«Deixá-los rir. Mesmo rindo, eles não vão esquecer. Tem razão, meu pai. Temos a mesa, a casa, a cidade pacífica, temos o rio, temos o futuro à nossa frente, e temos os nossos filho saudáveis. E pensar que há quem não tenha coisa nenhuma.»Lídia Jorge, Estuário (2018)
Um estuário é a parte dum rio, próximo à foz, local de confluência de águas doces e salgadas. No caso do Tejo, a formar uma ampla bacia fluvial conhecida popularmente por Mar da Palha. A sua ubicação privilegiada foi sempre um chamariz a visitantes doutros quadrantes geográficos. Tem vindo a funcionar como um ponto de encontro das gentes do norte e do sul, do litoral e do interior; como um cruzamento das rotas marítimas das três massas continentais da Europa, África e América; como um porto de abrigo do Atlântico, antecâmara de conexão do Mediterrâneo com todo o mundo. Nas suas margens a perder de vista surgiram cidades ligadas por pontes, ergueram-se edifícios para alojar as pessoas ali estabelecidas e oriundas das mais recônditas paragens. Lisboa, no cimo das suas múltiplas colinas, rege a grande metrópole ribeirinha que cresceu em seu redor. É neste local singular que surge o mais recente romance de Lídia Jorge, intitulado, precisamente, Estuário (2018).
No décimo segundo título composto na forma maior da ficção, a sua obreira regressa a um cenário discursivo que lhe é muito querido, o espaço plural habitado por uma comunidade específica a oscilar entre o tecido rural duma pequena aldeia e o urbano duma grande cidade, com ação dramática centrada numa pensão, num hotel ou numa casa. Os núcleos de atores aí reunidos, por força do acaso ou dos laços de sangue que os unem, procedem à passagem metafórica do microcosmo que representam no macrocosmo restrito do país que os alberga ou global do mundo que os circunda e confina. É o que se passa na grande mansão dos Galeano, vasto casarão alfacinha de cinco andares do largo do Corpo Santo. Os conflitos individuais dos seus locatários dão corpo aos contenciosos coletivos de todos eles, as vozes masculinas alternam com as femininas, as memórias das gerações mais antigas embatem com as mais jovens, numa tentativa inglória de delinear pistas comuns que se prolonguem a contento de todos num horizonte de sucessos vindouros.
O complexo retábulo de relatos pessoais inicia-se com os holofotes focados no filho mais novo dum importante armador de navios e pater familias duma dinastia familiar distribuída por cinco gerações. Edmundo regressara ao país com menos três dedos e um terço da palma da mão direita decepada. O acidente ocorrera em Dadaab, um dos campos de refugiados estabelecidos no Quénia, onde cumprira uma missão de paz. Os dramas ali presenciados levaram-no a conceber um plano messiânico de salvação da humanidade, de fazer renascer o velho mito do amor, de iniciar uma nova fase da vida e do mundo. Decide escrever um livro de transição que pudesse cumprir a passagem do passado para o futuro, entendido como uma refundação do Génesis bíblico e uma continuação da Ilíada homérica. A inspiração foi bebida na Ode marítima de Álvaro de Campos, que recitou e copiou dez vezes, como forma de adestrar a pena e aguçar a verve, cuja progressão vai sendo reportada ao longo do corpo narrativo até que o último ponto final os resultados há muito percecionados pelos leitores.
A fantasia, quimera ou sonho utópico de reorganizar o mundo de modo superior e perfeito, de devolver à esfera imunda em que a terra se convertera o aspeto de esfera de fogo azul que já detivera, espalha-se depois a todo os atores em cena. A ideia acalentada pelo patriarca de enviar água da chuva aos países produtores de petróleo falhara em todas as linhas. Com ela gorara-se também o projeto de converter os petroleiros Horizonte e o Batalha em aguadeiros. De pouco valeram os esforços dos restantes membros do clã para evitar a catástrofe anunciada. O regresso às origens de todos eles à casa paterna suscitou um recomeço obrigatório. A criação duma nova geração de seres destinados a dar um novo sentido à vida e esperança de dias melhores. O grosso volume de muitas páginas idealizado pelo mutilado no inferno africano dos deserdados da fortuna ganha novas tonalidades. A versão definitiva da parábola sobre o futuro dos livros e da literatura é anunciada no derradeiro parágrafo do texto. A ficção revelada na obra impressa cede passo à ficção idealizada pelo protagonista-narrador que tem o mundo inscrito no próprio nome. Real e imaginário que convivem potencialmente dentro de nós, assim lhe queiramos dar as mãos e partir à sua descoberta por aí fora.
No décimo segundo título composto na forma maior da ficção, a sua obreira regressa a um cenário discursivo que lhe é muito querido, o espaço plural habitado por uma comunidade específica a oscilar entre o tecido rural duma pequena aldeia e o urbano duma grande cidade, com ação dramática centrada numa pensão, num hotel ou numa casa. Os núcleos de atores aí reunidos, por força do acaso ou dos laços de sangue que os unem, procedem à passagem metafórica do microcosmo que representam no macrocosmo restrito do país que os alberga ou global do mundo que os circunda e confina. É o que se passa na grande mansão dos Galeano, vasto casarão alfacinha de cinco andares do largo do Corpo Santo. Os conflitos individuais dos seus locatários dão corpo aos contenciosos coletivos de todos eles, as vozes masculinas alternam com as femininas, as memórias das gerações mais antigas embatem com as mais jovens, numa tentativa inglória de delinear pistas comuns que se prolonguem a contento de todos num horizonte de sucessos vindouros.
O complexo retábulo de relatos pessoais inicia-se com os holofotes focados no filho mais novo dum importante armador de navios e pater familias duma dinastia familiar distribuída por cinco gerações. Edmundo regressara ao país com menos três dedos e um terço da palma da mão direita decepada. O acidente ocorrera em Dadaab, um dos campos de refugiados estabelecidos no Quénia, onde cumprira uma missão de paz. Os dramas ali presenciados levaram-no a conceber um plano messiânico de salvação da humanidade, de fazer renascer o velho mito do amor, de iniciar uma nova fase da vida e do mundo. Decide escrever um livro de transição que pudesse cumprir a passagem do passado para o futuro, entendido como uma refundação do Génesis bíblico e uma continuação da Ilíada homérica. A inspiração foi bebida na Ode marítima de Álvaro de Campos, que recitou e copiou dez vezes, como forma de adestrar a pena e aguçar a verve, cuja progressão vai sendo reportada ao longo do corpo narrativo até que o último ponto final os resultados há muito percecionados pelos leitores.
A fantasia, quimera ou sonho utópico de reorganizar o mundo de modo superior e perfeito, de devolver à esfera imunda em que a terra se convertera o aspeto de esfera de fogo azul que já detivera, espalha-se depois a todo os atores em cena. A ideia acalentada pelo patriarca de enviar água da chuva aos países produtores de petróleo falhara em todas as linhas. Com ela gorara-se também o projeto de converter os petroleiros Horizonte e o Batalha em aguadeiros. De pouco valeram os esforços dos restantes membros do clã para evitar a catástrofe anunciada. O regresso às origens de todos eles à casa paterna suscitou um recomeço obrigatório. A criação duma nova geração de seres destinados a dar um novo sentido à vida e esperança de dias melhores. O grosso volume de muitas páginas idealizado pelo mutilado no inferno africano dos deserdados da fortuna ganha novas tonalidades. A versão definitiva da parábola sobre o futuro dos livros e da literatura é anunciada no derradeiro parágrafo do texto. A ficção revelada na obra impressa cede passo à ficção idealizada pelo protagonista-narrador que tem o mundo inscrito no próprio nome. Real e imaginário que convivem potencialmente dentro de nós, assim lhe queiramos dar as mãos e partir à sua descoberta por aí fora.
O estuário de Lisboa é um local que me é próximo, ponte que foi da primeira grande mudança na minha vida. O título já me atrai para a leitura do romance, cujo tema é bem aliciante, neste mundo onde a individualização ignora o bem-estar do próximo mais desfavorecido. E Lídia Jorge é uma autora que não pode ser ignorada no seu extraordinário caminho literário. Obrigada pela partilha!
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