4 de dezembro de 2017

Patrick Modiano, a biografia sonhada ou imaginada do livrete de família

« J'observais ma fille, à travers l'écran vitré. Elle dormait, appuyée sur sa joue gauche, la bouche entrouverte. Elle avait à peine deux jours et on ne discernait pas les mouvements de sa respiration. [...] J'avais pris ma fille dans mes bras et elle dormait, la tête renversée sur mon épaule. Rien ne troublait son sommeil. || Elle n'avait pas encore de mémoire. »
Patrick Modiano, Livret de famille (1977)
Voltei ao meu convívio com Patrick Modiano, passada a euforia da primeira visita a um romancista até então inteiramente desconhe-cido. Descobri-o quando em 2014 se tornou no 15.º autor de língua francesa a ser laureado com o Nobel da Literatura. Li duma assentada alguns das suas criações mais antigas e dei-me um pequeno repouso para empreender uma nova investida na sua escrita. Fi-lo agora com o Livret de famille (1977), o segundo título duma coletânea de 10 romans publicados em 2013 pela Quarto-Gallimard. Não encontrei nenhuma tradução recente ou antiga para português. Provavelmente terá escapado até à presente data ao crivo seletivo dos editores lusófonos. É pena, porque congrega em si um conjunto de atrativos capazes de motivar uma leitura atenta e proveitosa como foi a minha.

O leitmotiv seguido nesta partitura cantada a capella inspirou-se no «Livrete de Família», um documento oficial existente em diversos países, destinado a reunir um conjunto de extratos de registos do estado civil dum agregado familiar. A estrutura do romance que me ocupa neste momento aproveita-se, precisamente, desse corpus de atos específicos da cidadania certificados legalmente, para compilar uma série de excertos da vida real/sonhada do autor-narrador-personagem, prática comum de ficcionar a vida e que lhe conferiu um renome concreto no universo das letras. Converte-o numa sucessão de flashes de espaço-tempo, caleidoscópicos, compilados ao sabor caprichoso da memória e com muitas incógnitas de permeio. Anacrónicos, dispersos, lacunares. Fragmentos incompletos, atuali-zados pela escrita, para contar pequenas histórias desgarradas, enigmáticas, patrimónios pessoal de todos nós, centradas nos pais, avós, tio, irmão, padrinhos, namoradas-amantes, mulher, filha, amigos e conhecidos. Recorda momentos perdidos/recuperados da infância e juventude. Certificados de nascimento, batizado, casamento e óbito. Demanda dum tempo pretérito em quinze etapas, tantas quantos o número de capítulos que constituem o relato de relatos.

A organização dos episódios trazidos à presença do leitor segue a dinâmica própria da corrente do pensamento. Surgem quando têm de surgir e desaparecem quando têm de desaparecer. Salvaguarda-se o essencial e prescinde-se do acessório. Os instantes que os modelam saltitam com inteira liberdade de uns para os outros, nos eixos espaciotemporais que regem o relato. O Patrick Modiano, aquele que assume o papel compósito de relator-relatado, salta dos 15 anos para os 20 e destes para os 18, 14 ou 17. Sempre ao sabor do acaso. Alterna Paris com Roma, Lausanne com Túnis ou Changai com Berlim. Do casamento dos pais passa o seu próprio casamento. Do batizado da filha para o seu próprio batizado e ao do irmão. De permeio lá recorda uma caçada de montaria na Borgonha ou a visita a um moinho na Bretanha. Fala da adaptação dos diálogos para um filme que terá conhecido o circuito comercial. Refere a sua participação como autor de letras de canções que alguém terá cantado com maior ou menor sucesso. Inicia a escrita da biografia dum esquecido artista de variedades que se dispensa de revelar se terá ou não terminado. O testemunho de factos acontecidos ou fantasiados pululam sem cessar ao sabor da pena e do momento.

A demanda incessante por uma clarificação das origens familiares são uma constante representada nos textos inaugurais do Patrick Modiano fabulador de destinos pessoais e alheios. Partes descontínuas duma obra única e que constituem, a seu ver, a espinha dorsal da sua produção futura. Os tempos conturbados da Guerra e da Ocupação, da Gestapo e do Holocausto, dos Colabo-radores e dos Resistentes. Ao longo das muitas páginas novelescas repartidas por volumes de dimensão mediana, interroga-se incessantemente sobre as suas raízes judaicas, sobre o papel algo ambíguo traçado pelos progenitores nesse conflito bélico mundial, sobre as motivações que os terão unido e separado. Questões que ficam sempre por clarificar, que ficam sempre em aberto, que ficam sempre dependentes do romance seguinte. As perguntas sem resposta repetem-se ciclicamente de livro para livro, de relato para relato, de sequela para sequela. Livretes de família todos eles, com mais ou menos pedigree no caminho, com mais ou menos boutiques obscuras no canto da rua, com mais ou menos cafés de juventudes perdidas num horizonte mais ou menos longínquo.

3 comentários:

  1. Do autor, apenas li Dora Bruder, mas fiquei com vontade de ler outras obras assinads por ele. Gostei do seu texto e de e senti saudades de voltar a Patrick Modiano. É meu timbre sentir saudades de regressar aos melhores.

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  2. Extrato interessante de um autor que nunca li, que a resenha pincela de cores atrativas. Obrigada por mais esta sugestão, Prof.!

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  3. Modiano, sempre em busca de um passado perdido...

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