8 de agosto de 2019

Era uma vez um padre que queria voar...

PASSAROLA

Figure de la Barque inventée en 1709 par Barthélemi Laurent de Gusman,
Chapelain du Roi à Lisbonne Pour s'élever et Cheminer à travers les Airs  (1784?)
 
[Bibliothèque national de France]
BARCA VOADORA
«Então é isto, e o padre Bartolomeu Lourenço respondeu, Há de ser isto, e, abrindo uma arca, tirou um papel que desenrolou, onde se via o desenho de uma ave, a passarola seria, isso era Baltasar capaz de reconhecer, e porque à vista era o desenho um pássaro, acreditou que todos aqueles materiais, juntos e ordenados nos lugares competentes, seriam capazes de voar. Mais para si próprio do que para Sete-Sóis, que do desenho não via mais que a semelhança da ave, e ela lhe bastava, o padre explicou, em tom primeiramente sereno, depois animando-se, Isto que aqui vês são as velas que servem para cortar o vento e que se movem segundo as necessidades, e aqui é o leme com que se dirigirá a barca, não ao acaso, mas por mão e ciência do piloto, e este é o corpo do navio dos ares, à proa e à popa em forma de concha marinha, onde se dispõem os tubos do fole para o caso de faltar o vento, como tantas vezes sucede no mar, e estas são as asas, sem elas como se haveria de equilibrar a barca voadora, e destas esferas não te falarei, que são segredo meu, bastará que te diga que sem o que elas levarão dentro não voará a barca, mas sobre este ponto ainda não estou seguro, e neste teto de arames penduraremos umas bolas de âmbar, porque o âmbar responde muito bem ao calor dos raios do sol para o efeito que quero, e isto é a bússola, sem ela não se vai a parte alguma, e isto são roldanas, servem para largar ou recolher as velas, como nos navios do mar. Calou-se alguns momentos, e acrescentou, E quando tudo estiver armado e concordante entre si, voarei.»

José Saramago, Memorial do Convento (1982: 67-68)
Foi a 3 de agosto de 1709 que o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724) testou pela primeira vez na Casa do Forte de Lisboa o seu balão aquecido. Pretendia elevá-lo nos ares e assim provar que o homem também podia voar, se a tanto o ajudasse o engenho e arte. Ao que contam as crónicas da época, o protótipo ter-se-á incendiado antes de se libertar da força gravitacional da terra, pelo que a exibição se repetiu no dia 5, agora na Casa Real, tendo subido uns 4 metros até ser devorado pelo fogo. A terceira tentativa voltou à Casa do Forte, tendo o voo curto desse dia 6 resistido às chamas até à aterragem. Entusiasmado com o sucesso relativo alcançado, o seu criador resolveu realizar no dia 7 a experiência no Terreiro do Paço, onde o aeróstato ascendeu a grande altura e aí se manteve por longos minutos até pousar tranquilamente no chão. A Corte de Dom João V reunida no Paço Real da Ribeira teve ocasião de assistir à consagração definitiva do pequeno globo voador, que no dia 8 subiu por momentos até ao teto da Sala de Audiências, para depois descer suavemente no solo como se se tratasse duma verdadeira Passarola.
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Cumprem-se agora 310 anos que a barca voadora de Bartolomeu de Gusmão se elevou nos ares pela primeira vez. A releitura do Memorial do Convento em tempo de férias convidou-me a erigir aqui neste espaço de histórias contadas um Memorial à Passarola que em agosto de 1709 levantou voo em Lisboa. Acontecimento singular que José Saramago tão bem soube retratar nas páginas dum romance fantasiado segundo a cartilha poética do realismo mágico. Blimunda Sete-Luas & Baltasar Sete-Sóis foram os timoneiros de papel e tinta a inaugurar pela força conjunta da vontade as viagens aéreas e que inventiva humana um dia confiaria a homens e mulheres de carne e osso. O real e o imaginário a darem as mãos e a oferecerem assim um outro sentido à vida...

1 comentário:

  1. E viva a criatividade do homem! Ando com vontade de reler o Memorial do Convento, pelo que terei de adquirir o livro de novo...

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