«Para onde vão os guarda-chuvas? São como as luvas, são como uma das peúgas que formam um par. Desaparecem e ninguém sabe para onde. Nunca ninguém encontra guarda-chuvas, mas toda a gente os perde. Para onde vão as nossas memórias, a nossa infância, os nossos guarda-chuvas?»Afonso Cruz, Para onde vão os guarda-chuvas (2013)
Estou sempre a cair na tentação de comprar livros que amigos bem-intencionados me vão sugerindo de ler. Na maioria dos casos, o valor intrínseco que lhes encontro seria insuficiente para pagar o preço do papel em que estão escritos e a tinta gráfica com que foram fixados. Sobre tais casos, nem merece a pena gastar tempo precioso a tecer comentários supérfluos a acrescer ao já despendido na viagem pelo seu interior. No extremo oposto, encontram-se aqueles poucos textos que superaram todas as expetativas, que me encheram ou extravasaram mesmo as medidas. Para esses, tenho dificuldade em encontrar palavras para preencher o louvor merecido. As boas obras dispensam elogios a que, mesmo assim, têm direito. O romance que agora me ocupa foi composto por Afonso Cruz e dá pelo título enigmático de Para onde vão os guarda-chuvas (2013). A resposta à pergunta implícita colocada logo na capa do volume que o alberga só será respondida bastantes páginas à frente, quando já desesperava de decifrar os seus sentidos ocultos na tessitura dos relatos contados e desenhados que nos vão sendo oferecidos com toda a calma do mundo e ao sabor do momento.
Gostar ou não gostar das histórias impressas a fingir de verdadeiras é irrelevante. O mais importante é saber se nos deixam ou não indiferentes. Que falem delas ainda que seja para dizer mal. Eis uma frase que à força de ser repetida já entrou na categoria das banalidades. Cristalizações verbais ou sintagmas congelados lhes chamam os linguistas a demonstrar a sua destreza no manejo das palavras. Dispenso-me de optar por uma aprovação/reprovação simplista deste guarda-chuva metafórico que alguém fez cruzar no meu caminho sem me dizer para onde ia. Limito-me a dizer que a anunciada obra-prima de prosa poética composta por um jovem autor português buliu comigo mais do que uma vez. Deixou-me cheio de interrogações estéticas quase sempre contraditórias ou mesmo inconciliáveis. Sensação forte, intensa, que geralmente se experimenta quando estamos em presença duma manifestação de arte há muito consagrada e confirmada. Os prémios obtidos dentro e fora das fronteiras nacionais deixam antever que o caminho percorrido pelo escritor, ilustrador, cineasta e músico, já ultrapassou a fasquia do principiante e se encaminha a passos largos para a consagração multidisciplinar.
Trata-se dum livro aglutinador de várias estruturas discursivas, chamadas à colação para dar uma maior visibilidade aos flashes existenciais duma família oriunda dum espaço exótico, situado num quadrante impreciso e deixado por identificar com as palavras que desvendariam o mistério. Lá vamos sabendo professar o credo islâmico, conviver com representantes dum cristianismo minoritário e dum hinduísmo concorrente. O urdu é referido várias vezes e registado a título complementar na numeração dos capítulos em que a fábula se constrói. Talvez nos queira remeter para o Paquistão ou Índia, países onde é falado como língua oficial ou de utilização quotidiana. A menos que se trate do Irão, também sugerido pelo idioma farsi. Pouco importa. O caráter de indefinição atribuído aos relatos verbalizados, desenhados e fotografados, introduz um elemento suplementar que é posto à inteira disposição dos leitores para comporem os quadros onde a diegese se vai fazendo. Vida, paixão, inocência, amor, morte. O sonho de liberdade, o pesadelo do cativeiro. A perda de um filho e a adoção de um outro. Pedaços de solidão revelados a preto e branco num tabuleiro de xadrez ou pintados num tapete de oração com todas as cores do arco-íris. Os pássaros a voarem mais alto nos versos do poeta Omar Khayyam, reproduzidos na máquina de escrever do macaco infinito. Alegorias clássicas enquadradas por uma edificativa «História de Natal – para crianças que já não acreditam no Pai Natal» e uns imaginários «Fragmentos persas (anónimo, século I depois da Hégira – seleção e recolha de Théophile Morel)». O alfa e o ómega da própria condição humana, plasmados nos ícones e signos com que as tramas narrativas se tecem.
Nas badanas ou guardas dos livros, nas capas e contracapas, as críticas documentadas são sempre positivas, as obras magistrais e os autores geniais. Depois o pano levanta-se, a função inicia-se e a peça mostra-se. A verdade nua e crua é revelada sem dó nem piedade. Os atores em cena passam a revelar as suas próprias capacidades líricas, épicas e dramáticas. Os publicitários falariam na prova do algodão. As hipérboles são reduzidas à sua verdadeira dimensão e o balanço surge no horizonte. Dou o braço a torcer neste caso concreto. O texto, afinal, vale bem o papel em que está estampado. As sensibilidades estéticas dos amigos, por vezes, coincidem entre si. Então, as balizas entre o bom e o mau ganham uma nitidez cristalina e a fruição pela arte surge. A república das letras abre-nos as portas e convida-nos a entrar. Entremos que oportunidades destas não surgem todos os dias.
Que belo texto que consegue desafiar-nos para a leitura desta obra.
ResponderEliminarJá tinho lido sobre ela no JL, mas, gostei mais do que aqui li...
Belo texto, cujas palavras nos impelem para a leitura do livro pela sugestão lírica que nos oferta!
ResponderEliminar"Lá vamos sabendo professar o credo islâmico, conviver com representantes dum cristianismo minoritário e dum hinduísmo concorrente." Este comentário faz-me lembrar a releitura em curso de "Os versos satânicos", que para mim está envolto num misticismo fantástico...