1 de novembro de 2018

E o grande terramoto começou...

Os pecados dos homens & a terra em fúria

Lillias tirou uma das peras do avental e preparou-se para voltar para trás. Dera somente uns passos quando foi atirada para o chão, e o grande terramoto começou.

A terra estava em fúria, qual um touro varado por petardos numa are-na. Muitos iriam realmente interpretar aquelas convulsões como re-volta moral da natureza, ante os pecados que os humanos andavam cometendo. Muitos acharam que o bom Deus do Papa castigava Lisboa pela sua submissão aos heréticos ingleses. Equivalente enle-vo punitivo ocupava os jornais dos protestantes. Tinham sido poupa-dos quase todos, contando entre eles menos de cem vítimas, porque em boa verdade aquele desastre se dirigia apenas aos papistas, como um solene aviso do Senhor.

Lillias julgou-se em cima de um ser vivo, porque parecia haver um sentimento na forma como o chão se debatia. Aquilo que dentro dele se revolvia levava-o a rugir, ferido de morte. Escancarou uma enorme goela na encosta onde Lillias havia de encontrar-se, se tivesse avançado um minuto antes. A lama negra fumegava, como o bolo de alguma monstruosa digestão. O enxofre vinha diretamente arremessado do inferno.

Lillias pensou nas peras e no pão que lhe tinham caído do avental. Não conseguia pensar em mais nada. O estômago ocupava o centro do seu mundo. Tocou na trouxa que trazia na cintura, mas logo se esqueceu de Santa Brígida. Também a alma estava concentrada na preocupação com a comida.

Com o segundo abalo, desistiu. Sentou-se a espera de que o chão, por baixo dela, se abrisse, e a mão dos mortos se estendesse e a puxasse para a sua companhia. A sua educação religiosa fora apenas formal, feita de ritos e certo despotismo de palavras. Não esperaria ver no fim do mundo o supremo Juiz cobrindo os céus.

Dava por si sozinha e desvalida, uma pequena criatura mais, no meio das ervas e dos roedores. Ouvia os gritos da cidade ao longe. Corriam pelo ar, em vez dos pássaros que tinham procurado o vale de Alcântara e não mais se mexeram todo o dia. Lillias pensou que os vermes sairiam dos túneis subterrâneos. Pôs-se de pé, para que eles a não tomassem por um cadáver. Viu no horizonte, acima de Lisboa, uma poeira imóvel, como um escudo. Mas, no campo deserto, o sol mantinha a sua desusada intensidade. Lillias sentia sede. E o seu medo transformava-se em ânsia de animal, numa necessidade de achar água.
Hélia Correia, Lillias Fraser (Lx. 2001; 2003: 85-86)

2 comentários:

  1. Interessante descrição do terramoto, numa mistura fantástica de factos reais e mitos religiosos..

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  2. Uma descrição iluminada da Hélia Correia com um registo de realismo mágico e fundo histórico...

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