21 de agosto de 2019

José Saramago, do memorial do convento e do voo da passarola

«Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e, assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem batizada estava, que o batismo foi de padre, não alcunha de qualquer um. Dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais.»
José Saramago, Memorial do convento (1982)
No passado 10 de julho, quando o Real Edifício de Mafra passou a Património Mundial da UNESCO, senti um impulso imperioso de voltar à companhia do único Prémio Nobel da Literatura escrita em português que, de certo modo, lançara o grande empreendimento do Magnânimo para as bocas do mundo. Reli-o de cabo a rabo e em ambiente de férias na primeira semana de agosto, 310 anos depois do Voador ter ensaiado, com grande sucesso em Lisboa, entre 3 e 8 desse mesmo mês estival, as propriedades do seu aeróstato de balões aquecidos. O evento científico decorreu em 1709 no ambiente palatino da Corte. A ação do romance que o refere com grande destaque inicia-se em 1711 e irá até 1739. O factual transforma-se em ficção e o universo de realismo mágico toma conta do relato. 

Sobre José Saramago e o Memorial do convento (1982), já se disse quase tudo ou está ainda tudo por dizer. É que se a cada cabeça sua sentença, a cada leitor seu palpite. Até eu disse algumas coisas sem ter necessariamente adiantado grande coisa. Fi-lo em diversas ocasiões e arrisco-me a estar de novo aqui a dizer banalidades sem ultrapassar o domínio da trivialidade. A viagem do olhar sobre os livros é incapaz de resistir à passagem implacável do tempo. Quando a uma leitura inicial dum texto se sucedem compulsivamente outras, é natural que as visões acumuladas ao longo do processo nos nos forneçam novas pistas e despertem para perspetivas alternativas de captação das mensagens transmitidas pelo seu obreiro.

O prazer sentido no primeiro contacto com a crónica romanceada da consecução do projeto megalómano de Dom João V manteve-se nesta incursão mais recente sem grandes mutações na apreciação geral. Senti-me porém menos atraído pelos episódios memorialistas referentes ao Convento anunciados no título do que aos reservados à Passarola. É que os ecos audíveis dum neorrealismo militante ainda predominante no núcleo épico da edificação dum monumento de pedra nos remetem para estéticas literárias de sonoridades pretéri-tas, a espontaneidade e liberdade de expressão imprimida a ideali-zação alegórica duma máquina voadora nos remete ato contínuo para as estéticas duma pós-modernidade vindoura.

O percurso existencial de Blimunda Sete-Luas cruzou-se com o de Baltasar Sete-Sóis num auto-de-. O impulso que os atraiu foi ime-diatoO tal coup de foudre das poéticas narrativas. O padre Bartolo-meu de Gusmão legitima a união dos dois e incube-os de dar vida à geringonça voadora. Os três BBB elevar-se-ão do chão ao som do cravo de Domenico Scarlatti e da vontade das gentes. Um dia o solda-do maneta das guerras ibéricas perdeu-se no sem-termo dos ares. Aquela que via a alma das pessoas quando estava em jejum partiu à sua procura. Achou-o após nove anos de buscas infrutíferas pelo mundo. Vislumbrou-o a arder numa fogueira da Inquisição. Então a vidente peregrina chamou a si a nuvem fechada que se encontrava no interior do corpo do supliciado e impediu-a de subir para as estrelas pois à terra pertencia e a si que o libertara. E assim termina a fábula. E assim termina o comentário. E assim termina esta leitura à espera da próxima, que nisto da ficção nunca há um fim à vista.

2 comentários:

  1. Belíssimo texto, Prof., a alimentar a minha vontade de reler esta obra-prima, a primeira que li de Saramago e que a recente visita que fiz ao Palácio Nacional de Mafra já tinha aguçado o apetite...

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