aliada à luz de que todos precisamos, que nas minhas recordações de criança era visível através das janelas da casa da minha avó, de onde era possível verificar que "As velas ardem até ao fim", no cemitério de Vidago!
ResponderEliminarQuanto à imagem escolhida, Bosch deixa-me sempre maravilhada!